JORNAL DE NOTÍCIAS
"Impor uma nova imagem pode levar gerações…", copyright Jornal de Notícias, 20/4/02
"Uma pequena nota publicada em ?Caras e Casos?, na Última Página da edição de 31 de Março, provocou, junto do Provedor, reacções diversas ? todas elas em defesa dos servidores públicos, da sua imagem ? algumas delas reclamando dos jornalistas a obrigação de, pelo distanciamento e pela pedagogia, acompanharem o esforço de evolução dos agentes da função pública, e dessa melhoria darem testemunho consciencializador.
A notícia em causa tinha como objecto duas repartições de Finanças de Gaia e punha em confronto procedimentos de uma e de outra tão pouco concordantes, que terão motivado o título ?Desfunção Pública?.
De forma pelo menos assumida, não surgiram reacções de qualquer uma das repartições citadas. Nem houve, sequer, qualquer observação ? que seria perfeitamente legítima ? no sentido de perguntar se o autor da notícia se contentou com a constatação dos factos tal como eventualmente lhe foram narrados, ou se, pelo contrário, os comprovou, investigando a sua legitimidade. Houve, isso sim, considerações de leitores que, solicitando o anonimato, se assumiram como jovens funcionários públicos.
O sentido das reflexões que chegaram ao Provedor é convergente. Delas se reproduzem as parcelas consideradas mais relevantes e conducentes ao desejo expresso de promover uma melhor imagem do serviço público.
Uma delas (?um grupo de servidores do Estado no Porto?) começa, justamente, por salientar a ironia de, na mesma edição do JN em que se desprestigia a função pública, Edite Estrela, na sua coluna, fazer um assumido elogio a um serviço público que lhe foi prestado numa deslocação ao Porto. Pergunta o porta-voz do grupo:
? Quem desconhece a nossa tradicional cultura de desconfiança no outro, e mais ainda no Estado, que nos faz ser, a um tempo, tão desleixados no reconhecimento do que está bem, e, de outro, tão escusadamente excessivos na crítica de uma qualquer desfunção que, no imediato, afecta o nosso quotidiano? Que dizer da queixa de um cidadão insatisfeito, que valor estatístico pode ela ter, num mar de tantas centenas ou milhares de situações diariamente resolvidas aos contribuintes, de tantas situações ultrapassadas com boa vontade de tantos elogios feitos em surdina, directamente ao funcionário zelozo, sem direito a publicação em jornal??
Um dos leitores (escreve de Matosinhos) chama, ainda, a atenção para as por vezes mais do que deficientes condições em que se trabalha nas repartições públicas, nomeadamente nas de Finanças, em que até chegam a faltar os mais elementares instrumentos de trabalho.
Aponta, nomeadamente, o fenómeno migratório das populações que antes viviam nas grandes cidades como Lisboa e Porto e que, em procura de casa mais barata e eventualmente de mais qualidade de vida, passaram a morar em municípios limitrofes. Nas grandes cidades, as condições de trabalho permaneceram ? mesmo perante a desertificação, que vem sendo progressiva. Em contrapartida, não houve a ginástica suficiente para dotar as cidades-dormitórios das infra-estruturas que o aumento de população há muito exige.
Em sua opinião, o problema encontra-se nas mãos dos políticos, mas estes ?estão pouco ou nada interessados em soluções de longo prazo. Promovê-las, pode resultar em benefício dos adversários, o que não convém. Tomam apenas medidas para o imediato, de concretização a um máximo de quatro anos, que são as que podem dar-lhes dividendos eleitorais?.
Há, ainda, unanimidade na tentativa de chamar a atenção para a nova realidade do serviço público: os jovens agentes passaram a ser recrutados com maior nível de exigência, e mesmo em relação aos mais antigos, tem havido um esforço real de formação contínua. Em resumo: a função pública está muito, mas muito além do conceito que dela faz, ainda, a generalidade do país.
O que fazer para tranformar essa imagem?
Os interlocutores do Provedor não têm dúvidas: os jornalistas são cúmplices de todos os que têm um mau conceito dos servidores do Estado, não só porque ?apenas fazem jornalismo pela negativa, porque o dizer mal é que vende?, mas também porque, afirmam, ?não cumprem a obrigação, que têm, de esclarecimento e de educação das massas?.
Reconhece o Provedor que se verifica, de facto, uma melhoria sensível a nível do atendimento dos utentes nos serviços das administrações central e local. É uma verdade que cada português vai constatando no seu relacionamento com as repartições, e que os ?media? destacam, nas oportunidades. Não pode é haver a ideia de que cabe aos jornais o alindamento de uma imagem com mais de meio século. O único compromisso que os jornalistas têm é com a verdade ? verdade que não pode ser condicionada por qualquer campanha ou por intenções compensatórias.
Apontar os erros tem uma intenção pedagógica e promotora da correcção. E se a pública constatação de uma evolução francamente positiva pode e deve fazer-se quando as circunstâncias o justificarem, repete-se que as preocupações com a imagem, o seu retoque e a sua promoção são função, isso sim, das Relações Públicas e de ramos afins da comunicação.
Há, no entanto, uma realidade incontornável que hoje é já História, e que os jovens funcionários públicos não conhecem com a profundidade de quem a viveu…
As ditaduras criam mecanismos perversos. Quase sempre, a sujeição é imposta pela força ? mas são a incultura, a adaptação comodista e o oportunismo que mantêm o jugo.
Foi o que aconteceu em Portugal, ao longo de quase meio século. A evolução sócio-cultural nos breves e conturbados anos da I República foi insuficiente para obstar ao Estado Novo, que uma desastrosa situação económica e financeira justificaram.
Entre os que se acomodaram e os que se encostaram aos novos senhores em procura de dividendos, ficaram uma pequena elite oposicionista e essa massa flutuante que atravessa os regimes e que é a função pública.
Naturalmente que os funcionários de um sistema fechado tornam-se, por regra, não apenas servidores, mas espelhos da política que lhes garante estabilidade e que, a determinados níveis da função pública, nem exige eficácia. Que não convém. Foi justamente nesses sectores que germinou o laxismo. E a prepotência.
Houve, claro, pequenos núcleos de funcionários que, afrontando o Salazarismo, foram expulsos, indo muitos deles parar às masmorras da PIDE. E bastantes outros que, sem qualquer intervenção política, alicerçaram no brio e na competência carreiras exemplares ? nem sempre devidamente reconhecidas. Mas nem uns nem outros bastaram para tirar à função pública a carga negativa com que chegaram aos nossos dias, a este tempo de uma democracia que se quer mais e mais exigente.
Adágios e o anedotário em que os portugueses são fecundos dão-nos conta desse estigma que, de tão profundo, é difícil de ultrapassar ? reconheça-se, embora, a evolução pela positiva que claramente se sente entre os servidores do Estado e da Administração local. É preciso que se apague a pesada e longa memória de outros tempos.
E isso, às vezes, demora gerações."