JORNAL DE NOTÍCIAS
"Quem julga quem ou quais os verdadeiros limites do espectáculo", copyright Jornal de Notícias, 26/1/03
"Não recordo nenhum programa televisivo que, como ?Bombástico?, tenha feito jus ao nome. A tal ponto que as ondas de choque, longe de diminuirem de intensidade, ameaçam fazer sentir, ampliados por via institucional, os reflexos da deflagração.
O tumulto das reacções (menos ao conteúdo e muito mais à forma)?assumiu um tal volume, que é de presumir que, mais uma vez, seja suficientemente espectacular para concentrar em si as causas, as consequências e até a epilogal moralidade.
?Les portugais sont toujours gais? foi frase que, há quase 50 anos, fez corar de vergonha algus dos nossos concidadãos. Num outro contexto, mas com o mesmo significado, Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro no PREC, lembraria aos manifestantes que ?o povo é sereno!?
O Provedor, também ele, sentiu os reflexos do espectáculo televisivo, face à indignação que lhe foi manifestada por 14 leitores do ?Jornal de Notícias?, alguns dos quais exigem para o seu JN ?um papel mais interventor na moderação de uma sociedade da comunicação que parece ter perdido, mais do que o sentido da sua responsabilidade, o senso comum? (Carlos Martins de Castro, da Amadora).
Mas o leitor da Amadora não é o único a preconizar que o seu jornal ?dê corpo a um debate, tão amplo quanto possível, sobre os caminhos que os ‘media’ querem percorrer, para que os portugueses digam de sua justiça a forma de conter não apenas a imoralidade mais primária e mais chocante, mas a afronta às instituições democráticas? (Alberto Silva Martins, da Covilhã).
O tema provocou,de facto, reacções tão apaixonadas que, em alguns casos, decerto se afastaram, consideravelmente, do raciocínio que, a frio, seria impensável em quem, agora, se dirigiu ao Provedor da forma que o fez.
Porque houve, mesmo, quem defendesse o regresso à Censura, ao prévio visionamento dos programas televisivos.
Desde logo há que entender que são indissociáveis ?os caminhos que os ‘media’ pretendem percorrer? daqueles que o público deve exigir que a comunicação social percorra.
Vão longe os tempos de uma única televisão, a do Estado; de uma só poderosa emissora de rádio (a da igreja) para contrapor à paga pelos dinheiros públicos; e dos jornais directa ou indirectamente estatizados. Hoje, para além dos serviços públicos de rádio e de televisão, há toda uma panóplia de emissoras privadas, e não subsistem um jornal ou uma revista de grande informação nacional que não sejam privados.
Só o dinheiro da publicidade faz correr ?os media? na procura de audiências — uma competição que, mais frequentemente nas televisões, leva a pisar as fronteiras do bom senso, do bom gosto e da própria lei.
Se um programa choca, ao ponto de promover um autêntico levantamento da opinião pública nacional é porque se verificou uma de três premissas: ou infringiu a lei de forma grave; ou feriu profundamente a sensibilidade da maioria dos portugueses; ou agrediu os espectadores e transgrediu as normas legais,simultâneamente.
Portanto, não há problema aparente: se violou as normas jurídicas, os tribunais são competentes para aplicar sanções reguladoras. Se praticou um verdadeiro insulto à inteligência da maioria dos espectadores e um atentado à razoabilidade aceite por esse mesmo público –então será certo e seguro que as audiências do programa vão baixar ao ponto da inevitabilidade da rápida extinção do mesmo.
Parece haver uma dose detectável de hipocrisia em algumas das posições que se assumem perante realidades como a de ?Bombástico?: como que se recusa a capacidade de saber optar por um programa de televisão aos mesmíssimos portugueses a quem, depois, já se reconhece idoneidade para escolher o Governo ou o presidente da República.
Pelo menos é o que se infere de posições que, ora inflamadas por um corporativismo epidérmico, ora incapazes de resistir a um protagonismo de choque, sempre respondem ao chamamento mediático. Sem escaparem à sugestão recorrente de medidas reguladoras que nunca se atrevem a especificar — não fora descobrir-se nelas o saudosismo do confortável lápis azul dos coronéis
A situação agora provocada pelo mais recente dos polémicos programas da SIC não é, no fundo, muito diferente da agitação que o surgimento do ?Big Brother? então causou.
E hoje já ninguém fala das célebres casas dos famosos (sim, famosos, porque mesmo os que não o eram, passaram a sê-lo depois de terem posto literalmente a nu a sua privacidade).
Findou-se o falatório como há-de acabar a fama dos residentes: apodreceu, antes que alguém tivesse soltado o ai de uma solução reguladora.
Felizmente!
Que ?Bombástico? é um programa que não devia ser exibido nas televisões portuguesas? Escrevo na sexta-feira, ainda antes do programa anunciado, e, até agora partilho da opinião do presidente do Supremo Tribunal de Justiça: é ?telelixo?.
É inaceitável que, em nome do efeito espectacular, se rasguem e pontapeiem publicamente sentenças dos tribunais. É uma afronta a um dos poderes democráticos, verdadeira incitação ao desrespeito, à desobediência pública. Mais: simbolicamente, vale quase pelo espezinhamento dos símbolos nacionais, como a Bandeira.
Mas à justiça portuguesa caberá julgar (e condenar, se for caso disso) os desvios que, imputados ao responsável pelo programa, não desresponsabilizam a emissora e os seus responsáveis.
A denúncia de casos graves de negligência é obrigação dos ?media?, acima da qual não deve estar nenhum dos poderes. Mas a verdade e o rigor não podem ser sacrificados ao espectáculo ou por ele prejudicados. E é intolerável que se lance o descrédito público sobre instituições que são o esteio da sociedade democrática em que vivemos.
Como o Poder Judicial.
Mas, repete-se, a legislação e os mecanismos de regulação existentes são por si sós suficientes para derimir os casos de abusos.
Aos ?media? cabe, quer pela notícia, quer pela opinião, alertar o público para a falta de qualidade e para os efeitos nocivos quer de um programa de televisão, quer de um texto de imprensa, quer ainda da intervenção de um político, de um magistrado ou de um sacerdote.
Aos jornalista caberá debater, sempre com mais profundidade, as questões éticas e deontológicas ? nomeadamente as que demarquem com clareza as fronteiras entre a informação e o espectáculo."