ASPAS
LIÇÕES DE COVAS
"O comunicador Covas", copyright Valor Econômico, 13/03/01
"Espantem-se, porque vou falar de Mário Covas como o grande comunicador que conheci em suas duas campanhas para o governo do Estado, em 1994 e 1998. Era o seu assessor de imprensa e muitas vezes repórteres me perguntavam: ?Que conselhos você dá ao Covas?? ou ?Ele faz o que você sugere??. Respondia a verdade. ?Seria muita pretensão minha querer dar conselhos a quem está há mais de 30 anos na política e já ganhou eleição com mais de 7 milhões de votos, mesmo com a fama de mau comunicador? – à primeira pergunta. ?Quando acha que tem sentido, ele faz? – à segunda pergunta.
Assim era o nosso entendimento tácito, desde o primeiro dia em que me incorporei a sua campanha eleitoral para o governo do Estado, em 94. Uma estréia, aliás, que me fez temer pelo meu futuro profissional. Embarcamos no jatinho em Congonhas, Covas mal cumprimentara o grupo, nele agora incluído eu, seu novo assessor de imprensa. Logo me habituaria, mas naquele primeiro contato me incomodaram o resmungo a título de bom dia e o tenso silêncio de toda a comitiva.
Meu assessorado se enfiou na leitura do caderno de esportes de um jornal, que de vez em quando interrompia para espiar a paisagem. Nem uma palavra. Pior: nem um olhar encorajador capaz de sugerir algo parecido com interesse em saber o que eu fazia ali ou o que tinha a oferecer. E eu tinha. Fizera a lição de casa, levava na pasta recortes de jornais do dia, já assinalados os trechos que poderiam ser de valia para as entrevistas e pronunciamentos do candidato nas oito cidades que visitaríamos até o fim da tarde. Faltando uns 20 minutos para a primeira escala, arrisquei: ?Senador, acho que valeria a pena dar uma espiada nessas notícias. É muito provável que os jornalistas façam perguntas sobre esses assuntos?. Estendi a mão, passei-lhe o clipping que preparara. Covas leu rapidamente um por um, foi deixando de lado cada recorte, voltou-se para a janelinha do avião, sem nenhum comentário.
Ali estava eu, um profissional de comunicação, incapaz de se comunicar. Nas entrevistas e nos palanques, percebi que ele tinha lido as anotações e usava as referências, dando atualidade a seu discurso. Era a primeira amostra da forma peculiar e, por vezes, tortuosa de lidar com a comunicação.
Contrariando os mandamentos de um candidato, não titubeava em contestar um eleitor, negar um pedido ou dizer francamente o que lhe sugeria o conhecimento da realidade que iria enfrentar no governo. Foi assim, uma vez, ao pousarmos em Sorocaba na campanha de 94. Cercado por umas 20 professoras portadoras de uma série de reivindicações que ele sabia incompatíveis com a situação de falência do Estado, o candidato dispensou circunlóquios: ?Isso que vocês estão pedindo não vai dar para atender?. Pode-se imaginar o bate-boca que se seguiu. Descendo do helicóptero num campo de futebol de Espírito Santo do Pinhal, na região mogiana, a abordagem foi de um empolgado e solitário repórter de rádio que, ao vivo, queria que o candidato dissesse aos ouvintes o que pretendia fazer pela região. Covas, contundente: ?Não sei?. O atônito jornalista levou alguns segundos para se recompor do susto e tentar uma segunda pergunta.
Quando ponderei que poderia ter elaborado uma resposta menos dura, Covas discordou: ?Mas eu não sei mesmo, não vai ter dinheiro para nada, não quero enganar ninguém?. Essa franqueza era um de seus grandes trunfos. A franqueza projetava sinceridade e credibilidade.
Gostava muito mais de falar com o povo nas ruas. No corpo a corpo das caminhadas pelos bairros, estava em seu elemento. Em campanha, terminava o dia descomposto, camisa aberta forrada de adesivos, seus e de outros candidatos. Suado, mas feliz. Nem por isso deixava de atender os jornalistas. Fazia a encenação de costume, ficava contrariado: ?Falei o dia inteiro, não tem mais o que perguntar?. Mas sabia que precisava dos jornalistas tanto quanto eles do candidato.
