OS SERTÕES, 100 ANOS
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Eu tinha que ler ?Os Sertões? se queria ser um escritor brasileiro. Meti isso na cabeça e entreguei-me à tarefa obrigatória. No início foi penoso, mas, bravamente, atravessei as áridas páginas da primeira parte, ?A Terra?, e passei ao capítulo seguinte, de travessia igualmente difícil, pelo menos até chegar aos tipos humanos -o sertanejo, o vaqueiro, o jagunço… Meu interesse era conhecer a história de Antônio Conselheiro, que se tornara lendária, tema dos cordéis da infância. E, quando a ela cheguei, não larguei mais o livro até a última palavra do derradeiro capítulo. (Ferreira Gullar é poeta e ensaísta, autor de, entre outros, ?Toda Poesia? (ed. José Olympio) e ?Argumentação contra a Morte da Arte? (ed. Revan)."
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Meu pai, professor Jorge Borges Corrêa, a quem também festejo o centenário dedicando a montagem de ?Os Sertões?, foi quem trouxe para casa aquele bendengó (aerolito, trambolho em tapuio) encapado com um pano azul claro. Fiquei beliscando sem ousar comer. Títulos das três partes… tentando ler, parei no primeiro muro do Planalto Central e fui dizer pra todo mundo que já tinha lido. Mas nunca mais em toda minha vida parei de namorá-lo.
Paixão à primeira vista. Posso dizer que o Oficina ganhou sua longevidade de 41 anos graças às energias de Canudos, incorporada em possessão por Euclides. Decidi, aos dez anos, estudar geologia na Escola de Minas e Metalurgia de Ouro Preto, para varar a muralha geológica. Neste ano fiz os atores decorarem todas aquelas páginas e montar, para ver se o que achava deslumbrante eu conseguiria pegar na mão com nunca felizmente alcançado total entendimento. Oswald achava a melhor parte, ?a descoberta do avião, antes de Santos Dumont?.
Compreendi que para mim a leitura deste livro foi sempre coletiva, e esteve sempre ligada a uma prática teatral. (José Celso Martinez Corrêa é ator, diretor e co-fundador da companhia teatral Oficina Uzyna Uzona. Realizou montagens como ?Roda Viva?, ?O Rei da Vela?, ?As Bacantes? e ?Ham-let?.)"
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Na íntegra, li pela primeira vez ?Os Sertões? no México. Era uma edição em espanhol. Estava desenvolvendo o meu projeto de doutorado sobre as lutas camponesas no México nos anos 1920-1940, quando resolvi comprar uma edição que encontrei num sebo. Comecei a ler despretensiosamente. Tinha tido contato com ?Os Sertões? em 1977, mas abandonara a leitura, achando que o livro era muito chato e pouco revolucionário. Preferi ler ?Sobre a Guerra Popular Prolongada?, do companheiro Mao Tse-tung.
Dez anos depois, mudei radicalmente de idéia. O livro foi uma revelação. Abandonei o projeto de doutorado, para estranheza inicial da minha orientadora -professora Maria Lígia Coelho Prado-, e resolvi estudar o Brasil do final do Império e início da República, o cristianismo brasileiro e o Nordeste sempre rebelde. E esse reencontro com a história do Brasil e com Canudos ocorreu devido à leitura de ?Os Sertões?. Desde então é uma relação de amor e ódio. Vez ou outra fico irritado com determinadas explicações euclidianas. Mas o mau humor passa quando a leitura segue e a cada página volto a ficar encantando: é uma espécie de feitiço. (Marco Antonio Villa é professor de história no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP) e organizador de ?Canudos, História em Versos? (Imprensa Oficial de SP/Edufscar/ed. Hedra).)"
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Conheci tarde o livro de Euclides. Por dever de ofício, primeiro, por paradoxal sedução, depois. Não creio que tenha verdadeira leitura para quem não conheça o Brasil. Precisamente o Brasil que Euclides inventa escrevendo-o por paixão de geógrafo e empenhamento jornalístico e político. Em todos os sentidos, ?Os Sertões? é um livro não só singular, mas insólito. É como uma estátua da ilha de Páscoa na paisagem, nem sequer literária, brasileira. Está aquém e além da literatura. Certas descrições são célebres (o higrômetro). O todo, inóspito, abrupto, arcaico, tornou-se mítico.
