‘Embora o conheça há quase 40 anos, não privo da intimidade do deputado José Dirceu. Durante os 30 meses em que ele chefiou a Casa Civil da Presidência, estive em seu gabinete uma única vez e não foi para pedir, mas para lhe oferecer solidariedade após o caso Waldomiro Diniz. Nossas famílias não se freqüentam e até uma semana atrás eu nem sequer sabia onde fica sua casa. Um balanço de nossas relações políticas e partidárias desde 1979, quando ele foi anistiado, revelará mais divergências que afinidades.
Por que, então, perguntam-me, meu comprometimento público com a defesa da inocência e do mandato de Dirceu? Tenho ouvido sugestões que vão do disparate ao insulto. Na semana passada, na cidade de Três Corações (MG), um professor universitário quis saber, a sério, se eu recebera ordens de Fidel Castro para apoiar o deputado. Em um debate no Sindicato dos Jornalistas do Rio, dias atrás, um colega perguntou, sem mover um músculo do rosto, se eu confirmava ‘um boato que corre nas redações do Rio’, segundo o qual eu estaria sendo regiamente remunerado pelo próprio Dirceu para defendê-lo publicamente.
Para responder a dúvidas tão desatinadas, tenho recorrido a uma singela passagem da vida de Ernesto Che Guevara. Logo após chegar ao poder em Cuba, entre as centenas de cartas que recebia do mundo inteiro, ele leu a de uma espanhola residente no Marrocos e, como ele, de sobrenome Guevara. Ela queria saber se poderia haver algum parentesco entre ambos. Che respondeu que, na verdade, nem sabia de que parte da Espanha tinha vindo sua família. ‘Não creio que sejamos parentes’, escreveu, ‘mas, se a senhora treme de indignação cada vez que se comete uma injustiça no mundo, somos mais que parentes, somos companheiros’.
No fundo, é uma situação parecida. O deputado e eu não temos parentesco de qualquer natureza, mas somos companheiros. Eu o acompanho à distância desde que, foca do Jornal da Tarde, em 1966, cobri irregularmente o Movimento Estudantil, de que então ele era expoente. O que se passou depois eu soube lendo os jornais: levado para o Dops depois de desbaratado o congresso da UNE, em 1968, no ano seguinte ele seria um dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos. Exilado em Cuba, junta-se a outros 27 militantes e rompe com a ALN (Ação Libertadora Nacional), formando o Molipo (Movimento de Libertação Popular).
Na volta ao Brasil, o grupo é dizimado. Entre os sobreviventes, com o rosto transfigurado por uma cirurgia plástica realizada em Havana, está o Daniel, nome de guerra adotado em Cuba por Dirceu durante o treinamento militar que lá recebeu.
Com aparência e documentos falsos, ele se converte no pacato comerciante Carlos Henrique Gouveia de Mello, estabelecido em Cruzeiro D’Oeste (PR). Casa-se com Clara Becker, e com ela tem um filho, José Carlos, o Zeca Dirceu, atual prefeito da cidade. Nem para Clara nem para o filho ‘Carlos Henrique’ revelaria sua verdadeira identidade.
Este era um segredo compartilhado, no Brasil, com apenas três ou quatro pessoas da cambaleante organização guerrilheira. A ‘fachada’ de dono de confecção permitia que Dirceu circulasse com desenvoltura pelo Brasil e mantivesse contato com seus companheiros sem despertar maiores suspeitas da repressão.
Só com a anistia, em 1979, é que ele finalmente se sentiu seguro para contar a verdade à mulher e ao filho. Voltou a Cuba, desfez a plástica e retornou ao Brasil para iniciar uma brilhante carreira política que o levaria a se eleger deputado federal com mais de meio milhão de votos e a ocupar, desde janeiro de 2003, a Casa Civil da Presidência da República.
É compreensível que setores de uma sociedade conservadora como a nossa tenham dificuldade para aceitar que alguém com semelhante história possa chegar onde chegou, ainda que por meios legais e constitucionais, como o voto. O inadmissível é que, em nome da divergência ideológica ou política, queiram esvurmá-lo da vida pública, condenando-o a um degredo de dez anos dentro de seu próprio país. Quanto mais argumentam, mais seus adversários deixam claro que não pretendem cassá-lo por seus eventuais defeitos, mas por suas virtudes. Parecem querer puni-lo não pelo que tenha feito, mas pelo que foi.
A primeira tentativa de decapitação de José Dirceu aconteceu em fevereiro de 2004, quando do caso Waldomiro. O que aconteceu ali? A mídia divulgou cenas em que o então presidente da Loteria do Estado do Rio, Waldomiro Diniz, aparecia pedindo propina a um bicheiro. Embora o delito tivesse ocorrido muito antes de Lula se eleger presidente, o fato de Waldomiro ter depois ido trabalhar na Casa Civil era o elo que faltava. Pouco importava também se era um fato passado em um governo estadual de oposição ao PT: a presença de Waldomiro na equipe de Dirceu era anunciada como a prova incontestável de que o funcionário agia a mando do chefe da Casa Civil.
Frustrada a degola no ano passado, as denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson (aliás, retiradas pelo próprio) ensejaram o esquartejamento de que Dirceu vem sendo vítima há seis meses. O nervo exposto, a medula da acusação feita contra ele no relatório do deputado Júlio Delgado (PSB-MG) está no final do documento, disponível a qualquer internauta no endereço www2.camara.gov.br/conheca/eticaedecoro/notaqui.html.
