Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Vontade de espreitar pela fechadura… até dos títulos!", copyright Jornal de Notícias, 8/12/02

"O título é infeliz. Sem dúvida! ?Crimes sexuais na Judiciária de Faro? tem, no contexto mediático que algumas manchetes lhe deram, no seguidismo do mórbido espectáculo em que alguns jornalistas se ?pivotearam? pelas televisões do costume, uma carga semântica de fazer inveja aos mais escabrosos ?Big Brothers? ? sejam eles ?reserva? ou ?colheita do ano?.

Aliás, nem valerá muito a pena discorrer sobre semânticas, quando o que está declaradamente em jogo é a vontade de espreitar pelo buraco da fechadura e assistir uma sessão ?hard core?, quando deveria olhar-se e ver, tão-somente, uma porta fechada.

O título é infeliz ? reconhece-o de novo o Provedor. Mas deveria, quando muito, levar ao sorriso e a um ou outro desabafo paternalista, do tipo ?estes jornalistas são cá uns malandros…!? . Um sorriso sem lábios para andar, até porque, logo por baixo, aparecia, forte quanto baste, o pós-titulo esclarecedor (quiçá descoroçoante para alguns!): ?Directoria do Algarve vai liderar e definir estratégias de investigação a abuso de menores?. Absolutamente claro!

Uma circunstância mais: se a ambiguidade nascesse de um título na primeira página, o Provedor tem a certeza alicerçada na experiência de que não faltaria o argumento que sempre recordam aqueles (e são muitos, infelizmente) que se bastam com a manchete e com mais umas quantas chamadas da página de rosto. Que já nem lêem o desenvolvimento no interior do jornal.

Neste caso, porém, a manchete não deixava qualquer nesga para dúvidas: ?Concentrada em Faro investigação da pedofilia?. Mas, talvez porque não conviesse, os reclamantes não atribuíram importância à ?Primeira?, à montra do jornal.

Aconteceu na edição de segunda-feira, dia 2, e a notícia que esteve na base de alguns protestos dizia respeito à decisão de Adelino Salvado, director nacional da Polícia Judiciária, de atribuir à Directoria de Faro competências específicas sobre a investigação de crimes sexuais.

Algumas das reacções foram assumidas em nome da recuperação do prestígio das instituições. Como se, eventualmente, as nódoas recentemente caídas em fardas ou cartolas tivessem a chancela dos ?media?.

Justino Pereira, de Chaves, apela à razoabilidade dos jornalistas que, em sua opinião, ?estão a denegrir corporações de grande preito e dignidade, que vêm garantindo a segurança no país e o bom nome de Portugal lá por fora. Está a manchar-se a honra de homens com excelentes folhas de serviços. Depois, queixem-se se o povo lhes perder o respeito. Para onde vamos todos como nação, se isto acontecer??

Para o leitor de Chaves, que acha indigno de um jornal respeitado como o JN, o título que o Provedor começou por declarar infeliz, o primeiro indício de uma ?verdadeira campanha contra a autoridade? foi dado pelas notícias dos crimes de corrupção detectados em elementos da GNR de serviço no Algarve. E o seu juízo sobre a natureza persecutória das notícias baseia-se na antiguidade e na continuidade de um crime que todos conheciam, ?velho como o Homem?. Diz Justino Pereira que ?dar algum dinheiro para evitar pagar a multa por inteiro é tão antigo como o abuso sexual em crianças internadas em asilos, orfanatos, colégios e seminários. E quem manda nas polícias, nessas casas ou nos governos sabe disso muito bem há muitos muitos anos. Se não agiram antes é porque acharam que não deviam fazê-lo. Em vez de julgarem que tudo sabem, os senhores jornalistas deviam pensar se não foi bem pior desacreditar essa casas que tanto bem fazem às crianças pobres e pôr de rastos a autoridade.?

