Friday, 18 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1310

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"A grande distância entre o ver e o ler", copyright Jornal de Notícias, 07/9/02

"Há pouco mais de um ano, mais precisamente a 26 de Agosto, deu conta o Provedor, nesta página, do confronto de posições que, então, envolveu as reportagens da Volta a Portugal 2001.

De um lado, um número considerável de leitores contestava o tratamento da prova maior do ciclismo português — em termos de qualidade da informação, mas sobretudo pela quantidade (o número de páginas dedicado à Volta fora reduzido a menos de metade).

Por seu turno, justificando a redução do espaço dedicado à prova com a quebra de compromissos comerciais e com a modernização (?o jornal tem evoluído e tem-se modernizado sem ceder um milímetro ao essencial dos seus princípios?, como então afirmou o director adjunto José Leite Pereira), a Direcção considerou que o destaque diário dado à Volta, paralelo do que o JN normalmente atribui a um jogo de futebol importante (duas páginas), não foi coisa pouca, reiterando que o jornal não prestou um mau serviço ao ciclismo ou aos seus seguidores. O jornalista Manuel Neto, ao tempo editor de Desporto, e o Conselho de Redacção consideraram que o JN cumpriu, procurando fornecer o essencial e mais significante.

O tema volta a merecer a reflexão pública do Provedor com os leitores. Porque os desabafos, já muitos em 2001, multiplicaram-se em 2002.

Ainda que incorrendo no risco da repetição conceptual, todos aqueles que pensam que vale a pena expressar opinião sobre os conteúdos do JN, na esperança de que ele seja cada dia mais o ?seu? jornal, exigem que se debata um pouco o valimento (necessariamente subjectivo) desse desconforto manifestado com confiança.

?O ?Jornal de Notícias? deixou, praticamente, de ligar ao ciclismo, o mais popular desporto?, desabafa Rui Martins, de Vila Nova da Telha, na Maia.

Antigo ciclista amador, residente em Canelas, Gaia, Domingos de Almeida considera que se ?passou do 80 para o 8?, e está confiante em que o JN mude o rumo.

De Santa Marta de Portuzelo, Carlos Dias lamenta: ?Foi o vosso jornal que me ajudou a gostar das bicicletas, mas agora tenho que comprar outros para andar a par do que se passa?.

?Fica o JN mais pobre e os leitores menos esclarecidos?, protesta João Guedes Pinto, de S. Paio de Oleiros, enquanto que Augusto Pinheiro, de Bustelo, Oliveira de Azeméis, alerta para que ?o ?Jornal de Notícias? tem tradições no ciclismo, modalidade popular que arrasta multidões?.

Estas apenas algumas das posições expressas ao Provedor. Mas que expressam o sentimento da maioria: no fundo, excepção feita a Carlos Dias, não há queixas de conteúdo, de qualidade — existe, essencialmente, um sabor a pouco, um défice quantitativo.

Comecemos, pois, pela excepção. Diz o leitor de Santa Marta de Portuzelo que passou a ter que comprar outros jornais ?para andar a par do que se passa?. Na Volta, naturalmente…
Entramos, aqui, no domínio da subjectividade.

Quando é que Carlos Dias se sente informado até à saciedade? É óbvio que não lhe bastam as classificações, o relato das etapas e um comentário a cada uma das jornadas ciclísticas — porque esses não faltaram nunca. Mas algo falhou, ao ponto de criar a insatisfação de que se queixa.

Arriscamo-nos a entrar por um inquérito sinuoso, difícil e inconclusivo dada a diversidade de gostos e de conceitos. No fundo, estamos perante um propósito tão difícil como o de definir qual é a refeição, a cozinha que satisfaz um universo diversificadíssimo de pessoas. Um apreciador da cozinha francesa olhará um ?gourmand? português como um bárbaro, enquanto que este olha, com piedade, o gaulês sentado diante de um prato praticamente vazio à partida.

Sem iludir a questão, a verdade é que todos quantos se queixaram sentem que lhes trocaram, do ano 2000 para cá, o cozido à portuguesa por uma ?omelette aux fines herbes? sem qualquer acompanhamento, e mesmo os que eventualmente tenham o estômago apaziguado, continuam a sentir o contagiante desconforto dos olhos.

A explicação é fácil… a solução não o será tanto sem a vontade estóica de uma dieta!

Reconheçamos no ?Jornal de Notícias? a sua forte vertente desportiva (em quantidade e em qualidade) — ainda que a repartição do espaço pelas diversas modalidades seja frequentemente contestada pelas minorias que praticam ou desfrutam do desporto amador. Compreende-se, no entanto, que esse difícil equilíbrio tenha como critério o número de adeptos.

Por isso o destaque dado ao futebol. E ao ciclismo, também ele desporto de multidões.

Acontece, porém, que factores não menosprezáveis, como a publicidade, introduzem, por vezes, desequilíbrios por excesso — que começando por ser visto como exageros, acabam por ser absorvidos e por tornar-se, mesmo, indispensáveis.
Foi o que aconteceu com a Volta a Portugal.

Não será difícil aos leitores imaginar os custos da organização de uma prova ciclista como a Volta — que, como se sabe, não vive apenas dos ciclistas. Estes, no fundo, estão em minoria na gigantesca caravana que os envolve.

Todo o suporte financeiro da prova teve origem, entre 1981 e 2000, em patrocínios e em publicidade. E, como ninguém dá nada que não seja na esperança do usufruto de benefícios, foi criada uma cadeia de compromissos comerciais, que acabaram por determinar o número de páginas diariamente atribuídas à Volta.

?Um exagero, um desperdício, uma falta de senso? — foram protestos que a Direcção enfrentou nos primeiros anos. Alguns leitores não entendiam (e portanto não aceitavam) que se entrevistasse o dono de uma fábrica de revestimentos cerâmicos ou o representante de uma marca de relógios; outros perguntavam o porquê de se gastar uma página com um presidente de Câmara, só porque uma etapa, no dia seguinte, acabava no município a que esse autarca presidia.

Acabaram por diluir-se os desabafos — talvez na compreensão do inevitável processo de apoio e de incentivo a uma das modalidades que mais carinho recebe dos portugueses. Mais ainda (e como se recolhe das reacções à cobertura da Volta em 2001 e este ano), os textos antes suportados com dificuldade tornaram-se desejados, exigidos!

Entenderão os leitores que muito do material, então com
inequívoco enquadramento comercial, hoje não se justifica, não tem cabimento num desequilíbrio editorial sem contrapartidas e com grandes custos. Mas, decerto que a Direcção JN será também ela sensível à realidade de que o costume (e neste caso um costume com 20 anos), vale muitas vezes por um contrato tácito. E entre o 80 e o oito…
Uma coisa é certa: não há qualquer legitimidade para estabelecer ligação entre o espaço dedicado nos dois últimos anos à cobertura da Volta e qualquer retaliação do JN à Federação Portuguesa de Ciclismo. Dissemo-lo mais do que uma vez.

E continuaremos a prová-lo."