Delgado consome 70 intermináveis páginas para chegar à conclusão de que ‘não é crível’ que tudo tivesse ocorrido sem que ‘um parlamentar com tamanho poder de decisão (…) soubesse’. Com talento infinitamente maior, La Fontaine já nos contou essa história na célebre fábula do lobo e do cordeiro. Como não se conseguiu provar nenhuma ligação dele com os delitos, querem cassá-lo por ignorar que delitos estavam sendo cometidos.
Mal escaldada pelos crimes que ela própria cometeu como Bar Bodega, Escola Base e Alceni Guerra, para ficar só em três casos, parte expressiva da mídia vem se comportando de maneira escandalosa no chamado ‘caso Dirceu’.
A imprensa investigou, julgou e condenou o deputado e agora tem surtos de histeria porque o Legislativo e o Judiciário se recusam a executar a sentença. Transformados em partidos políticos, veículos mandam às favas os escrúpulos de consciência e esquecem os mais elementares rudimentos do bom jornalismo.
Exemplos pululam. Na semana retrasada, a revista ‘Veja’ publicou uma reportagem de página e meia sobre a suposta falsificação da assinatura do ex-presidente do PT, Tarso Genro, em um documento enviado ao Conselho de Ética da Câmara. Um leitor habitual do semanário estranharia que em um texto de denúncia de mil palavras não houvesse qualquer acusação a Dirceu. A surpresa termina na última linha, onde o deputado entra como Pilatos no Credo: ‘Não há indício de que José Dirceu esteja envolvido nessa fraude’. Na mesma ‘Veja’, um colunista encerra seu artigo com esta gracinha: ‘Agora, só falta Dirceu andar sobre as águas’.
Pode ser. A frase lembra outra, pronunciada nos anos 60 pelo presidente americano Lyndon Johnson, e que pode ser parodiada para os tempos que estamos vivendo: ‘No dia em que José Dirceu andar sobre as águas, ‘Veja’ dará na capa: ex-ministro não sabe nadar’.
Fernando Morais, 59, é jornalista, escritor, membro do Conselho Superior da Telesur-TV, com sede em Caracas, e autor de ‘A Ilha’ e ‘Chatô, o Rei do Brasil’ (Companhia das Letras), entre outros’
ENTREVISTA / MARILENA CHAUÍ
Baby Siqueira Abrão, Marcelo Netto Rodrigues e Nilton Viana
‘Governo Lula não é de esquerda, diz Marilena Chauí’, copyright Brasil de Fato, 1/12/05
‘Desde que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, a filósofa Marilena Chauí vive sob forte ataque da imprensa tradicional. Que diz, entre outras coisas, que ela preferiu o silêncio a ter de rebater as acusações que pairam sobre o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores (que ela ajudou a fundar). Aquela mídia não se conforma que ela não abra a boca aos seus repórteres. E, por isso, acusam-na de omissão intelectual.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato – uma das únicas publicações com as quais Marilena concorda em falar – a filósofa prova que, ao contrário do que diz a imprensa convencional, sua capacidade crítica subsiste a conveniências partidárias. Em suas palavras, o que temos ‘não é um governo de esquerda’; o grupo de José Dirceu ‘não tinha a menor noção de revolução’, e Lula peca porque acha que é ‘possível governar concedendo um pouco para cada uma das classes sociais’, em vez de dizer: ‘Eu vim em nome da classe trabalhadora, e é com eles, e para eles, que eu vou governar’. Quanto à crise, Marilena resume: é ‘miudinha como a ‘politiquinha’ brasileira’.
Brasil de Fato – Como vê o governo Lula, e qual a sua avaliação sobre a conjuntura atual?
Marilena Chauí – Infelizmente, não é um governo de esquerda. Porque o elemento fundamental que faria com que ele se abrisse como um governo de esquerda não é como o PSOL diz: a ruptura com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o abandono de várias políticas econômicas. O gesto que definiria este governo como de esquerda teria sido a reforma tributária para a redistribuição da renda. Lula marcaria a sua posição se dissesse: ‘Eu vim em nome da classe trabalhadora, eu vim em nome dos movimentos sociais e populares, e é com eles, e para eles, que eu vou governar’. Então, a ausência deste elemento faz com que a política econômica, a lentidão das políticas sociais, a falta de coordenação entre vários dos ministérios assumam importância maior do que efetivamente têm.
BF – Mas por que os aspectos negativos aparecem tanto?
Marilena – Justamente porque seu elemento nuclear, que seria a redistribuição da renda, não se realizou. Assim, critica-se pelas bordas e não vai ao núcleo. Mas, se você faz uma análise comparativa, estes três anos de governo fizeram nas áreas social e de infra-estrutura mais do que os oito anos do PSDB. Isto é indiscutível, os números estão aí. Mas, isso não define o perfil do governo, porque dizer que você fez mais do que o PSDB não quer dizer muita coisa.
BF – Mas como é possível fazer uma reforma tributária progressiva sem se ter uma maioria de esquerda no Congresso? Há um caminho dentro da democracia formal no Brasil?
Marilena – Não. De jeito nenhum. Qual é a minha expectativa, e por que eu sou petista, e por que com todos os desastres deste partido, eu continuo nele? Porque acho que temos um processo histórico lento a realizar, que começou muito antes de mim, e que os meus bisnetos vão finalizar. É um processo pelo qual você vai desalojando a classe dominante dos seus principais pólos de poder. Você não fará mudanças com a sociedade brasileira do jeito que ela é – vertical, autoritária, hierarquizada e violenta. Muito menos com a classe dominante que nós temos: a mais primitiva e a mais bárbara que se possa imaginar. Nestas condições, em termos de mudança estrutural, você fará muito pouco. Mas o que se pode fazer, e isso é a tarefa de um partido de esquerda, é ir ganhando espaços de poder e de força para ir desalojando essa classe dominante de postos estratégicos na sociedade, na política e na economia. Isso envolve não só as questões econômicas e sociais, mas um trabalho no plano da desmontagem da ideologia. E é um processo que só os movimentos sociais e partidos de militância à esquerda podem fazer.
