JORNAL DE NOTÍCIAS
"Atravessar a ponte do jornalismo isento", copyright Jornal de Notícias, 8/6/02
"Há anos, num simpósio, uma questão levantada da plateia por um dos participantes acabou por revelar-se inesperado fulcro de todo um debate, de repente descentrado dos objectivos dos promotores da reunião. A verdade é que o encontro prolongou-se quase duas horas para além do termo estabelecido ? e tudo porque um académico se lembrou de defender que um jornalista é, tão-somente, um técnico de comunicação social. Aconteceu num período em que os ventos de Abril ainda eram brisa que, felizmente, levantava dúvidas constantes, e em que os jornalistas se consciencializaram de que as certezas eram (e são) o seu pior inimigo.
Não, aos jornalistas não basta dominar as técnicas jornalísticas e emprestar-lhes mais ou menos centelha. E isso porque as palavras não são mais do que veículos de factos ? e a edição de notícias envolve cuidados deontológicos, acuidade direccionada para o interesse público e preparação para aferir as sensibilidades em jogo.
Algumas destas qualidades escapam às capacidades pedagógicas das escolas, mas acabam por ser supridas nas redacções, no convívio com uma diversificada e complexa malha de experiências, em que o tempo de profissão é, algumas vezes, um valor acrescentado.
As notícias publicadas pelo JN a 30 de Maio e a 2 de Junho, envolvendo a ?ponte? que o feriado do Corpo de Deus, justamente a 30 de Maio, poderia proporcionar, são das que revelam a necessidade de alguma agudeza, que permita aquilatar das sensibilidades em jogo. É facto que as ?pontes? foram vedadas ao funcionalismo público pelo Governo, medida impopular que, como tantas outras, acabou por servir de instrumento da luta partidária em Portugal. Toda e qualquer notícia contra a ?ponte? ou a defendê-la; qualquer tentativa de medir a adesão às directivas do Executivo ou ao boicote individual ou dirigido ? poderiam ser apreciadas como posicionamentos do jornal e, como tal, como violação da equidistância exigida aos jornalistas.
… E Vítor Garcia, de Vila Real, fez, exactamente, uma leitura indiciadora de parcialidade do ?Jornal de Notícias?. Para o leitor, a notícia de 30 de Maio, com o título ?Contrariar o Governo e gozar quatro dias de descanso? é um ?(…) autêntico manual de como ludibriar as determinações do Governo, onde se ensinam todos os processos (ainda que um deles legítimo) de fazer gorar os objectivos propostos e tão necessários que são a recuperação económica. Chega-se mesmo a fazer recomendações quanto ao uso do atestado médico que ?pode levantar dúvidas?, mas terminando por dizer que ?a tarefa de identificar as eventuais doenças falsas é quase missão impossível??.
Vítor Garcia utiliza a notícia de domingo passado, ?Funcionários gozam ponte apesar da nega do Governo? na tentativa de demonstrar que há, de facto, um propósito do jornal, ?(…)confirmando a segunda notícia aquilo que, na leitura da primeira não era mais do que suspeitas, ainda que suspeitas fortes?.
Para o leitor de Vila Real, afirma-se no título ?aquilo que depois não se consegue nem se procura demonstrar no texto. Há uma senhora da UGT que diz que ?nesta altura do ano há muita gente que mete férias aproveitando os feriados do Corpo de Deus e do 10 de Junho?, mas que não se refere, concretamente, aos factos deste ano, e depois há um senhor de um sindicato que diz que não tem dúvidas que mais de metade dos funcionários vai fazer ponte. Isto dois dias depois das faltas que ele se deitou a adivinhar. Mas o JN não se importou de debitar um comentário recesso, já que o que era preciso era alguém a falar no sentido que lhe convinha.?
Vítor Garcia aponta, ainda, como exemplo gritante de falta de rigor e de manipulação o recurso a argumentos como os da diminuição do fluxo de trânsito nas principais vias de acesso às cidades de Lisboa e do Porto, confessadamente ?na falta de dados rigorosos quanto à ausência de trabalhadores nos serviços públicos?.
