Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Mais do que a falar é também a pensar que a gente se entende" , copyright Jornal de Notícias, 25/5/02


"?Deixai-me ouvir os homens que falam tão baixo. Porque não sei trair a honra de cantar deixai-me cantar meu povo onde meu povo não cantar?. Manuel Alegre, ?Praça da Canção?


A reflexão não é, apenas, um exercício, um monólogo; é uma forma de, questionando-nos a nós próprios, nos enriquecermos pelo aumento e pela consolidação de conhecimentos. Mais: a reflexão é, muitas vezes, uma sofisticada forma de comunicação _ principalmente se partilhada, se cotejada com os resultados obtidos por terceiros do igual procedimento sobre o mesmo objecto de análise. No fundo, a mensagem da leitora Angelina Pereira Rodrigues terá justamente o objectivo de confrontar as suas conjecturas com os resultados da análise que convida o Provedor a fazer: reflexão sobre o seu papel no JN, como agente e como instrumento.

Angelina Rodrigues diz-se leitora assídua da página do Provedor, e das considerações nela expressas, que classifica como ?pedras filosofais? atiradas ao charco de um certo jornalismo e de um certo leitorismo (alguns jornalistas têm os leitores que merecem e vice-versa.? Reconhece no provedor o senso e a maturidade, (?(…)às vezes é um pouco prolixo, e penso que alguns leitores na média muito média JN não o entendem, mas vale sempre a pena, se alguns o perceberem.?

Considera Angelina Rodrigues que não é grave o problema de alguns leitores não terem acesso a uma compreensão total dos textos, desde que os jornalistas os entenderem em todas as suas dimensões. ?(…)E esses percebem, não percebem? Ou não percebem?! Eu penso que sim, que percebem mesmo antes do Provedor escrever(…)? E só por isso a leitora considera primeiro que ?vale a pena? a existência da função, para, logo de seguida interrogar:

?Mas vale??

Angelina Pereira da Silva questiona-se, questionando o Provedor:

?Já alguma vez se perguntou se, no fundo não estará a ser instrumento de credibilização de um jornal no seu todo? O Provedor vale por uma campanha publicitária, em que se repete, em letras gordas: ? O jornal é tão sério, tão sério, que até tem um Provedor. Não tememos as críticas, até as agradecemos, etc, etc, etc.? É uma excelente capa para as mazelas, e até os leitores, se tivessem qualidade para criticar, deixavam de o fazer, porque não valia a pena, porque o jornal tem um leitor melhor e mais atento que todos eles que é o Provedor. Já pensou nisso??

A faceta de credibilização do jornal, que a leitora invoca negativamente, não requer, por parte do Provedor, qualquer reflexão. O tema vem sendo fulcro de análises há quase quatro décadas. Pode mesmo dizer-se que esse factor terá sido, mesmo, um dos que mais pesou na nomeação do primeiro Provedor (news ombudsman) do mundo, em 1967, no ?Courier-Journal?, de Louisville (EUA).

Aliás, pouco depois de assumir as actuais funções no JN, tive a oportunidade de, nesta mesma página, publicar uma nótula histórica em que aludia às razões da América de 1967 ? por sinal bem diferentes das que, hoje, os ?media? portugueses enfrentam.
No Estados Unidos vivia-se uma crise muito grave, que começou em 1947 com o aparecimento da televisão. Só nesse ano, desapareceram 24 jornais diários. Em 1956, fechavam, em simultâneo, duas revistas do mesmo grupo, a ?Collier’s? (semanal) e a ?Woman’s Home Companion? (mensal), com uma tiragem conjunta de mais de oito milhões de exemplares. E, em 1967, deixavam de publicar-se três importantíssimos jornais de Nova Iorque (?The Herald Tribune?, ?The World Telegram? e ?The Journal American?).