BF – Faz tempo que o PT deixou de ser um partido de classe, de militância e foi ganhando característica idêntica à dos partidos tradicionais. A senhora ainda acredita que o PT seja capaz de aglutinar os movimentos sociais em torno de um processo de transformação, mesmo lento?
Marilena – Acredito. E penso que o passo mínimo neste sentido é a primeira grande mudança da direção. Vai ser a primeira vez, nos últimos 15 anos, que não se terá uma direção de uma tendência majoritária. A isso, soma-se o fato de a militância ter ido votar, de ter formado grupos de discussão, de ter proposto a refundação do partido. Tudo isso indica que o PT que havia se tornado vai desaparecendo.
BF – Mas a descaracterização do PT não tem mais a ver com uma nova concepção ideológica?
Marilena – Acho que não. É preciso lembrar a formação do PT, ou seja, que é um partido extremamente heterogêneo. Que tem a esquerda que estava na clandestinidade, ex-guerrilheiros, ex-comunistas, ex-trotskistas, as comunidades eclesiais de base e a teologia da libertação, o novo movimento sindical, movimentos sociais como o das mulheres, dos negros, dos índios, dos homossexuais, que se aglutinavam em torno de um eixo norteador fundado na noção de que os direitos sociais – a justiça e a igualdade econômica e social – eram o fundamental.
BF – E o que produziram tantas diferenças?
Marilena – Isso significou que dentro do PT existiam inúmeras concepções muito diferentes de partido, da política, da relação com a sociedade, da relação partido-movimento, da relação partido-institucionalidade. E a concepção, que de alguma maneira foi vitoriosa através da Articulação, que, num determinado instante, passou a ter o controle do partido, era representada por gente que veio de partido comunista, de célula trotskista, de célula guerrilheira, e que tem, portanto, a concepção clássica do partido de vanguarda. Eu não atribuo isto ao Campo Majoritário, que ao meu ver, é uma coisa abstrata, fictícia, é um nome fantasia que foi dado num instante em que havia filiados de tudo quanto era jeito, era uma coisa inteiramente eleitoral (…) então, eu vou deixar de lado esta história do Campo Majoritário.
BF – A descaracterização do PT foi, então, obra da Articulação?
Marilena – A partir da concepção da Articulação, não se tem mais um partido de quadros, de militância, de filiados. E esta vanguarda se considera não só a portadora da verdade do partido, mas a detentora do poder dentro dele. E a única maneira que ela é capaz de pensar isso é através da burocratização. Então, se se desmonta a Articulação, o que aconteceu com o PT vai ser desmontado também.
BF – Nessa concepção de partido de vanguarda, faz sentido a hipótese de que José Dirceu foi pego pavimentando o caminho para um processo revolucionário?
Marilena – Ah, não, de jeito nenhum (ri com indignação)! Esta visão é uma mescla do que uma parte da esquerda pensava nos anos 1950 e final dos 1960. Não, não, não havia a menor noção de revolução neste caminho. E eu nem personalizo na figura do Zé Dirceu. É um grupo que identifica a política e a tomada de poder dentro do aparelho do Estado. Portanto, não se coloca a questão da revolução, nem de uma transformação social que seria a condição da própria transformação política. É a idéia de que através do aparelho de Estado são produzidas as mudanças na sociedade e na economia. Isso não é inovador e é profundamente autoritário.
BF – A saída de Plinio Arruda Sampaio do PT foi acertada?
Marilena – Ele poderia sair depois do processo eleitoral. Achei inconcebível que ele se retirasse antes. É preciso avaliar o quanto esta retirada prejudicou o Raul Pont, já que a diferença para o Berzoini foi mínima. E se o Plinio não tivesse saído, as chances de vitória seriam maiores.
BF – O PSOL é avanço ou retrocesso?
Marilena – Nem uma coisa, nem outra. O PSOL representa uma das tendências clássicas da esquerda brasileira, que é a política dos intelectuais. Na história política do Brasil, isso é uma constante como aquela idéia do Antonio Candido de que os intelectuais formam o partido do contra. Faz parte da tradição brasileira, e é importante que haja isso. Eu acho que os intelectuais devem se manifestar no contra e à esquerda. Mas o PSOL tem um problema adicional, que é a proposta de que ele, efetivamente, faça oposição. Só que, enquanto o PT fez um percurso no qual chegou, finalmente, à figura do político profissional, aos parlamentares, aos prefeitos, aos governadores, o PSOL já nasce com estes políticos profissionais, senador, deputado, com gente que faz parte do jogo.
BF – O governo Lula tem se mostrado fraco em decisão política. A senhora imagina que um eventual segundo mandato Lula seja mais firme? E como a senhora vê a iniciativa da Assembléia Popular?