É um livro que o leitor deve construir com o material apenas elaborado do autor que está ao mesmo tempo fora do seu texto e dentro dele. A revolta de Canudos, que devia ser uma mera excrescência da sua ficção ctônica e antropológica, revela-o a si mesmo como um Homero bárbaro, como todos os Homeros. A crônica de um episódio excêntrico de um mundo excêntrico converte-se, graças à sua paixão cívica e ética, em adivinhação e compaixão proféticas por conta do futuro. A crônica de um Brasil como o avesso do Paraíso. Com Antônio Conselheiro como um redentor sem redenção. (Eduardo Lourenço é um dos principais ensaístas portugueses e ganhador do Prêmio Camões de 1996. É autor de ?A Nau de Ícaro? e ?Mitologia da Saudade? (Companhia das Letras), entre outros.)"
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"De minha primeira leitura de ?Os Sertões?, feita há mais de 40 anos, fica o que utilizei em meus livros, quando escrevi sobre a Bahia. Mas a segunda, feita recentemente, foi a mais forte: não li com ouvidos de historiadora, mas com os da literatura. Além disso, na primeira vez eu nem conhecia a área da Bahia onde se passa o livro. Hoje conheço toda a região.
Minha preocupação atual não é mais conhecer, mas tentar decifrar um pouco do que Euclides teria visto daquele sertão do qual ele não teve propriamente uma vivência, a não ser numa situação particular, de guerra. Hoje releio Euclides e ?Os Sertões? em paralelo com as suas cartas, que são um precioso material. E também estou interessada nas relações -sobretudo nas diferenças- entre as visões dele e as de Capistrano de Abreu. (Katia M. de Queiros Mattoso é professora de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne (França) e autora de ?Bahia, Século 19? (Nova Fronteira) e ?Ser Escravo no Brasil? (Brasiliense).)"
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Li ?Os Sertões? acho que no último ano do curso clássico do Colégio Estadual Presidente Roosevelt. Apesar das recomendações em contrário, iniciei a leitura por onde o livro começa, ?A Terra?, munido de dicionário e enciclopédia. Com isso, ganharia o direito de fruir o melhor pedaço, o das cenas de guerra, mais próximo da imaginação de quem não perdia um filme de ação disponível nas telas da cidade.
Mais tarde, aluno da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, participei uma vez de um grupo de estudos de Euclides da Cunha, que se reunia todos os anos em São José do Rio Pardo (SP), em romaria à cabana onde o engenheiro genial teria redigido a obra-prima. Era, porém, um encontro de estudantes mais interessados em assimilar a retórica do autor em exercícios de oratória do que em compreender a sua visão trágica do Brasil.
O terceiro encontro com o livro se deu quando conheci na Bahia dois apaixonados conhecedores da obra de Euclides da Cunha, o jovem Glauber Rocha e o pintor Calazans Neto. Na cabeça de Glauber fermentava o roteiro de ?Deus e o Diabo na Terra do Sol?, que fez de ?Os Sertões? um dos fundamentos do cinema brasileiro moderno. (Nelson Pereira dos Santos é cineasta, diretor de ?Rio 40 Graus? (1955), ?Vidas Secas? (1963), ?Memórias do Cárcere? (1984), ?A Terceira Margem do Rio? (1994), entre outros.)"
"Primeira leitura: Os Sertões", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Cheguei à maioria dos clássicos da literatura nacional e universal pelas mãos do cinema. ?Os Sertões? não fugiu à regra. Em Belo Horizonte, vivíamos às voltas com o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) e com a ?Revista de Cinema?, quando Glauber Rocha nos caiu na cabeça como um bendengó. Isso nos idos de março de 1957. Nasci em 1936. Saía dos meus 20 anos. Glauber tinha viajado a Minas para conhecer as cidades históricas. Acabou topando com a gente graças ao Fritz Teixeira de Sales, seu anfitrião.
Foi convidado para uma palestra no CEC. Glauber nos achou teóricos, formalistas e estrangeirados. Em carta a um amigo baiano descreveu as andanças belorizontais: ?Bebo há quatro dias e estou doente. Grande turma. Muito veado. Muita gente séria. Muita mulher feia. Muito concretista. Muita sofisticação. Muita inteligência?. Munido de verve e de espírito de aliciamento, Glauber serviu cangaceiros e conselheiristas na terra de Juscelino Kubitschek. Espancava, discorria e incitava ao quente com veneno. Leiam ?Os Sertões? e o ciclo da cana-de-açúcar de Lins do Rego. Deixei de lado os favoritos e fui lê-los. Descobri que ?Os Sertões? não é livro pra ser lido. É pra ser anotado. Na verdade, só o descobri quando o reli anos mais tarde. (Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de, entre outros, ?Stella Manhattan? e ?Uma Literatura nos Trópicos? (ambos pela ed. Rocco).)"