Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Fernando Pedreira

VELHAS HISTÓRIAS

"De onde viemos todos", copyright O Globo, 6/01/02

"Sexta-feira, dia 4, o Estadão fez anos; coisa que periodicamente acontece, como se sabe, mesmo a indivíduos das melhores famílias, no caso, jornalísticas. Lembro-me de um outro 4 de janeiro, em 1975, há pouco mais de um quarto de século, portanto. O Estadão encerrava, então, o ano das comemorações do seu primeiro centenário e nós íamos publicar, naquela semana, um grande caderno celebrando a efeméride, contando a história das lutas do jornal e do tempo e reproduzindo documentos e depoimentos importantes.

O Estadão vivia, naquela época, momentos difíceis. Já há dois ou três anos, pelo menos, estávamos submetidos a um regime de censura prévia. Censores, escalados pelos militares, instalavam-se na redação, liam o que íamos publicar e cortavam o que queriam. No lugar dos cortes, para mostrar que o jornal estava mutilado, tudo o que podíamos fazer era publicar longos trechos dos Lusíadas de Camões, ou receitas de doces, no Jornal da Tarde.

Naquele dia, recebi um telefonema de Brasília, do Carlos Chagas, chefe da sucursal. Dizia ele: ?O governo soube que nós vamos publicar o Caderno do Centenário e exige que ele seja submetido também à censura. Se não, não pode sair.? Respondi que a exigência era absurda e nem sequer havia mais tempo para censurar (e, eventualmente, recompor) um suplemento de centenas de páginas. Por outro lado, nós nos submetíamos à censura do jornal diário porque não havia outro recurso; o jornal tinha de sair, a qualquer custo; não podíamos deixá-lo morrer. Mas o suplemento era diferente; era a História; e nós não estávamos obrigados a publicá-lo. Se os militares insistissem na exigência, não publicaríamos caderno nenhum e simplesmente o guardaríamos como testemunho da violência oficial, a ser devidamente divulgado, quando fosse possível.

Uma ou duas horas mais tarde, novo telefonema: o governo do general Geisel havia decidido suspender a censura prévia ao Estado; os censores estavam sendo recolhidos; não só o Caderno do Centenário, mas o próprio jornal podia, a partir daquele dia, sair livremente. Era, à sua maneira, a contribuição governamental às comemorações da efeméride… No primeiro momento, a surpresa foi grande e à alegria se misturou uma ponta de desconfiança: não seria mais uma armadilha, mais uma arapuca dos serviços de repressão? Mas, não. Logo viriam as confirmações e reafirmações das fontes mais altas, e o Estadão não demorou a retomar a publicação do seu tradicional primeiro editorial em duas colunas, interrompida desde 13 de dezembro de 1968, data da edição do famigerado AI-5.

Uma importante batalha havia sido ganha, embora muita água, algumas vezes misturada com sangue, devesse ainda passar por baixo da ponte; só nos últimos meses do seu governo, em fins de 1978, se bem me recordo, pôde o general Geisel revogar o AI-5; e um presidente da República civil, Tancredo Neves, encerrando o ciclo da ditadura militar, só viria a ser eleito (ainda que pelo colégio eleitoral) em janeiro de 1985, dez anos mais tarde.

Duas ou três semanas depois do fim da censura, encontrei num saguão de aeroporto um deputado pelo Pará, muito ligado ao general Golbery. ?Vocês até parece que não ficaram satisfeitos!?, exclamou ele. ?Só fazem, agora, meter o pau no governo!? Respondi simplesmente: ?E você acha que nós queríamos o fim da censura para falar bem do governo?? Milton Campos, senador, governador de Minas e talvez o melhor dos políticos que o Brasil jamais produziu (melhor até que o nosso atual presidente, FHC), costumava dizer que ?falar mal do governo é tão bom que é um privilégio que nós não devemos deixar à oposição…? No caso, entretanto, em janeiro de 75, criticar o governo, apesar da abertura política ?lenta e gradual? proposta e praticada pelo general Geisel, era talvez mais necessário que nunca e servia até, em muitos casos, para fortalecer o próprio general e seu parceiro Golbery em sua feroz luta interna contra a ala radical do regime, o sistema policial-militar repressivo que se tornara um segundo governo, dentro do próprio governo, propugnador do ?erro total? e defensor da antilei e do terrorismo de cima para baixo, tal como o definira, numa crônica memorável, Carlos Drummond de Andrade.

