Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Opinião pública não pode substituir justiça dos tribunais", copyright Jornal de Notícias, 23/12/01

"?A revelação da identidade de um qualquer arguido é sustentada pelo princípio da abstracção da lei, que rege o Estado em que vivemos. Não sendo o JN um jornal que se rege por princípios corporativistas, a notícia refere que o médico ?está a ser julgado pelo alegado crime de negligência médica?. Assim tem-se procedido e procederá em relação a um advogado, a um mecânico ou a um desempregado?. Esta é parte da resposta de um jornalista da Redacção JN a interpelação do Provedor, tendo por tema a notícia de uma audiência de um julgamento que decorre em Barcelos, e em que um clínico é acusado de procedimento profissional inadequado, que terá levado à morte um bebé de 18 meses. Foi publicada no passado dia 18, em ?País? (página 34).

É interessante verificar como as palavras, algumas palavras, se tornaram fantasmas domiciliados em castelos semânticos de estranhos medos. Por exemplo o ?corporativismo? desenterrado pelo repórter a despropósito, para depois juntar um advogado, um mecânico e um desempregado num ramalhete de novorriquismo democrático, que não tem a ver com o caso.

Porque o que está em causa é a perspectiva levantada por um leitor de Vila Nova de Gaia, também ele médico, que considera que a identificação do seu colega agora no banco dos réus vale por ?uma verdadeira sabotagem profissional? do acusado.

Para o clínico de Gaia, ?é particularmente difícil obter uma condenação de um médico por negligência. Tão difícil, que as dúvidas dos juízes acabam, quase sempre, por dar guarida a casos reais de incúria ou de incompetência. Porque não podem provar-se?. Precisa o leitor:

?No cerne do acto médico está o diagnóstico. E o diagnóstico tem por base a sintomatologia do doente, que nem sempre pode ser alicerçada em meios complementares desse mesmo diagnóstico. Os sintomas que ditaram um diagnóstico e o consequente acto médico de urgência podem não ser os autênticos, porque dissimulados por circunstâncias várias. Uma simples aspirina basta, muitas vezes. Este risco vem sendo provado aos magistrados em diversos julgamentos, em Portugal e no estrangeiro. E se os juízes não hesitam em absolver, na dúvida, os réus, porque hão-de condená-los os jornalistas??

Consultado pelo Provedor, o Conselho de Redacção considera:

?1. Como tem sido referido em pareceres anteriores, a cobertura jornalística das audiências de julgamento visa garantir a extensão aos leitores do benefício do princípio da publicidade daquelas.

?2. Não se conhece, nem na lei processual penal nem nas práticas forenses ou jornalísticas, quaisquer restrições à publicação da identidade dos arguidos.?

Discorda o Provedor do parecer do CR. Em primeiro lugar, porque a omissão do nome do arguido, num caso desta natureza, em nada prejudica o princípio da publicidade dos julgamentos, que a lei consagra.

É verdade que o preceito constitucional da presunção da inocência, mesmo nas leis reguladoras, não faz depender essa presunção do anonimato. Mas também é certo que a menção da identidade (salvaguardando a aplicabilidade da sanção pública, pós-sentença transitada em julgado) não é valorativa da notícia, nem da função social dessa mesma notícia. Quando muito, serve como elemento credibilizador junto do público — ainda que não pareça ao Provedor que haja, entre os leitores, quem possa pensar, por falta do nome do arguido, que a notícia de um julgamento concreto seja uma invenção jornalística.

Todos aqueles que estão próximos do caso — dos pais do bebé à família do médico acusado, passando por vizinhos, amigos e conhecidos — o vivem com intensidades que variam em função da distância que os separa dos protagonistas. E conhecem, naturalmente, a identidade do réu. A todos os outros o nome do acusado não diz nada hoje. Amanhã, se absolvido o réu, esse silêncio em relação à sua identidade não será mais do que um complemento da justiça dos tribunais. No caso de uma condenação de que já não seja possível recurso — então sim, publicite-se-lhe o nome. O país tem a necessidade de saber dos graves erros dos seus cidadãos — isso independentemente das sanções deontológicas da Ordem dos Médicos, que podem chegar à inibição de exercer a profissão para o resto da vida.

Há anos, li num jornal francês uma excelente crónica sobre um caso que apaixonou a opinião pública do país. De um dos hospitais parisienses fora desviada, ao longo de quase dois anos, uma considerável quantidade de drogas, que entrou no circuito comercial, onde se movia toda uma cadeia de indivíduos, maioritariamente funcionários hospitalares.

A Polícia desmantelou a rede, e o julgamento, com um número elevado de arguidos, foi fortemente mediatizado em França. Alguns jornais publicitaram os nomes de todos os acusados — entre eles o director da farmácia do hospital que, com mais dois ou três acusados, viria a ser considerado inocente. Foram absolvidos, naturalmente.

A crónica que eu li tinha por motivo o suicídio do director da farmácia. Demitido pela estrutura hospitalar ainda antes do julgamento, o processo de reintegração compulsiva corria todos os longos e pesados trâmites burocráticos. Mas o farmacêutico procurava, não só em Paris, mas um pouco por toda a França, um outro lugar ? já que também ele não se disponibilizava a trabalhar com aqueles que o condenaram administrativamente antes da Justiça. Porém, todas as portas se lhe fechavam, todos os hospitais tinham a lista dos arguidos que, ainda que sem esse propósito, a comunicação social tinha ?julgado e condenado?.

O caso do farmacêutico francês (quantas situações paralelas terão, já, existido em Portugal, sem que as conheçamos?!) não é sequer, como se vê, tão delicado como uma acusação de negligência médica. Mas a sua investigação incorreu em erros — e erros deste tipo têm, sempre, consequências imprevisíveis, quase sempre graves.

Publicitar o nome de um criminoso preso em flagrante corresponderá a um risco diminuto para o jornalista. Em quase todos os outros casos, o bom senso recomenda a omissão da identidade. O interesse público deve guiar os jornalistas — e esse interesse não é ferido pelo resguardo do nome de alguém que as autoridades presumem culpado, mas que será sempre inocente até que a última instância judicial possível o condene.

Política com religião radicaliza sensibilidades

Diversos leitores (António José Pereira, de Gaia; Carlos Eugénio Peres, de Crestuma; Jaime Dias Roldão, de Santo Tirso; Dina Amaral, de Lisboa; e Roberto Tanjinho, do Barreiro) escreveram ao Provedor protestando contra a letra e o espírito de um texto publicado na ?Página do Leitor?, subordinado ao título ?O dalai-lama?.
Todos consideram que, para além de conter inverdades históricas, o escrito é injurioso para o representante de uma religião e para um lutador pelas liberdades do seu povo.

A ?Página dos Leitores? é um espaço plural, aberto, de opinião livre.

Quanto às acusações de injúria, só a História poderá vir a julgá-las, oportunamente ? porque só ela poderá confirmar ou desmentir algumas das acusações de índole política que o referido texto contém."