Marilena – Do mesmo modo que eu não compartilho a concepção política da Articulação – que também é de uma grande parte da esquerda brasileira – eu nunca considerei que o PT tendo prefeituras, governos de Estado, chegando à Presidência, significasse mudança estrutural, porque isso seria abdicar do meu marxismo. Eu considero que ter um conjunto aguerrido de parlamentares, prefeituras como a da Luiza Erundina ou a primeira prefeitura do Olívio Dutra, são elementos que operam em duas direções. A primeira é um reforço e um estímulo à auto-organização, ao desenvolvimento, à ampliação e à participação dos movimentos sociais. A segunda, é assinalar para as classes populares, para a classe trabalhadora, para a grande massa da população brasileira que se pode, através da política institucional, realizar uma série de ações que garantam um mínimo de transformação das condições econômicas e sociais. E não mais do que isso. Ou seja, coloco tudo isso no campo do acúmulo de forças. É na luta social, é na luta política de participação como na Assembléia Popular, ou do MST, que a mudança virá.
BF – Como avalia as críticas ao governo Lula?
Marilena – O que me preocupou sempre, desde a posse, é que tanto a militância como a esquerda só tiveram dois comportamentos. Um foi dizer que ‘está tudo errado, é uma traição, não serve, vou romper, e já vou criticar no segundo dia’. Em um mês, Lula não conhecia nem quais eram os corredores pelos quais tinha que andar dentro daqueles prédios. Outra é a de que, uma vez que o PT está no governo, é ele que vai solucionar todos os problemas, e cada vez que não fizer isso, eu grito. Ao invés disso, o fundamental é que você incessantemente seja capaz de exigir, criticar, aceitar e trabalhar no convencimento de coisas que precisariam ser feitas e que foram feitas e, ao mesmo tempo, empurrar o governo para a realização deste mínimo e deste acúmulo de forças que ele tem de fazer. Mas não. O que eu vi foi a crítica radical e a apatia. E neste momento, com o enfraquecimento institucional do país, é que, de novo, os movimentos sociais e populares se deram conta do que significam, e de que têm de fazer esta retomada.
BF – Neste raciocínio, como viu a greve de fome de dom Cappio?
Marilena – Vi de longe, mas como fato político foi tão fundamental que houve até a tentativa da direita de dizer que estávamos de volta a Canudos.
BF – O que achou da declaração de Lula, no programa Roda Viva, de que ‘a imprensa brasileira é livre e democrática’? E que gostaria que Cuba fosse uma democracia igual à brasileira?
Marilena – Mesmo que essa declaração tenha sido estratégica, ela é inaceitável. Porque ele, como um líder político, que tem a história que tem, tem a obrigação, perante à sociedade brasileira, de explicar por que que a imprensa brasileira não é livre e nem democrática. É não cumprir o seu próprio papel histórico e político. Não dá, para um indivíduo com a história que o Lula tem, com o lugar que ele ocupa, fazer esta afirmação. Ele não tem o direito. E olha que eu defendo o Lula em tudo que posso.
BF – Foi antiético a Folha de S.Paulo publicar uma carta que a senhora tinha endereçado só aos seus alunos?
Marilena – Claro, mas eu não me surpreendo com nada. A Folha tem uma relação poético-literária comigo. Eu chamo a publicação da carta de momento shakespeariano. Como em Hamlet, o personagem não consegue dizer uma verdade para alguém, ninguém acredita. Então, ele monta um teatro dentro do teatro, e a verdade é dita. O Hamlet quer dizer à corte que o pai foi assassinado, que aquilo é uma usurpação, mas ninguém acredita porque já disseram que ele era maluco. Então, ele contrata uma trupe para representar a morte do pai perante a corte. Acho que alguém lá na Folha teve um instante hamletiano porque, ao publicar a carta, o que foi dito foi: ‘Tudo o que ela está dizendo é verdade, nós fazemos aqui um gesto de prova da verdade do que ela está dizendo com a publicação’.
BF – E no caso do manifesto de apoio a José Dirceu?
Marilena – Este foi o que chamo de um instante Alice no País das Maravilhas, do Lewis Carrol. A reportagem dava o nome de alguns intelectuais que tinham assinado, e realçava que não o tinham feito a Marilena Chauí e o Chico Buarque. Lembrei da Alice quando ela diz que tem 364 dias de ‘desaniversário’. Você não diz quem assinou o manifesto, destaca quem não o assinou.
BF – Por que especificamente a Folha tem esta relação de amor e ódio com a senhora?
Marilena – Não vou detalhar, porque não é o caso dizer qual é a causa de tudo isto. Depois que a poeira baixar, quando tudo estiver em ordem, eu contarei, nem que seja na minha autobiografia. Aliás, já está escrito por que que isto está sendo feito.
BF – Os movimentos sociais têm sido muito pacientes com este governo, que não assume posições firmes. Faz medida provisória liberando transgênicos, mas não para desapropriar terras. Lula negocia para cá, para lá, tentando agradar a todos. O Estado tem de decidir. Na sua opinião, Lula se acovardou?
Marilena – Eu não faria uma avaliação quase de tipo psicológico, de que ele se acovardou. O que me pergunto é qual o grau de autonomia que este governo deu a si próprio. Acho que ele não se deu a autonomia que teria que ter. Quando você diz o Estado decide, acho que, muitas vezes, o Estado tem que negociar. Agora, isso é diferente de definir uma agenda autônoma. Ou seja, há determinadas questões e resoluções que o governo tem de tomar enquanto representante da esquerda e enquanto representante da própria história petista. Às vezes a atitude de Lula aparece como ‘ele não decide’ ou ‘ele é fraco’ ou ‘ele não toma conhecimento’. Mas não é isso. A cada passo, algo que pertence a uma agenda do PSDB, do PMDB, dos bancos, dos latifundiários, algo que pertence à agenda deles vem primeiro. Então, a agenda do governo é determinada fora dele, tanto que quando, por exemplo, você toma a política externa, ela é brilhante. Porque essa é a única que se define autonomamente.