Domingos Andrade, editor de ?Sociedade?, secção onde as dias notícias foram editadas, não está de acordo com o leitor, e justifica:
?A matéria em causa mais não visava do que explicar aos leitores que, tendo direito a gozar folgas em atraso ou antecipar dias de férias, os trabalhadores da Função Pública só aparentemente conseguiram contornar as determinações do Governo. De facto, como não beneficiaram de um dia adicional de descanso a título de tolerância de ponto, utilizaram um dos dias de descanso que legalmente lhes cabe. Se alguma moral da história se poderia extrair da notícia, não é a do ?ludibrio? que o leitor, pelos vistos, alega, mas a de que o Governo conseguiu retirar aos trabalhadores um benefício tradicional, forçando-os a ?queimar? um dia de descanso…
Em relação à utilização, aparentemente ?impressiva?, do indicador fluxo de trânsito, que era facilmente observável por qualquer jornalista (não é a observação directa uma ferramenta credibilizada do repórter?), é natural que esta se justifique. Desde logo, porque a notícia foi elaborada no dia 1, sábado, quando estavam encerrados os serviços oficiais que eventualmente possuíssem ?dados rigorosos? sobre as ausências. A aguardar números oficiais ? se alguma vez viessem a estar disponíveis ? a notícia estaria completamente condenada por evidente falta de actualidade.?
A voz da Direcção foi a do subdirector, David Pontes, que não é substancialmente diferente da do editor. Diz David Pontes, confessando, embora que a sua análise é apressada, feita na pressão de múltiplas solicitações simultâneas:
?Aquilo que o primeiro artigo se limita a fazer, e bem, é explicar ao leitor (que também é cidadão/utente) que, apesar da directiva governamental, os funcionários públicos possuíam maneiras de efectuar uma ?ponte? mesmo sem a já habitual tolerância de ponto. Longe do jornalista dar ?um manual? aos trabalhadores da Função Pública, que, estamos certos, conhecem melhor do que ninguém os seus direitos, legalmente estabelecidos.
O segundo artigo em causa não se baseia em ?ilações?. Dá à estampa as opiniões de vários sindicatos recolhidas ao longo da semana e cita explicitamente dirigentes de dois deles. A impossibilidade de obter informações junto de organismos oficiais sobre o funcionamento da estrutura do Estado ? apesar de ter anunciado um inquérito à ?ponte? de 26 de Abril, quando muitos serviços fecharam contrariando ordens em contrário, até hoje o ministro Morais Sarmento ainda não o apresentou… ? levou a que o jornalista recorresse ao mais velho método de trabalho jornalístico: a observação directa. Deveria ter efectuado uma ronda mais completa por serviços e organismos do Estado? Deveria certamente. Mas isso não retira a validade ao método utilizado e não me parece indiciar qualquer vontade do jornalista em efectuar um julgamento tendencioso.?
Até porque não acredita na intenção de manipular, nem a primeira, nem a segunda das notícías em causa (o JN, mais do que um modelo, vem sendo uma escola de distanciamento que atravessou períodos da vida nacional bem mais conturbados do que aquele que actualmente se vive em Portugal), o Provedor, muito mais jornalista do que político, remete as suas preocupações para as aparências, renegando o ?fantasma? do conceito de Salazar de que ?em Política, o que parece é?. E pensa que nunca será demais repetir aquilo que já nestas páginas recordou por várias vezes: tal como a mulher de César, o jornalista tem que preocupar-se tanto com a realidade como com as aparências dessa realidade. Não basta que tenha a consciência de que é isento: é preciso que mostre aos seus leitores, sem margem para qualquer dúvida, essa mesma isenção.
Julga o Provedor que há, de facto, em ambas as notícias, elementos capazes de acender o rastilho da suspeita ? principalmente em quem procure nos textos indícios, que um posicionamento partidário torna mais fácil encontrar.
É verdade, e seguindo na esteira do raciocínio de David Pontes, que não vamos ter a pretensão de dar um manual dos seus direitos aos servidores do Estado, o que valeria por tentar ?ensinar o Padre Nosso ao vigário?. Mas, então, o que fica da notícia para além da correcção que inseria no seu último parágrafo? Os restantes dados, com procedimentos pormenorizados, não interessavam, decerto, aos restantes trabalhadores!
Quanto ao segundo texto, vejamos: de facto, aquilo que pretende ser uma notícia de um facto passado é preenchido, em dois terços, por previsões! É um bolorento ?talvez seja? no ?já foi?, inadmissível em jornalismo.
E se a abservação directa é um privilegiado instrumento no jornalismo, neste caso ela só nos permitiria concluir que houve menos movimento. Tudo o mais será dedução que só caberá na cartilha da profissão com sérias reservas expressas aos leitores.
A falta de elementos estatísticos não justifica coisa alguma. Principalmente porque o Provedor não vislumbra nem a urgência, nem a necessidade de uma notícia que, afinal, não é notícia!"