Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Num julgamento, povo que assiste é o juiz dos juízes", copyright Jornal de Notícias, 13/01/02

"A primeira audiência do julgamento de Vale e Azevedo, que decorre no Tribunal da Boa Hora, foi marcada pela decisão da juíza, Anabela Marques, de vedar o acesso ao público presente e aos representantes do público ausente, os jornalistas. A restrição da publicidade da sessão, preconizada pela Constituição da República e pelo Código de Processo Penal, fez erguer protestos, quer na defesa do advogado ex-presidente do Benfica, quer entre os jornalistas, que se pronunciaram publicamente (50 profissionais destacados para cobrir o acontecimento emitiram um documento, e o presidente do Sindicato dos Jornalistas, nosso camarada de Redacção Alfredo Maia, juntou a voz ao protesto dos companheiros).

Nem a promessa feita aos representantes dos ?media? de que a próxima audiência (marcada para o dia 15) será pública, tão-pouco a legalidade da decisão da juíza, retiram valimento à posição do Provedor, que entra no coro da defesa de um princípio, como quem luta pelo ramo de salsa no seu prato de arroz insípido (recordam, decerto, os leitores a ?estória? dos frades a quem uma ordem rigorosa impunha o silêncio e o mesmo alimento em todas as refeições: um prato de arroz cozido, sem sal, com um ramo de salsa ao domingo – enfeite que um domingo faltou, e que levou ao protesto de toda a comunidade, pela voz do mais velho dos monges, que assim justificou o repúdio da comunidade: ?É uma questão de princípio: questionamos, hoje, a falta da salsa para não termos que reagir, amanhã, à falta do arroz?).

Num estado democrático é no povo que reside a soberania – soberania que exerce pela intervenção cívica, de que se destaca o sufrágio universal. Perante o povo, as instituições democráticas têm que ser transparentes para que todos tenham direito a conhecer o seu funcionamento e a criticá-lo. Nenhum dos poderes é excepção (o Judicial incluído).

Eduardo Conture, na sua obra ?Fundamentos de Derecho Processal Civil? diz, claramente:

?A publicidade, com a presença do público nas audiências judiciais, é o mais precioso instrumento de fiscalização popular sobre a acção dos magistrados e dos advogados. Poderá mesmo dizer-se que o povo é juiz dos juízes?.

Este tema foi, aliás, abordado pelo colaborador do JN, dr. Artur Costa, procurador da República adjunto no Tribunal da Relação do Porto, em seminário promovido, em Junho de 1993, pela Alta Autoridade para a Comunicação Social.

No encontro, em que jornalistas e juristas debateram ?Comunicação Social e Direitos Individuais?, a comunicação de Artur Costa chamou-se, justamente, ?Publicidade do Julgamento Penal e Direito de Comunicar?.

Artur Costa aludiu à dupla vertente do direito à publicidade da audiência: ?direito fundamental ou direito do homem pertinente a quem vai ser submetido a julgamento, e direito de todos os cidadãos a saber como funcionam os tribunais, que constitucionalmente exercem um dos três poderes do Estado.?

Concretiza o jurista:?Tal conhecimento, aliado à liberdade de expressão e de crítica, proporciona o controlo social dos actos judiciários, mormente do julgamento, a fiscalização pelo povo do poder judicial.

?É esta possibilidade de controle e de fiscalização, de que a publicidade das audiências é um meio, que confere autoridade democrática aos tribunais, que, de acordo com a Constituição, ?são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art? 205?, n?1).

?A administração da justiça em nome do povo não é, na perspectiva focada, uma fórmula vazia, uma excrescência retórica, exprimindo, antes, uma vinculação dos tribunais, enquanto órgãos de soberania, ao mesmo povo que, em democracia, é o verdadeiro titular daquela?.

São claros, os princípios em que se alicerça o princípio da publicidade dos julgamentos penais — tão claros como a importância do papel dos ?media? nessa mesma publicidade. Assim mesmo, porém, valerá a pela reproduzir parte de um acórdão do Tribunal Constitucional de Espanha, a propósito de restrições impostas aos representantes do ?Diario 16? que cobriam o julgamento do golpe militar frustrado de 23 de Fevereiro de 1981, que ficou conhecido pelo nome de ?Tejerada?. Diz a decisão do Tribunal Constitucional:

?O princípio da publicidade dos julgamentos implica que estes sejam conhecidos para além do círculo de pessoas presentes nos mesmos, em vista da sua projecção geral. Esta projecção não pode tornar-se efectiva senão com a assistência dos meios de comunicação social, enquanto tal presença lhes permite adquirir a informação na sua própria fonte e transmiti-la a quantos, por uma série de imperativos de espaço, tempo, distância, afazeres, etc., estão impossibilitados de fazê-lo. Este papel de intermediário natural, desempenhado pelos meios de comunicação social entre a notícia e quantos não estão em condições de conhecê-la directamente torna-se mais imperioso com respeito a acontecimentos que, pela sua natureza, podem, afectar todos os cidadãos, e, por isso, ganham uma especial ressonância na comunidade social?.

Naturalmente que o ?princípio da publicidade? tem excepções e limitações que, quer a Constituição, quer o Código de Processo Penal prevêem, com reflexos evidentes na liberdade de expressão e de comunicação.
Tais limitações têm a ver com a salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública, da ordem pública e da segurança nacional e com as garantias do normal funcionamento do tribunal.

Só que – e é ainda Artur Costa quem o salienta, ? as excepções têm de ser, naturalmente, adequadas, necessárias, proporcionais e impostas pela previsibilidade de um grave dano que, portanto, não possa ser prevenido senão pela exclusão da publicidade?. Daí que o magistrado tenha que justificar as restrições à publicidade da audiência com um despacho fundamentado.

No julgamento em questão era facilmente previsível a quantidade de público. Suspeitas, denúncias, investigações, a detenção domiciliária e a prisão daquele que foi um polémico presidente do maior clube do futebol português – tornaram Vale e Azevedo e o seu processo um dos mais mediáticos casos portugueses dos últimos anos. Aliás, as consabidas paixões que Vale e Azevedo alimenta ficaram patentes no átrio do tribunal, em aclamações e apupos.

A previsibilidade da presença de uma multidão expectante impunha, naturalmente, medidas que não obrigassem à privação da publicidade de um julgamento que, por mais transparência que tenha, não culminará com um acórdão pacífico.E não esqueçamos: se o princípio da publicidade foi levantado em defesa dos réus, ele acaba, também, por ser importante instrumento de suporte das decisões dos magistrados."