BF – Então, este governo não tem projeto de sociedade?
Marilena – Ele tem projeto. Mas não toma todas decisões necessárias para implantá-lo. Por um lado, ele é tímido, e por outro lado, ele não é efetivamente de esquerda. Sobre o que vocês chamam de negociação, de conduta sindicalista. Uma posição à esquerda significa que o ponto de partida de sua reflexão, da sua análise, da sua prática é a divisão social das classes. É por aí que você pode pensar e agir de outra maneira. É neste marco da divisão social que o governo não pensa. A ação dele não está fundada na divisão social. Ele acha que é possível governar concedendo um pouco para cada uma das classes sociais, sem definir, portanto, o seu próprio perfil.
BF – Se este governo não é de esquerda e, ainda por cima, agrada às elites, por que elas vêm com esta ofensiva para cima dele?
Marilena – Ah, mas não são as elites. É o PSDB e o PFL. É uma questão eleitoral.
BF – Mas eles são a elite.
Marilena – Não dêem grandeza política, nem histórica a esta crise. Esta crise é a antecipação da disputa eleitoral. Ponto. Parágrafo. É disso que se trata. O Serra quer ser presidente da República. Como é que a crise se montou? Há um trabalho interessantíssimo do professor Sérgio Cardoso (do Departamento de Filosofia da USP) que diz que desde que o governo Lula foi montado, existiam três discursos separados de ataque ao governo: o discurso moral, que era o da classe média; o economicista, que era o da esquerda; e o pseudopolítico, que era o discurso do PSDB.
BF – E qual era o discurso do PSDB?
Marilena – O discurso pseudopolítico do PSDB é dizer que eles são ‘a gente séria, responsável e moderna que entende de política. Então, nós temos que ter o poder de volta, e faremos qualquer negócio, qualquer jogada para ter o poder de volta’. Esta crise, embora tenha inúmeros elementos reais, tem como causa conjuntural o jogo eleitoral do PSDB e do PFL. Nada mais do que isso.
BF – E onde entram as elites?
Marilena – É justamente porque as elites estão muito satisfeitas que o PSDB tem medo de não ter financiamento para a sua própria campanha. E se perguntam: ‘O que será de nós?’. Não é mais do que isso. É miudinho, como a ‘politiquinha’ brasileira.
BF – Como viu o artigo que constata ‘a falência de Marilena Chauí’, escrito por um moleque de 28 anos, que vive nos EUA? Como a senhora vê o papel de gente como Roberto Mangabeira Unger?
Marilena – Pensei: puxa vida, a grandiosidade que me foi dada. Isso é formidável, é maravilhoso. Quanto ao Mangabeira Unger, ele é o mistério planetário. Uma vez, nos EUA, quando ele estava começando a aparecer com algumas coisas no Brasil, meu marido e eu fomos num desses lugares em que o Mangabeira dava aula. As pessoas estavam entusiasmadas, mas também diziam que ele era muito ‘piradão’. Aí, ele começou a escrever, veio, fez o programa do Brizola, depois se afastou, e se aproximou do PT. Eu lembro que quando alguns amigos me disseram que o Mangabeira Unger viria para o PT, para a campanha do Lula, eu disse: ‘Ichh’.
BF – A senhora não acha que os intelectuais e ativistas de esquerda no Brasil só deveriam, como a senhora, dar declarações exclusivas aos veículos de esquerda (Brasil de Fato, Caros Amigos, entre outros)?
Marilena – Concordo plenamente. A partir do instante em que você tem plena consciência do jogo econômico e do jogo político que está efetivamente envolvido com os meios de comunicação – e é por isso que eu não posso perdoar as palavras do presidente da República -, e que você não tem efetivamente a constituição de um espaço público, muito menos à esquerda, porque o que você tem é o interesse privado do mercado (…), você simplesmente aceita entrar num processo de servidão voluntária. E aceita ser um instrumento passivo como um arauto da negação do que você pensa e do que você quer. E mais do que ser instrumentalizado pelo adversário, é ser instrumentalizado na direção daquilo que você nega. É preciso aceitar que há divisão social, que há divisão de classes, e que a gente tem que tomar partido.
BF – A senhora acompanha o que está acontecendo com a América Latina e o governo de Hugo Chávez, na Venezuela?
Marilena – O Chávez é um gênio político porque ele soube aproveitar aquilo que lhe deu a possibilidade de fazer a mobilização popular e social, e ter o sustentáculo que ele tem, sabendo lidar com o petróleo que ele tem. Eu me lembro que assim que Lula tomou posse, houve a tentativa de deposição de Chávez, e o primeiro ato da política externa brasileira foi criticar veementemente o golpe. Aqui, houve cobrança de que o Lula fizesse como o Chávez, mas, no nosso caso, seria impossível. Lula não teria este cacife. Ele não tem petróleo para fazer isto. No nosso caso, seria uma aventura que terminaria em impeachment ali mesmo.
BF – E como a senhora avalia o que está acontecendo na França?