A recusa inicial, aparentemente inabalável, era quase um jogo de cena, era o velho e bom Covas procurando pretexto para esquentar as turbinas com o combustível do mau humor. Um parênteses para a fama do turrão e teimoso. Era um perfeccionista, alguém propenso à irritação, como toda pessoa aflita sempre pronta a descer antes que o carro pare e a recriminar alguém porque não alcança seu raciocínio com a mesma rapidez. Como um jogador de xadrez que pensa vários lances adiante, Covas, enquanto falava, já estava armando na mente a próxima idéia, ao ponto de freqüentemente deixar frases pela metade, atropelando-as com outros desdobramentos.
Entrevista rápida era algo fora de seu vocabulário. Saboreava por meia hora e até mais o cerco de microfones, gravadores e caderninhos de anotação, alongando-se nas falas e não deixando pergunta alguma sem resposta. Era divertido presenciar suas conversas com os jovens repórteres, tentando induzi-lo a um escorregão que rendesse uma boa manchete. ?Eles ficam loucos para eu falar mal do Fernando Henrique?, ele se divertia, especialmente quando se discutia a questão do Banespa ou na época em que a imagem do presidente ao lado de Maluf nos outdoors de campanha, em 98, era motivo de indisfarçável desconforto.
Covas tinha uma visão muito peculiar da comunicação e do papel da imprensa. Relutava em autorizar campanhas para anunciar realizações de governo, porque achava que à mídia cabia essa divulgação. ?Mas coisa boa esses seus amigos não querem, a imprensa só quer saber de notícia ruim?, dizia. O paradoxo é que foi através de um evento mais do que ruim que a mídia tornou-se mais atenta a seu governo. Precisou o elemento dramático de sua batalha contra a doença para que se valorizasse como nunca o trabalho de saneamento das finanças de SP, que o governador se cansou de alardear nesses seis anos como a base mais sólida de sua administração.
À sua maneira, Mário Covas foi um excelente comunicador. Pouco ortodoxo, avesso a fórmulas prontas, às vezes desconcertante. Mas extremamente eficaz. Não sei se cheguei a ter alguma influência sobre esse extraordinário homem público, acostumado a discutir estratégias mais com seu tabuleiro de xadrez do que com seus assessores. Eu era apenas uma parte de uma eficiente equipe de comunicação cujo produto central eram os programas eleitorais pela televisão. Foi uma experiência pessoal e profissional inestimável aquela convivência diária, algo turbulenta, mas respeitosa e afetuosa, nas duas campanhas. Foi um imenso privilégio ter trabalhado com um político em cuja morte a palavra mais repetida nas coberturas da mídia foi: dignidade. (Fernando Pacheco Jordão, jornalista, foi assessor de imprensa de Mário Covas nas campanhas eleitorais de 1994 e 98)"
"Covas e a mídia", copyright Correio da Cidadania (www.correiocidadania.com.br), edição 236
"A morte de Mário Covas, no último dia 6, gerou o maior acontecimento midiático deste ano até o momento. O desaparecimento do governador de São Paulo tem diversos significados políticos. Analisar o comportamento da imprensa no episódio ajuda a compreender melhor alguns desses aspectos.
Antes de mais nada, é preciso dizer que o grande destaque que a morte do governador recebeu na mídia brasileira, especialmente nas redes de televisão, se justifica. Há muito tempo que os departamentos de jornalismo das TVs se transformaram em um apêndice dos departamentos artísticos. O noticiário atualmente é show, não informação e análise.
A morte de Mário Covas estava anunciada – dia a dia, cresciam os indícios de que a sua valente luta contra o câncer estava chegando ao fim – e os departamentos de jornalismo tiveram tempo para planejar detalhadamente a cobertura.
Na verdade, a mídia estava interessada no drama pessoal do governador, e não nos aspectos políticos que envolveram o seu passamento. O foco da cobertura sempre foi a luta de Covas contra o câncer e a sua coragem de revelar-se doente.
