Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Perseguem-se notícias não as instituições", copyright Jornal de Notícias, 14/4/02

"Retive, de leitura antiga, uma parábola tibetana, que espero não atraiçoar, já que a cito de memória: ?As ideias correm no cérebro como a água nos canais de rega; tudo depende das saídas que a nossa vontade tapa para fazer caminho aos conceitos?. De facto, muitos dos conceitos são, num grau de consciência maior ou menor, por nós manipulados. Algumas vezes por… preconceitos.

Os casos que o Provedor hoje traz à página espelham, de certo modo, a privatização das ?verdades? a que cada um de nós pensa ter direito, ainda que elas, por vezes, envolva o julgamento de terceiros.

Eduardo Ferreira, de Viseu, ainda que preocupado com ?a onda de corrupção que inunda Portugal, num repente?, festeja o castigo daqueles que, como os agentes da Brigada de Trânsito agora pronunciados, ?usam e abusam do poder que a democracia do povo lhes deu para explorar esse mesmo povo e enriquecer depressa?. Para o leitor, este sim, é ?jornalismo exemplar, porque desencoraja os outros que possam ser tentados a fazer o mesmo?.

Amadeu Serafim, de Águeda, é de opinião diametralmente contrária, e acusa o ?Jornal de Notícias? de ser cúmplice de uma campanha que terá por objectivo denegrir a GNR à qual, segundo afirma, não o ligam quaisquer vínculos. Diz Amadeu Serafim:

?(…)Se não houvesse o propósito de dar uma má imagem da Guarda não estavam sempre a procurar só os defeitos e não as virtudes (que as há tantas). Se não fosse a Guarda já imaginaram a desgraça que seria este país que, já assim, não anda muito bem??
Para o leitor de Águeda a ?perseguição? terá começado com a notícia das fotografias do comandante-geral, ?que, afinal, se provou que era falsa e que não tinha sido um gasto tão grande como foi dito no jornal?. Seguiram-se as notícias do dia 5 (?… que estadão de relevo, na última página!) e as manchetes de quinta e sexta-feira últimas. ?Um exagero nunca visto?, clama Amadeu Serafim.

Como se vê, duas opiniões contraditórias. Eduardo Ferreira quase a enveredar pela defesa do ?jornalismo de missão?, que o Provedor enjeita na medida em que pensa que a única missão do jornalista, quando informa, é a transmissão da verdade. Sem quaisquer outros objectivos — apenas com a preocupação de que essa mesma verdade não cause danos maiores do que os benefícios da notícia. Uma verdade aprofundada tanto quanto possível para que não permita ilações que dela se afastem. Para evitar os riscos de alarmismos ou de euforias sem propósito.

O leitor de Viseu diz-se preocupado com ?a onda de corrupção, que inunda Portugal, num repente?. É uma leitura possível das sucessivas notícias que os ?media? têm vindo a revelar. A outra é que a corrupção sempre existiu, nas mesmas ou até em maiores proporções, mas que só agora terão sido criados mecanismos ágeis de detecção e punição desses crimes. Há ainda uma terceira, bem menos optimista do que a anterior: as formas de investigação e combate da corrupção não evoluíram, a vontade política de promover essa luta não cresceu, e estamos, tão-somente, perante uma coincidência de processos que denúncias de cidadãos accionaram.

Esperemos que a segunda hipótese seja a correcta, e que estejamos a viver um fenómeno paralelo ao que se verificou quatro ou cinco anos depois de, em Portugal, ter sido implantado o BCG como importante e imperioso mecanismo de combate à tuberculose…
Em determinada altura surgiram, nos jornais, manchetes com números de cidadãos atingidos pela então terrível doença. Parecia que, de repente, tremenda epidemia se abatera sobre o país! O que sucedia é que, só então fora possível revelar os resultados do primeiro rastreio sistemático da doença. E a verdade gerou algum alarme.

A verdade não é, de facto, persecutória, e Amadeu Serafim não tem razão ao ver na sucessão de notícias um propósito de denegrir a Guarda Nacional Republicana no seu todo, ou a sua Brigada de Trânsito. Aliás, isso mesmo considera José Leite Pereira, director adjunto do JN:

?Não há, por parte do Jornal de Notícias qualquer má-vontade contra a GNR, qualquer tipo de preconceito, certos como estamos de que, em todas as instituições, há elementos que as desmerecem e muitos mais que sabem honrá-las. Na GNR também. Somos conscientes do que o país deve à Guarda Nacional Republicana, e o respeito que temos por ela e pelos leitores não consentem que deixemos de relatar os factos com o destaque que os critérios jornalísticos determinam.?

As notícias publicadas recentemente são factuais, e pouco diferem, no conteúdo e no destaque, das divulgadas pelos outros órgãos de comunicação social. Reflectem, isso sim, as dificuldades encontradas pelos jornalistas na busca da verdade — não somente devido ao mecanismo condicionador do ?segredo de justiça?, mas também à barreira corporativa que, nas instituições atingidas, se ergue contra os jornalistas.

Muitas vezes, as autoridades, nessas alturas, apenas prestam esclarecimentos que permitam corrigir ?por baixo? as notícias, como aconteceu, aliás, na edição de anteontem, com a GNR e explicar, ?ao abrigo do direito de resposta? que, dos 40 elementos da BT que a PJ, segundo o JN, teria interrogado, afinal só 34 foram ouvidos, e apenas um aguarda julgamento.

A pergunta é sempre a mesma: por que se fecham as portas à informação, consentindo (e assim colaborando) no erro?

Uma pergunta de Amadeu Serafim (porquê se interessam só pelos defeitos e não pelas virtudes?) poderia conduzir ao eterno debate entre o jornalismo pela negativa e o jornalismo pela positiva. E, quando crescem as vozes dos que advogam que as boas acções, ainda que constituindo obrigação moral, devem ser mostradas como estímulo; quando nasce uma corrente defensora da ?informação moralizadora e esperançosa? — não faltam aqueles que, como Rodrigo Silva, do Porto, se insurgem contra o destaque de notícias como a de um salvamento no Douro:

?Deu o jornal no dia 8, uma incrível notícia de um homem que, ao pé da Alfândega, salvou uma mulher que se atirou ao Douro. Mais de meia página, com fotografia e tudo do homem, que da mulher nem dizem sequer quem era. Ele não fez mais do que a obrigação. Outro qualquer que lá estivesse e soubesse nadar fazia o mesmo. É gastar espaço que tão preciso é para outras coisas, por exemplo a pouca vergonha da droga lá na Ribeira.?
Para Rodrigo Silva era importante conhecer a identidade de quem, num acto de desespero, tentou pôr termo à vida. Agravar, no jornal, um pesadelo que só um gesto heróico evitou que se consumasse?

Para Rodrigo Silva, o salvador cumpriu um obrigação, e como tal não tem mérito.

?As ideias correm no cérebro como a água nos canais de rega; tudo depende das saídas que a nossa vontade tapa para fazer caminho aos conceitos?."