Marilena – Meu marido tem a mania sádica de ler em voz alta o que sai na Folha, no Estadão. Dias atrás, ele me disse que tínhamos ‘uma pérola’: Um jornalista escrevendo que o atual movimento francês era o ‘maio de 68 dos pobres’ (silêncio). É inominável que um jornalista (Marcelo Coelho, da Folha) ouse falar uma coisa dessas, citando Proust, Bergson. É inacreditável. O movimento começa como um recado político ao ministério e ao próprio Chirac. O que ele envolve não é só a lógica própria do movimento social de recusa do que se passa. Por trás dele, há uma história pesadíssima de racismo, de exclusão social, de ‘guetização’, de perseguição que vem à tona. Num primeiro instante, o movimento se apresenta como a luta pelo desemprego, mas depois é a luta contra à sociedade francesa tal como ela está estruturada, e à política francesa como tal. Então, do ponto de vista do significado, ele tem um significado simbólico colossal porque é a cultura francesa que está posta em jogo, é a maneira pela qual o mundo francês está organizado. O protesto vai além da questão racial, econômica e social. Abrange um confronto muito mais poderoso. Meu receio é que o movimento francês fique num cinturão ‘guetizado’. Mas ele é colossal. O fato de a maioria dos manifestantes ser de uma terceira geração de imigrantes mostra a exclusão levada ao seu limite. Ainda mais quando o noticiário os chamam de imigrantes.
Quem é
Marilena Chauí sempre é lembrada como a mais renomada filósofa do Brasil. Exemplo de intelectual engajada, a também professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH) teve participação ativa na concepção do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 1980. Anos depois, foi Secretária Municipal de Cultura de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (1989-1992). Suas áreas de especialização são História da Filosofia Moderna e Filosofia Política. Convite à Filosofia, de 1994, é o seu livro mais popular. Marilena também desenvolve trabalhos sobre ideologia, cultura e universidade pública.’
SIGILO DA FONTE
Vannildo Mendes
‘Procurador quer abrir sigilo de jornalistas ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 29/11/05
‘O procurador da República Bruno Caiado Acioly está recolhendo subsídios dos seus colegas de Ministério Público para contestar, na Justiça, a lei do sigilo da fonte, que garante ao jornalista o direito de preservar o anonimato de informantes de notícias de interesse público. Na troca de e-mails com os colegas, no dia 22, à qual o Estado teve acesso, Acioly revela sua intenção de mover mandado de segurança para quebra de sigilo telefônico de quatro jornalistas que publicaram reportagens sobre corrupção envolvendo servidores do Banco Central e dirigentes de bancos privados.
O objetivo do procurador é saber com quem os jornalistas falaram ao telefone na apuração de reportagens, nas quais denunciaram casos de corrupção, conforme ele admite na troca de correspondências pela rede interna do MP. ‘É imprescindível a quebra do sigilo telefônico dos jornalistas’, defendeu.
Acioly já havia pedido a quebra de sigilo, mas foi negado pela Justiça. Ouvido pelo Estado, Acioly confirmou a consulta aos colegas, mas negou que já tenha decidido entrar com o mandado para quebrar a lei de proteção aos informantes da imprensa. ‘Por enquanto, é uma discussão acadêmica, teórica, para promover reflexão sobre os limites do sigilo da fonte.’
Os jornalistas, segundo fontes do MP, seriam Policarpo Júnior e Alexandre Oltramari, de Veja, e Expedito Filho, do Estado. O quarto nome não foi levantado. Acioly informou que não colocou os nomes da revista ou dos repórteres na consulta porque já sabia que iria vazar e conhecia as conseqüências.
Disse que não é contra o sigilo da fonte – ‘uma conquista democrática do Estado de Direito’ -, mas defende sua flexibilidade nos casos em que a fonte está envolvida em crimes. ‘Um terrorista que avisa ao jornalista que vai contaminar o reservatório de água de uma cidade não deve ter seu sigilo quebrado?’
A medida, caso concretizada, poderá provocar uma crise sem precedentes entre a imprensa e o MP, que às vezes, simultaneamente, investigam crimes de colarinho branco e corrupção. Previsto na Constituição e garantido em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), o sigilo da fonte tem sido útil à Justiça e ao próprio MP na investigação do crime organizado, contra a impunidade e o esclarecimento de casos de corrupção no poder público.
Embora negue ter tomado a decisão, por se tratar de ‘um terreno pantanoso’, Acioly deixa clara sua intenção na consulta: ‘A questão nevrálgica é saber se podemos ou não quebrar o sigilo telefônico do jornalista quando este se recusa a revelar seu informante, sob o fundamento do sigilo da fonte. Este sigilo é ou não relativo?’
CAUTELAR
Em parceria com a procuradora Raquel Branquinho, Acioly entrou com medida cautelar de quebra de sigilo dos quatro jornalistas, sem êxito. A quebra do sigilo foi negada pela juíza Maria de Fátima de Paula Pessoa Costa, da 10.ª Vara Federal. O processo é sigiloso e a juíza não lembra sequer se o julgou e qual teria sido sua decisão. ‘Ainda que lembrasse, não poderia dizer nada, porque é sigiloso.’
A Polícia Federal, à qual caberia quebrar o sigilo, nega ter recebido tal ordem. Mas ao citar o Banco Central e bancos privados, Acioly deixa uma pista, pois é autor de ação, em parceria com Raquel, contra o escândalo Marka FonteCindam, que causou prejuízo de R$ 1,5 bilhão ao Erário em 1999.
Da ação, sabe-se que ela é de 25 de junho, quando começou a ser distribuída. Recebeu o número 2005.34.00.022636-7 e foi classificada como medida cautelar. Rejeitada, foi encaminhada à PF no dia 9 de novembro deste ano. Diante da rejeição da cautelar, Acioly voltou à carga contra o sigilo da fonte.