Com a notícia da morte, no início da manhã do dia 6, a novela da luta contra a doença deu lugar ao desfile de autoridades. Talvez em função da nossa latinidade, o fato é que no Brasil não se admite falar mal de morto. Aliás, não se admite nem sequer neutralidade: é imperativo elogiar.
As redes de televisão fizeram então o melhor que sabem fazer. A emoção tomou conta das telinhas e Mário Covas foi transformado no grande líder do tucanato, em um dos gigantes da nacionalidade. Nada muito diferente do que ocorreu quando faleceram os Mamonas Assassinas, Ayrton Senna e Tancredo Neves.
Um parênteses, antes que me acusem de estar minimizando a figura de Covas no cenário político brasileiro: sem dúvida alguma, o governador de São Paulo foi um personagem importante de uma etapa da história brasileira. Os jornais internacionais – The New York Times à frente – perceberam bem este fato e publicaram alentados obituários do governador.
Ainda é muito cedo para análises mais profundas – tarefa para historiadores -, mas a impressão que fica da leitura dos obituários da imprensa estrangeira é que Mário Covas foi um ator coadjuvante. O protagonista – cérebro e executor, para o bem ou para o mal, da implantação e da consolidação do receituário neoliberal no Brasil – chama-se Fernando Henrique Cardoso. A ver.
Parentêses fechados, voltemos à mídia. Não surpreende, portanto, que a cobertura tenha tido o tom emocional que teve. Também não surpreende que os tucanos tenham tentado se aproveitar politicamente do passamento de um dos seus, apresentando, no dia da morte e no seguinte, uma sequência de anúncios piegas no horário comercial das TVs. Tanta eficiência faz supor que os programas já estivessem prontos há um bom tempo.
Covas e o PT
O que surpreendeu, ao fim e ao cabo, foi o comportamento do PT. O partido perdeu a compostura. Para ser mais claro, todo o partido perdeu a compostura: a ?esquerda? e a ?direita?.
Senão vejamos. A direção do PT foi mais realista que o Rei e também ela mandou para o ar, em horário comercial, um filminho saudando Mário Covas. É bom lembrar que não há notícia de petista algum que tenha merecido tão solene homenagem. Foi uma coisa ridícula, que serviu apenas para revelar a vontade da direção petista de mostrar às elites que o partido é capaz de gestos cordiais. Em suma, que está apto para governar sem entrar em bolas dividas.
Quanto à ?esquerda? do PT, parece que a crítica da ?direita? sobre a falta de habilidade política faz algum sentido. Na semana passada, o informativo petista Linha Aberta foi palco de um embate entre membros do partido, iniciado por Julian Rodrigues, assessor do 3o vice-presidente do PT, Valter Pomar. Sinteticamente, Julian escreveu a ?verdadeira? biografia de Covas, comemorando o desaparecimento de um ?líder de direita? e ?perigoso inimigo político?. Pior do que os erros conceituais é a infantilidade de lançar o debate na semana da morte do governador. De lascar.
Para finalizar, gostaria de fazer minhas as palavras do colega Wladimir Pomar, que escreveu o texto abaixo neste Correio, logo depois que a doença do governador se agravou. Talvez seja o melhor e mais equilibrado depoimento que li a respeito de Mário Covas:
?É evidente que a esquerda perderá, por seu lado, um oponente franco, destemido e provocativo, que a obrigava a desdobrar-se para enfrentá-lo com argumentos e razão, no bom combate político. Nos tempos de hoje, de ressurgimento do anticomunismo troglodita contra todos que se colocam contra a exploração e dominação do capital, neoliberal, terceirista e de outros matizes, perder um opositor como Covas, mesmo em vida, é uma perda que se deve lamentar.?"
"A imprensa e a morte", copyright Pensata (www.folha.com.br/pensata), 14/03/01
"A imprensa brasileira tem uma relação curiosa com a morte, especialmente com a morte de figuras políticas. Pois todo o respeito que falta no tratamento de pessoas públicas, com críticas pessoais pesadíssimas e às vezes contraproducentes para o país (isso fica pra outra coluna), sobra quando essas mesmas pessoas estão à beira da morte. O rigor investigativo, o zelo e a vontade de tudo expor que acometem os melhores jornalistas e editores em situações normais parecem ser encobertos pela proximidade do descanso eterno.