José Soeiro, de Nelas, acha, por seu turno, que os ?media? estão a ser um instrumento do poder político, acabando por dar ao Governo ?e aos seus homens de mão? argumentos para procederem a limpezas de conveniência, como o ?verdadeiro desmantelamento da Brigada de Trânsito, em nome do perfil profissional, quando deviam dizem em nome do frete político?. E, passando da generalização ao exemplo daquilo que considera uma campanha, acusa frontalmente o ?Jornal de Notícias? de ?má fé e de instrumentalização da onda contra as autoridades, nomeadamente contra a PJ?, que diz documentada no título ?que faz com que todos pensem que a PJ de Faro é um antro repugnante de violadores de criancinhas e não só?.

Luís Monteiro, do Porto, pelo contrário, ?elogia? o autor do título. ?É saudável ver que o sarcasmo e a arte de produzi-lo ainda moram no JN. A ambiguidade é uma difícil forma de elaboração, e permite deixar aos outros o julgamento que mais lhes convenha. Fazer de outra forma seria uma fórmula da mais pura hipocrisia. ?.

Para o leitor, não há inocentes no novelo da pedofilia que, um pouco todos os dias, se vai desfazendo. E os mais inocentes serão os agentes dos crimes…

?A pedofilia, que a nossa sociedade considera um crime, é um ancestral costume de muitos povos. Os islamitas, por exemplo (um dia destes é razão suficiente para a cruzada do Bush). Mas, e em minha opinião muito bem, entre nós é um crime. Toda a gente sabe, no entanto, que uma coisa é o que a Lei diz e outra o que os cidadãos fazem. E muitos dos que condenam publicamente a pedofilia, toleram-na, se é que não a praticam. Se fizerem estudos sérios, vão descobrir, tenho a certeza, que os maiores índices de pedofilia se verificam dentro da própria família?.

Para Luís Monteiro o problema é de índole cultural e o défice dessa mesma cultura constrói a permissividade, o deixa correr. E diz:

?Bem piores do que todos os Bibis de todas as Casas Pias são os que, com o silêncio, lhes deram cobertura e, de certa forma os incentivaram. Qualquer que fosse a causa da inacção e do silêncio. (…) Dos ex-provedores ao presidentes da República, que todos metam a mão na consciência…?

Mas os ?media? não saem incólumes da crítica do leitor ( o ?Jornal de Notícias? incluído), divididos que são em dois grupos: ?os espectaculosos e os puritanos?. Segundo Luís Monteiro, ?se é triste o espectáculo da exploração e da exposição das vítimas, que acabam por sê-lo dupla ou triplamente, não é mais sadio o falso moralismo dos outros, que vêm pregar moral, quando as suas páginas são todos os dias palco de anúncios da prostituição mais escabrosa…?

Sobre o tratamento dado pelos ?media? aos crimes que envolveram casapianos já o Provedor se pronunciou na página do domingo passado, onde Luís Monteiro pode encontrar posições convergentes com as suas. Mas não todas…

Qualquer que seja a velocidade da aculturação que a globalização promove, a moral e os costumes dos povos ainda marcam, profundamente uma identidade que as leis ratificam, regulando procedimentos da vida em comunidade.

As leis não são arbitrárias e as suas fontes, em democracia, são sólidas e inquestionáveis. Não é (não pode ser) o número dos desvios comportamentais um factor de abrandamento da prevenção, da vigilância e, se necessário da repressão. Onde quer que se verifique a maior incidência dos actos marginais.

É verdade que socialmente mais grave do que os próprios crimes é a cortina de silêncio que, ao longo de décadas, os protegeu e, neles consentindo por omissão, terá acabado por incentivá-los. Não fora o trabalho jornalístico agora desenvolvido e continuaria a germinar, num viveiro cada dia maior, a cultura dos poderosos, dos intocáveis – a oligarquia dos poderes.

Reconheçamos, não fechando, embora, os olhos aos seus desvios, o mérito dos ?media?. E utilizar as páginas de publicidade e o seu conteúdo para acusá-los de hipocrisia e de falso moralismo é tão forçado como querer dar ao título da edição do dia 2, contra todas as evidências, uma conotação atentatória do prestígio da Polícia Judiciária.

O título é, de facto, pouco feliz. Mas só enganou quem quis ser enganado. Ou nem isso!"