Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Hoje ao jornalista apenas interessa o que lhe escondem", copyright Jornal de Notícias, 10/11/01

"Só a crítica exigente promove e estimula o debate que, envolvendo os agentes do processo comunicacional, permite uma reflexão que há-de, inevitavelmente, conduzir a uma melhor informação.

Os momentos de crise são os que acentuam, sempre, as grandes debilidades que, tantas vezes, são muito anteriores a essas mesmas situações reveladoras. É o caso do controlo das fontes das notícias, bem como do papel da propaganda na estratégia do conflito. Um e outra estão a marcar as inquietações que envolvem os acontecimentos decorrentes do ?11 de Setembro?.

Constata o Provedor que, das questões que semanalmente lhe são colocadas, as que envolvem o tratamento jornalístico da guerra prevalecem, pelo volume e pela oportunidade. Nas várias frentes do confronto, a mediática cataliza, de facto, as atenções da opinião pública: pela positiva e pela negativa.

Bernardo Ferreira Ferraz, do Porto, que se afirma mais leitor de jornais do que espectador de televisão, analisa o trabalho dos jornalistas no terreno, enviados dos ?media? maioritariamente ao Paquistão e aos territórios afegãos dominados pela Aliança do Norte:

?Os relatos que nos mandam são marginais ao conflito, simples postais, com ou sem ilustração, que nos relatam a fome e a doença dos refugiados, as manifestações dos paquistaneses pró-taliban, a situação das mulheres de burqa, e o comércio de tapetes e de armas. Tudo isto repetido até à exaustão, até ao aborrecimento.?

Bernardo Ferraz admite que é importante que conheçamos essa cultura a que sempre voltámos as costas. ?É um passo no escuro absoluto, em direcção à compreensão de um outro mundo?. Queixa-se, no entanto, da saturação temática _ e acima de tudo daquilo que, em seu entender, ela representa:

?Tapam o rosto às mulheres e os olhos aos jornalistas. Só os deixam ver aquilo que lhes interessa. De um lado e do outro. Em termos militares, não há informação, só existe propaganda. O que é feito dos grandes repórteres de guerra, do Hemingway ao John dos Passos e a tantos outros? Sou da geração do Vietname.
Devorei as reportagens do Raymond Cartier, da Brigitte Friang, do Wilfred Burchet. O que se passa com esta guerra? Como podem os jornalistas aceitar o papel que lhes reservaram??.

Sara Mota Lima, de Braga, mostra-se mais preocupada com o aproveitamento da crise afegã como ?cortina de fumo? para a situação que vivemos em Portugal, em que o grande beneficiário é o Governo socialista. Falando do crescendo dos índices de aceitação ?de Guterres e dos seus ministros, que estavam com um pé na rua e que agora esfregam as mãos de contente, enquanto vertem lágrimas de crocodilo pelas vítimas dos atentados? a leitora diz-se descrente de um jornalismo que esquece a sua função enquadradora dos problemas e que ?tem a obrigação de lançar alertas para o hipócrita aproveitamento que está a fazer da crise mundial?.

Metade da história do jornalismo é feita da investigação sobre os factos que escondem dos repórteres; a outra metade é passada a descobrir os interesses obscuros da ?verdade? que vai ter com os media, que tantos lhes oferecem ?desinteressadamente?.

Mesmo em tempo de paz.

Hemingway e John dos Passos, que Bernardo Ferraz evoca, são dois entre felizmente muitos nomes de grandes correspondentes de guerra. Remontam ao tempo do chamado ?jornalismo cego?, em que a imagem (mesmo a fotográfica) não tomara, ainda, o primado da informação. O jornalista era, então, o historiador da sua época, fazendo juz ao conceito de Dovifat, segundo o qual ?o jornalismo á o ponteiro dos segundos da História?.

Mas não foi a fotografia a responsável pela subversão de valores, mas sim a televisão. Em poucos anos, os ?pivots? destronaram os repórteres _ porque mais importante do que os factos passou a ser a repercussão desses factos na opinião pública. (1)

Nos Estados Unidos da América o fenómeno é bem conhecido. Tanto, que hoje pode falar-se das eras pré-Vietname e pós-Vietname. Os correspondentes de guerra sempre acompanharam as tropas norte-americanas até à humilhante derrota em solo vietnamita. E cumpriram a sua missão sem grandes limitações. Mas, no Vietname, a Televisão tornou-se vedeta e foi responsabilizada pela crescente posição da opinião pública americana contra a guerra. As pressões sobre a Administração Johnson foram tão grandes que, a partir de dada altura, o único objectivo era uma retirada não humilhante.

As administrações posteriores aprenderam a lição: a invasão de Granada (1983) não contou com um único jornalista, e muitas das regras estabelecidas para a cobertura da intervenção no Panamá (1989) acabaram por ser, apenas, balões de ensaio que mostraram a sua eficiência na operação ?Tempestade no Deserto?, vulgo Guerra do Golfo (1991). De facto, um estudo levado a cabo nos EUA sobre as repercussões na opinião pública norte-americana da guerra contra o Iraque (Jhally, Lewis e Morgan) mostra claramente que a gigantesca cobertura mediática não foi mais do que a manipulação de uma mensagem conveniente, espectacular mas sem informação.

No Afeganistão, hoje, passa-se o mesmo: do lado americano, as raras imagens do teatro de guerra com informação (?) são cedidas pelo Estado Maior dos EUA; do campo dos taliban, apenas a ?verdade? da Al-Jazeera é difundida.

Aos jornalistas cabe, em termos de informação, continuar a sua missão histórica de procurar o que lhes escondem, e de evitar serem meros instrumentos da cada dia mais sofisticada guerra da propaganda.

Também compete aos media o papel que Sara Lima reclama, de clarificação e denúncia das apropriações saprófitas do conflito. Pensa o Provedor que a leitora não pode queixar-se de um afrouxamento da vigilância democrática que cabe, também, aos órgãos de comunicação social. Nem a nível da informação, nem pela opinião – no ?Jornal de Notícias? como nos outros media. Não é fácil, no entanto, desviar as atenções das consequências de uma tragédia preparada, justamente, para criar o clima emocional em que ainda estamos mergulhados.

(1) Um estudo de grande actualidade sobre o assunto, ?O Quinto Poder ou a Legitimação do Poder do Estado pela Opinião Pública?, de Manuela Niza Ribeiro, foi publicado no n? 2 (Junho de 2001) da Revista da Universidade Moderna do Porto _ Colecção Estudos Europeus."