Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"São muitas as medidas do conceito de ?isenção?", copyright Jornal de Notícias, 27/7/03

"Em princípio isentos são aqueles que sobre um tema pensam de forma próxima da nossa.

Os conceitos de objectividade e de subjectividade, bem como tantos outros que lhes estão associados são, nas diversas disciplinas que sobre eles se debruçam, alvo de estudos verdadeiramente apaixonantes que, no domínio da Psicologia da Comunicação, contam com experiências muito divulgadas. (Algumas delas já o Provedor trouxe a esta página).

A nível dos ?media? são tema recorrente pela negativa – quase sempre das frequentes vezes em que leitores, ouvintes ou espectadores não conseguem evitar que os seus sentimentos interfiram na crítica da informação.

Mostra a experiência que o cidadão comum, no crescente maniqueísmo da sociedade em que vivemos, tem como bitola da isenção, da independência dos jornalistas, o seu próprio julgamento dos temas em análise. No fundo, para cada um de nós funciona a versão doméstica da máxima cara aos ditadores, segundo a qual ?quem não está connosco está contra nós?.

Vejamos, por exemplo, a acusação que faz ao JN o leitor Miguel Moreira:

?Gostaria de pensar que o artigo do passado domingo sobre as mortes no Iraque (?Mais americanos mortos do que na guerra de 1991?) segue os números oficiais da administração Bush por uma questão de preguiça ou falta de iniciativa dos vossos jornalistas.

?A alternativa será a de que o JN carece em absoluto da isenção que o Provedor propala tão frequentemente nas suas crónicas semanais. Esta alternativa é francamente pior, na minha opinião, pelo que dou o benefício da dúvida e opto pela preguiça.?

O leitor indica, complementarmente, dois endereços electrónicos de páginas (uma delas da CNN) onde, em sua opinião, os números das baixas americanas no Iraque são mais credíveis do que os da fonte a que o JN recorreu.

Será menos reflectido por parte do leitor acusar o JN de falta de isenção num assunto em que, na opinião do Provedor, tem havido uma exemplar preocupação em dar voz a todas as correntes – quer no terreno, por parte dos enviados ao Iraque, à Turquia e à Síria e à Jordânia, quer no tratamento da informação que, com origem em várias fontes, é feito na Redacção.

Se em qualquer guerra ?a primeira vítima é a verdade? (e a afirmação tem décadas) – numa invasão que teve seguramente mais críticos do que apoiantes, justificada por argumentos sempre duvidosos e hoje envoltos naquilo que já é muito mais do que uma sólida suspeita de mistificação, não parece que o número de mortos justifique uma discussão académica, muito menos que sirva de suporte a uma acusação de parcialidade.

Até porque os critérios da contagem são diversos (a referida página da CNN, por exemplo, junta militares britânicos e dos EUA), e se aqueles para quem um número elevado de mortos reforça as suas teses contabilizam baixas em combate ao mesmo nível das sofridas em acidentes de viação, e de outras que com a guerra só têm a ver o cenário em que ocorreram, naturalmente que os que pretendem afastar a imagem de um novo Vietname têm critérios contabilísticos antagónicos.

O mais importante da destruição de um país como o Iraque será, neste momento, a discussão do número exacto dos jovens imolados a desígnios que não chegaram a conhecer?

Todas as guerras, todas, acabam por ser , para o Homem, oportunidades perdidas de aprender a lição da paz. Porém, nem quando sedimentam e se tornam História os factos passam a entretecer as fronteiras éticas da civilização.

Questionar o rigor de um número quando todos os dias se põem em causa as grandes epopeias dos heróis forjados por interesses nacionais ou pessoais -isso sim, parece despiciendo.

O resgate da soldado Lynch será, provavelmente, apetecível argumento para Hollywood e tema de ?best seller?, mesmo depois de se mostrarem inquestionáveis os testemunhos da elevada percentagem de ficção que o episódio encerra.

E se uma produtora e um jornalista da ?Sky News? foram suspensos pelo canal britânico, depois de ?The Guardian? ter denunciado que as imagens divulgadas como sendo recolhidas em pleno teatro de guerra, foram filmadas a bordo do submarino ?HMS Splendid?, quando ele participava em exercícios, na costa do Reino Unido, também é certo que estes não serão os únicos casos mistificadores e comprometedores de jornalistas.

E as circunstâncias em que apareceu o cadáver de David Kelly – qualquer que venha a ser a versão oficial ou oficiosa da sua morte não é, já, um terrível libelo contra o comportamento dos políticos, dos jornalistas e da Polícia, que deveria provocar, em cada um de nós, uma reflexão que vai além do questionar de um número?

Com menos de 250 anos de vida como nação, os Estados Unidos da América do Norte são uma das mais velhas democracias do mundo, só ultrapassados pela pátria da Magna Carta. É essa democracia (a mesma que tornou possível o ?Caso Watergate?) que não deixa de denunciar os desvios que possam comprometê-la.

Nós portugueses fazemos um aprendizado democrático que atravessa, neste momento, uma fase particularmente conturbada.

O cidadão anónimo assiste, expectante, à convulsão dos poderes que terão de sair prestigiados nesse julgamento que é, talvez, o mais importante da História do país.

Todos temos de ter consciência da fulcralidade do momento e do papel que a cada um de nós cabe.

Os jornalistas, por exemplo, não podem envolver nos créditos da denúncia da rede pedófila uns quantos abusos deontológicos em que principalmente as televisões se esmeraram.

Da mesma forma, a máquina da justiça deve combater a aparente sede de protagonismo, e a necessidade de afirmação frente à força que os políticos algumas vezes procuram na legitimação do voto.

Quanto à política partidária, só tem que provar que, emanação que é daqueles que a justificam, não está acima deles nos direitos liberdades e garantias que a Constituição consagra. Nem quando um dos seus pares é posto em causa.

Que a invasão do Iraque já fez mais do que as 149 vítimas a que nos referimos na edição de domingo passado?

Jorge Monteiro Alves, editor de ?Mundo?, responde:

?É evidente que a editoria Mundo norteia as informações que vincula, nomeadamente no que se refere a estatística, através de fontes oficiais, citando-as, obviamente.

?As alusões a ?preguiça?, ?falta de iniciativa? ou ?falta de isenção? não são dignas de qualquer comentário a esta editoria.?

Que os jornalistas podem (e muitas vezes devem) confrontar as fontes – principalmente as reconhecidamente divergentes? Claro que sim. No caso vertente, porém, e para ilustrar a tese em causa de que a guerra deste ano já fez mais vítimas mortais do que a de 1991, bastava que o número fornecido ultrapassasse o já há muito assumido para a 1? Guerra do Golfo. Foi o que aconteceu, e ainda por cima com ao aval do próprio Pentágono!"