Falo tendo como exemplo mais recente a morte de Mário Covas. Circulou nos meios jornalísticos, sempre em off, que à época da sua segunda cirurgia, no final do ano passado, o corpo do governador já estava devorado pela metástase e o quadro era irreversível. A única questão passível de dúvida seria quanto tempo de vida lhe restaria. Por quê não se publicou a versão que corria solta pelas redações? Porque as fontes não queriam se idenitifcar, dirão uns. Mas todos os grandes jornais costumam publicar declarações de fontes secretas nos casos dos mais variados – porque a distinção para a morte de pessoas públicas? Ou, se não se quisesse recorrer a esse expediente, bastaria uma rápida consulta a um oncologista ou associação de oncologia, propondo a seguinte questão: ?Tenho um paciente hipotético que teve um câncer na bexiga, e dois anos mais tarde observou-se metástase em seu sistema digestivo e excretor. Quais são as perspectivas desse paciente? Qual é o índice de sobrevida??. Pronto.
Outros dirão que não há utilidade em se divulgar essas informações funestas. Mas como não, se lida diretamente com a vida do homem eleito para cumprir com funções públicas? Acho difícil demonstrar-se que um eleitor não tem o direito de saber se o seu candidato, se o seu governador, terá condições de terminar o mandato. E as eleições para a prefeitura de São Paulo, teriam sido diferentes se os eleitores soubessem que o governador tinha, sei lá, 60% de chance de não viver mais do que meio ano, ou qualquer que fosse a sua probabilidade de sobrevivência (que eu desconheço)? Talvez. Por último, quiçá alguém vá dizer que não se deve tratar da vida pessoal de pessoas públicas, e eu até concordaria em princípio, mas não vejo por que devesse haver distinções para com a morte. Se se noticia nascimento de neto, operação de hemorróidas, etc. também tem de se noticiar uma morte iminente.
A forma pela qual Mário Covas faleceu, com a dignidade e transparência que lhe eram peculiares, serviu para melhorar a própria imprensa. Ao tornar sua doença pública e tratá-la sem rodeios, e aparentemente pedir a seus médicos que tivessem comportamento semelhane, Covas tornou impossível a tarefa do editor que quisesse preservá-lo, expondo-se ele próprio. Mas não foi o caso até então. Nas mortes de Sérgio Motta e, notadamente, Tancredo Neves, a imprensa dourou a pílula de tal forma que a morte foi recebida com choque pela população, mas todos os envolvidos pareciam saber há algum tempo que o fim seria aquele.
Não é possível ainda saber se Mário Covas mudou a imprensa ou se ela estava já mudando quando o encontrou. Mas se pode e deve esperar que a comoção que atingiu a pátria com o falecimento de um de seus filhos mais queridos surta efeito também sobre seus membros mais endurecidos, os jornalistas, e que esses tragam pra dentro de suas redações a honestidade tão venerada naquele que se foi. Seria uma grande homenagem ao espírito público de Mário Covas.
Cantinho do Menino Maluquinho
A destruição das fantásticas estátuas budistas pelo Talebã abre uma grande questão de relações internacionais e, talvez, um precedente desastroso para a humanidade. Consolidou-se nos últimos anos a noção de que soberania nacional tem limites, e que a justiça global pode julgar aqueles que perpetraram crimes contra a humanidade (caso de Pinochet), assim como os exércitos globais podem fazer intervenções ditas humanitárias (caso de Kosovo). E destruir o patrimônio cultural de uma civilização não entra nas categorias de crimes supranacionais? Se amanhã o presidente egípcio resolver dinamitar as pirâmides de seu país para abrir uma estrada, ou se o prefeito de Atenas quiser acabar com a Acrópolis para lá instalar um restaurante panorâmico, pergunto: o mundo deve assistir calado? Como defender esse patrimônio? E, se ele o for defensável, como prevenir os abusos? Como evitar que a mesma doutrina usada para salvar os kosovares não seja usada para invadir a floresta amazônica? Questões divertidas pra quem tenta imaginar como será, afinal, esse mundo globalizado."
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