Ele deixou claro na consulta que imaginava recorrer da decisão através de mandado. ‘O pedido do mandado de segurança é a reforma da decisão que indeferiu a quebra do sigilo telefônico de quatro jornalistas, números comerciais e particulares, sob o fundamento do resguardo do sigilo de fonte’, disse.
Acioly justificou que a quebra do sigilo se devia ‘ao fato de que os quatro jornalistas invocavam constantemente o sigilo profissional para não revelar o nome do informante, provavelmente alguém de dentro do esquema’. A maioria esmagadora do MP ficou contra a posição de Acioly, por entender a importância desse instrumento para o Estado de Direito democrático. Mas alguns o apoiaram.’
Jailton de Carvalho
‘ANJ reage a tentativa de quebrar sigilo de fonte’, copyright O Globo, 30/11/05
‘A Associação Nacional de Jornais (ANJ) reagiu ontem à decisão do procurador da República Bruno Caiado Acioly de pedir à 10 Vara Federal a quebra do sigilo de fonte de dois jornalistas da revista ‘Veja’ e um do jornal ‘O Estado de S.Paulo’. Para a ANJ, o sigilo da fonte é um direito assegurado ao jornalista pela Lei de Imprensa e pela Constituição. Acioly pediu o acesso aos informantes dos jornalistas para aprofundar as investigações sobre o caso Marka-FonteCindam, que provocou um rombo de US$ 1,5 bilhão nos cofres públicos.
– Quebrar o sigilo de telefone de fonte de informação é coisa da ditadura. Isso é perigosíssimo, é inaceitável – afirmou Fernando Martins, secretário-executivo da ANJ.
Martins argumenta que o inciso 14 do artigo 5 da Constituição e os artigos 7 e 71 da Lei de Imprensa garantem ao jornalista o direito de manter em sigilo o nome das pessoas que fornecem informações usadas em reportagens. Para Martins, essa é uma conquista da democracia que não pode ser negociada sob pretexto algum. Ele sustenta ainda que a função do jornalista é apurar e divulgar informações corretas e não desvendar crimes para o Ministério Público ou para a polícia.
– As investigações criminais são uma atribuição da polícia – disse Martins.
10 Vara Federal rejeitou pedido de procurador
Bruno Acioly pediu a quebra do sigilo telefônico dos jornalistas para identificar a pessoa que teria passado informações importantes sobre os envolvidos na fraude que teria favorecido em US$ 1,5 bilhão os bancos Marka e FonteCindam.
O procurador disse que, depois de longos anos de investigação, não terá condições de esclarecer definitivamente o crime se não tiver acesso à pessoa que serviu de fonte aos repórteres. Para o procurador, o informante tinha papel importante na organização que fraudou o sistema financeiro.
– Essa pessoa teve forte participação no esquema criminoso investigado – disse Acioly.
O pedido do procurador foi rejeitado pela 10 Vara Federal. Acioly ainda não decidiu se vai ou não recorrer. Mas, independentemente do desfecho do caso, ele começou a conversar com colegas do Ministério Público sobre a criação de uma lei de restrição do sigilo da fonte. Para ele, o sigilo é importante na atividade jornalística, mas nenhum direito é absoluto. O procurador não vê problema na quebra do sigilo de fonte em casos que envolvam segurança nacional, ameaça ao estado de direito e risco de vida.
– Não vejo inconstitucionalidade numa lei restritiva de sigilo de fonte. Em alguns casos excepcionalíssimos e, com a máxima cautela, é possível permitir a quebra do sigilo da fonte – afirmou.
O presidente do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio, Aziz Filho, também criticou o pedido do juiz:
– É inacreditável que essa proposta obscurantista parta do MP, tão defendido pelos jornalistas quando os setores reacionários tentam reduzir suas atribuições. O sigilo da fonte é uma das pré-condições da imprensa livre, assim como a Lei da Mordaça, que tanto combatemos, seria um golpe na autonomia do MP. Prefiro acreditar que o procurador esteja trabalhando muito e precisando de férias do que pensar que o MP possa cometer este atentado contra o jornalismo brasileiro.’
Andréa Michael
‘Procurador tenta contestar sigilo de fonte ‘, copyright Folha de S. Paulo, 30/11/05
‘A intenção do procurador do Ministério Público Federal em Brasília Bruno Acioly de quebrar o sigilo telefônico de quatro jornalistas e, com isso, ter acesso às suas fontes de informações foi o tema do dia ontem na rede interna de comunicação do órgão.
Os procuradores queriam chegar ao responsável pela divulgação dos e-mails em que Acioly pede a ajuda de colegas para reunir subsídios jurídicos para flexibilizar a garantia constitucional e legal dada ao sigilo de fonte.
O pedido de Acioly foi noticiado ontem pelo jornal ‘O Estado de S.Paulo’. Na troca de e-mails, os procuradores alertam para o ‘fogo amigo’ entre os colegas e sugerem até um pedido de esclarecimentos ao jornal.
Em e-mail do dia 22 de novembro, Acioly lançou sua demanda na rede. ‘Resumindo: a questão nevrálgica é saber se podemos ou não quebrar o sigilo telefônico do jornalista quando este se recusa a revelar seu informante, sob o fundamento do sigilo de fonte. Este sigilo é ou não é relativo?’
No mesmo dia, em um outra mensagem eletrônica, o procurador deu aos colegas mais detalhes sobre os motivos para reiterar o pedido de quebra de sigilo, já apresentado anteriormente à Justiça, mas que fora negado.
Disse Acioly: ‘No caso vertente, o que acontecia era o seguinte: informações privilegiadas do governo vazavam para o mercado financeiro através de ‘insiders’ [informantes] do Bacen [Banco Central], conforme matérias publicadas por uma revista semanal, fundada em informações em documentos repassados por um banqueiro que conhecia as engrenagens do ‘esquema’.