Velhas histórias. Velhas histórias que ainda agora, no começo de dezembro, há menos de um mês, portanto, me voltaram à lembrança depois de um breve encontro, no Rio, com um amigo, ainda dos tempos de estudante, Paulo Egydio Martins, ex-governador de São Paulo e amigo e colaborador do general Ernesto Geisel. Paulo Egydio participou de muitas dessas batalhas, ainda que à sua maneira, e teve mesmo papel importante em alguns episódios, embora muito pouco pudesse fazer como governante civil num regime ainda descaradamente (e arrogantemente) militar, como era aquele do AI-5.

Os militares haviam espertamente conservado alguns disfarces, alguns bigodes e cavanhaques postiços, na sua estrutura de poder essencialmente castrense.

Quem mandava era o Exército; mas havia um Congresso que se fechava e abria segundo a conveniência do momento, e no qual se votavam coisas e a própria oposição podia fazer discursos, embora seus melhores líderes, como Martins Rodrigues e Mário Covas (mas não Ulisses Guimarães e Tancredo Neves), fossem logo cassados. E havia, ainda, os governadores ?biônicos? dos Estados, que serviam como precário elo entre o general-presidente e as elites civis estaduais, tanto quanto possível disciplinadas e subordinadas aos altos desígnios do regime. Paulo Egydio foi um dos melhores e mais efetivos desses governadores e deixou, em geral, boa lembrança.

Só na década seguinte, entretanto, já sem AI-5 e sob a Presidência do último general, o general Figueiredo, um simpático e estouvado general que ?prendia e arrebentava?, mas era na verdade manso e bem-intencionado, viriam os governadores estaduais a ser eleitos diretamente, pelo voto do povo, o que mudou totalmente seu caráter e acabou permitindo, na verdade forçando, a aliança entre governadores da oposição (Tancredo, Montoro) e governadores da situação (Roberto Magalhães foi o primeiro deles) que possibilitou a campanha ?das diretas?, em 1984, e, afinal, a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em janeiro do ano seguinte.

Essa mesma aliança, embora com rótulos diferentes, é a que ainda hoje governa o Brasil, sob Fernando Henrique. Contra uma oposição nova, que se cristalizou mais tarde, em torno do PT e da CUT e da Igreja militante de dom Evaristo Arns, mas que arvora, paradoxalmente, idéias muito antigas de socialismo marxista e igualitarismo cristão…

Purgamos nossos pecados, quem sabe, agora em 2002."

 

CENSURA

"Mundo teve piora na liberdade de imprensa em 2001, diz relatório de ONG", copyright Folha de S. Paulo, 3/01/02

"A liberdade de imprensa no mundo deteriorou-se em 2001, de acordo com um relatório da organização Repórteres Sem Fronteira. Com exceção do número de jornalistas mortos (32 em 2000 e 31 no ano passado), todos os demais índices mostraram uma piora. O número de detidos, 488, aumentou em cerca de 50% em relação a 2000. Já o número de jornalistas ameaçados ou atacados, 716, cresceu em mais de 40%. Atualmente há cerca de 110 jornalistas atrás das grades. Esse número vinha caindo desde 1995, mas voltou a crescer em 2001. A Ásia foi o continente mais letal para os repórteres: 14 foram mortos na região, oito deles na guerra no Afeganistão. Na América Latina, três jornalistas foram mortos na Colômbia e um no Haiti. Na Europa, repórteres também foram mortos na Espanha, na Irlanda do Norte, na Ucrânia e em Kosovo. Na África e no Oriente Médio, nenhum repórter foi morto no exercício da profissão."