Mas o que mais fundo impressionou a sociedade norte-americana foi a ?morte?, em Fevereiro de 1969, de ?The Saturday Evening Post?, uma instituição na altura quase tão forte como a Coca-Cola. Publicava-se ao sábado, em Filadélfia, e, em 1960, apesar do ?boom? da televisão, atingia uma tiragem de 6,5 milhões! Só que aquela que, nos anos 30, chegou a deter 30% do total das receitas dos anúncios das revistas americanas, não sobreviveu a uma anemia publicitária que, desde 1961, lhe causou um défice crescente.
A crise foi, logicamente, debatida por quase todos os seus intérpretes, e alguns dos jornais começaram a perceber que uma franca admissão dos erros poderia ser boa para a sua credibilidade. Em Março de 1967, Bem Bagdikian, editor do ?The Washington Post?, escreveu na revista ?Esquire? que a imprensa estava a atravessar uma crise de credibilidade por parte do público, e que havia múltiplas razões para o descrédito. E defendeu, abertamente, nesse histórico texto, justamente a figura do Provedor como elemento fundamental para a reconquista dessa credibilidade.

Outras vozes igualmente prestigiadas se juntaram à de Bagdikian e, nesse mesmo ano aparecia o primeiro elemento daquela que é hoje, nos EUA, uma instituição prestigiada. Nos Estados Unidos e em muitos outros pontos do Mundo.

Tanto quanto sei, e a questão vem sendo abordada em diversos ?fora? internacionais, nenhum Provedor se ilude quanto a essa sua função de credibilizar o jornal. Tão-pouco a rejeita!

Como disse, em Portugal, a situação vivida pelos ?media? aquando da instituição da figura, não tinha paralelo com a da América dos anos 60. Bem pelo contrário, hoje, jornalistas e órgãos de comunicação social gozam de uma credibilidade excessiva, que algumas sondagens já mostraram. É uma questão cultural que não carece de análise nesta página, mas que está também na origem de uma outra diferença: enquanto que os países desenvolvidos se vêm debatendo com a perda de leitores, Portugal ainda está na fase de conquistá-los pela alfabetização e pelo aumento do poder de compra…

Reconhecendo o Provedor, implicitamente, um défice cultural no país, não partilha, porém, a leitura de Angelina Pereira Rodrigues no seu grau de pessimismo. E enjeita a classificação do público do JN, que pode inferir-se do tom da carta [?(…)penso que alguns leitores, na média muito média JN, não o entendem?].

Estudos feitos ao universo dos leitores JN mostra que a maioria se situa na ?média alta? e nos quadros ? sem que esta constatação represente menos consideração por todas as outras faixas.

Se o Provedor não se faz entender por todos os leitores (não recebeu, nunca, qualquer reflexo dessa potencial incapacidade), o défice é seu, que sempre assumiu e ensinou que o texto jornalístico tem de ser simples, claro e conciso ? justamente para que possa atingir o maior número possível de leitores.

Os leitores decerto que entendem o Provedor, e sabem que têm nele uma privilegiada porta para o diálogo com o ?Jornal de Notícias?, na sua plena dimensão.

Aliás, a ligação entre o JN e os seus leitores sempre foi uma das características valorativas do jornal ? pela proximidade, pela relação de confiança que os anos reforçam. A criação do cargo de Provedor não correspondeu a uma exigência ? foi antes um acto consagrador do fortíssimo laço entre os leitores e o seu jornal. E o reforço desse mesmo laço.

As sucessivas direcções do JN sempre tiveram a preocupação de manter esse inestimável capital de confiança, e nunca se furtaram ao diálogo com aqueles que são, no fundo, a razão de ser do ?Jornal de Notícias?. O Provedor, no entanto, para além de um gesto de gratidão para com os leitores, deveria ainda representar, em termos deontológicos, a consciência sempre alerta da Redacção.

E tenta sê-lo.

A página do Provedor não é, de facto, o reflexo de um diálogo constante ? seja com a Redacção, seja com os leitores. Até porque ela não pretende ser um relatório ? antes um instrumento pedagógico que aperfeiçoe, entre outras faces da cidadania, a capacidade crítica e a exigência dos leitores, por um lado; e o respeito, por parte dos jornalistas, por valores tão importantes quanto o são os que integram o capítulo constitucional dos ?Direitos, Liberdades e Garantias?.

O Provedor não se cansará, nunca, de lembrar aos seus companheiros de caminhada e a si próprio, que a palavra pode ser uma das armas mais crueis, com alvos sensíveis como a honra, o bom nome e a reputação de uma pessoa.

Os jornalistas entendem-no. Os leitores também."