No e-mail, ele diz ter fortes razões para crer que a fonte da revista era também parte da suposta organização criminosa que ganhava dinheiro no mercado financeiro com o vazamento de informações do BC. Accioly pretendia, com o acesso ao extrato de chamadas dos jornalistas, chegar à pessoa que os teria alimentado com informações. Ontem, ele não quis revelar os nomes dos jornalistas. Alegou sigilo de Justiça.
Acioly disse que analisa a divulgação de seus e-mails pelo lado positivo, que seria levar à grande imprensa e à sociedade uma questão tão relevante como o sigilo de fonte. ‘Fizemos um pedido [à Justiça] nesse sentido, que foi indeferido. Qualquer passo para abrir sigilo de fonte deve ser muito bem pensado. Fico feliz que a imprensa esteja discutindo isso’, disse.
‘Minha intenção é trabalhar pela consolidação deste sigilo, não para fragilizá-lo. É fundamental para a imprensa e para a sociedade. Não existe democracia sem sigilo de fonte’, disse Accioly, que diz ter até ‘7 ou 8’ de dezembro como prazo para apresentar um mandado de segurança visando a quebra do sigilo dos jornalistas.
O procurador disse ter lançado mão desta estratégia porque seria um último expediente para avançar em um caso ‘de muitos anos’.
Ele confirmou se tratar de uma investigação iniciada em 99. Naquele ano, a revista ‘Veja’ tornou público o socorro do BC aos bancos Marka e FonteCindam, que quebraram devido à desvalorização cambial. A operação de salvamento, feita com dinheiro público, custou R$ 1,5 bilhão.
Integrante do grupo de procuradores que investigou o caso na ocasião, Acioly pediu -e teve negada- a quebra de sigilo telefônico do repórter Policarpo Júnior, responsável por reportagens sobre o caso Marka-FonteCindam publicadas pela ‘Veja’.’
Folha de S. Paulo
‘ABI e ANJ condenam quebra de sigilo ‘, copyright Folha de S. Paulo, 30/11/05
‘A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a ANJ (Associação Nacional de Jornais) afirmaram ontem que a tentativa do procurador da República Bruno Caiado Acioly de quebrar o sigilo telefônico de quatro jornalistas fere a liberdade de expressão e direitos constitucionais.
‘O que ele está buscando é um caminho sinuoso, torto e carente de ética para violar a liberdade de informação e o sigilo de fonte’, afirmou Maurício Azêdo, presidente da ABI. Fernando Martins, diretor-executivo da ANJ, disse que qualquer exceção ao direito de resguardar a identidade de fontes anônimas é inaceitável. ‘A função do jornalista é informar, não é servir de informante para o Ministério Público.’
O diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, Claudio Weber Abramo, também condena a tentativa do procurador e a qualificou como ‘incabível’. E explica a importância, a seu ver, do que está ameaçado: ‘Boa parte das informações que os repórteres conseguem seriam impublicáveis caso fosse necessária a identificação da fonte’.
Para o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, não se trata de uma discussão ‘teórica, solta, [sobre os limites do sigilo] como ele quis fazer entender. É um procurador buscando caminhos para ferir um direito constitucional’. ‘Ele está tentando resolver uma limitação do trabalho dele, que é de investigação. Quer um atalho que fere a Constituição, que fere o Estado de Direito’, disse Beraba.
Questionado sobre possíveis semelhanças com a exigência recente, feita pela Justiça americana, de que repórteres dos EUA indicassem fontes de suas histórias -e que levou, num caso controverso, a jornalista do ‘New York Times’ Judith Miller a passar 85 dias presa-, Beraba afirmou que a semelhança está na discussão sobre a motivação da fonte. Acioly defende a ‘flexibilização’ do sigilo caso quem passa a informação esteja envolvido em crimes.
No caso de Miller, o colunista político Robert Novak revelou a identidade de uma agente da CIA -o que é proibido por lei nos EUA- sem revelar a fonte. Miller teve acesso à informação, cuja divulgação supostamente interessaria ao governo americano, e não a publicou, mas foi intimada a depor no mesmo caso.
Para Beraba, a diferença está no fato de que, nos EUA, a ‘qualidade’ das fontes anônimas, do ponto de vista da veracidade da informação, está no centro da crise do jornalismo no país, o que não acontece no Brasil.’
MEMÓRIA / LUIZ ALBERTO BAHIA
O Globo
‘Luiz Alberto Bahia, jornalista, 82’, copyright O Globo, 29/11/05
‘O jornalista Luiz Alberto Bahia foi um dos fundadores do Tribunal de Contas do Município do Rio e presidiu o TCM no biênio 84/85. Carioca, estudou direito e, em 1945, entrou para o jornalismo, iniciando a carreira como repórter do ‘Correio da Manhã’. Foi conselheiro do então BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico). Também foi chefe do Gabinete Civil de Negrão de Lima, entre 66 e 68.
Entre 69 e 72, foi editorialista do GLOBO; e, depois, editor de opinião do ‘Jornal do Brasil’. Em 75, foi para a ‘Folha de S. Paulo’, onde integrou o Conselho Editorial. O jornalista estava internado há um mês. Luiz Alberto Bahia sofreu uma série de derrames e morreu ontem, aos 82 anos. Deixa viúva, Maria de Jesus, dois filhos, netos e bisnetos. O corpo foi enterrado no Cemitério São João Batista.’