DEUS-MERCADO
Paulo Henrique Paolielo (*)
Confesso que invejava o posto do amigo. Não, não era ressentimento mesquinho; apenas que também sempre fora meu sonho trabalhar naquele jornal. Acho mesmo que quando entrei para a faculdade de Comunicação, mais do que apenas ser jornalista, eu queria me arranjar como repórter daquele diário. Com o tempo, o deslumbramento diminuiu, conheci áreas novas, interessantes; mas o jornal retinha um quê do glamour. E meu amigo tinha chegado lá. Não como repórter, mas como pauteiro. Lembro-me do dia em que ele foi chamado para a entrevista. Ficou eufórico. Fomos todos comemorar, bebemos juntos no boteco de sempre pela última vez. Foi contratado.
Depois, pouco a gente se falava, um ou outro e-mail trocados, cada vez mais esparsos. Então há poucos meses viajei, fui pela primeira vez ao exterior. Mas ficaria na cidade do grande aeroporto internacional por pelo menos uma tarde inteira (questão de horário, atrasos), aguardando o vôo para a Europa. Resolvi ir visitar o amigo importante, aquele que, até então, tinha se dado melhor na turma.
O prédio era razoavelmente perto. Quando desci do táxi, olhei imediatamente para cima, esperando ler, sobre o edifício, em letras hollywoodianas, o nome do jornal (nosso imaginário…). Mas era apenas uma triste fachada acinzentada, nada glamourosa. Enfim, me fiz anunciar na portaria. A expressão da moça que me atendeu era loquaz: seus olhos e sua boca ? os lábios inferiores que pendiam um pouco ? diziam claramente que estávamos em 2014, ninguém mais "se faz anunciar". E me indicou, com um gesto, uma porta no fundo. "Na redação, terceiro andar", completou.
Subi. Quando a porta do elevador se abriu, não escutei nenhum ruído. Olhei desconfiado para o mostrador dos andares, logo acima da porta, para certificar-me de que a luz que indicava o terceiro estava mesmo acesa. Coloquei a cabeça pra fora e fui caminhando, devagar, cheirando o ambiente, tentando farejar alguma coisa familiar. O local era calmo, ninguém gritava. Só então escutei barulhos e percebi que nem eram barulhos tão baixos. Mas também atinei que estava de tal forma preparado para uma balbúrdia que meu ouvido, sugestionado, tornara-se temporariamente incapaz de ouvir sons abaixo de um certo número de decibéis.
Sim, a redação era tranqüila. E não reconheci, entre os poucos rostos que conseguia enxergar, o do meu amigo de faculdade. Um tanto reticente, dirigi-me ao rapaz que mexia em alguns papéis: "… é, Carlos Alberto, pauteiro de…". Ele chamou por outro rapaz, que veio solícito até mim. "Você que é da manutenção?", perguntou-me.
Fiquei mais embaraçado. Demorei até explicar que não, que era amigo do Carlos. Achei que essas palavras teriam um bom efeito sobre ele. Mas apenas me disse para esperar um pouco, que o Carlos apareceria logo. Fiquei sozinho em pé, sem saber o que fazer com as mãos. Ora tamborilava com os dedos sobre a madeira, ora roia as unhas, ora coçava a cabeça. Fiquei assim por pelo menos uns quinze minutos, durante os quais olhei para o relógio mais de quinze vezes.
Uma plaquinha
Três pessoas entraram e saíram da sala nesse intervalo. A quarta era Carlos. Aliviado, andei a passos largos por entre as mesas até alcançá-lo. Segurei seu braço. Ele ficou bastante feliz em me ver (não chegou a aumentar o tom da voz). Levou-me para sentar à uma das mesas, sobre a qual havia um computador apagado. Trocamos novidades e amenidades durante quase meia-hora. E, nesse meio tempo, não o vi fazendo nada nem sendo interpelado por ninguém. Estranhei, mas nada disse. Achei que pudesse ser por causa do computador estragado.
Quando o assunto recaiu sobre o jornal, ele me contou que nos últimos dias tinha recebido uma espécie de promoção. Fora elevado a responsável pela primeira página. Simulei (por camaradagem) um espanto maior do que o que realmente havia me acometido. "Primeira página…!", disse, como se as palavras e a entonação que nelas pus dispensassem adjetivos complementares. Então, como continuava curioso sobre sua ociosidade, perguntei: "E a rotina? Muito pesada?". Como que respondendo-me antecipadamente, ele espreguiçou-se no espaldar (sempre quis escrever isso) da cadeira e me contou que, ao contrário do que podia parecer, sua função era uma das mais sacrificadas dentro do jornal.
Embora desejando sinceramente acreditar no amigo (e, de fato, não tinha motivos para duvidar), meu rosto denunciava a incredulidade. Ele então revelou, e disse-o num tom mais baixo, que não tinha poderes para decidir quando fechar a manchete da primeira página. Sempre tinha que aguardar o momento em que "ele" se decidisse.
Nesse intervalo, nada poderia fazer a não ser esperar, como agora. Por "ele", tomei primeiro o editor-geral. Mas logo reconsiderei: o editor-geral, também jornalista, não seria tão caprichoso com o tempo. Então pensei no dono do jornal. Claro, ele tinha que esperar até que o proprietário desse as ordens do que sairia em destaque na edição seguinte. "O dono?", tentei. Mas ele negou com a cabeça.
Não havia, de sua parte, nenhum ar de mistério. Era eu que, espicaçado pela vontade de adivinhar sozinho quem era "ele", não o deixava mais falar. Disse-lhe: "Nova York, claro…" E sorri um sorriso que, se não era de triunfo, era de muita satisfação. Mas tampouco era pelas palavras dos acionistas americanos que ele aguardava.
Então se levantou e me fez acompanhá-lo. Entramos em uma pequena sala, na qual havia um único computador sobre uma mesa. Nada o diferenciava dos demais computadores da redação. Ele sentou-se e começou a digitar. Só então reparei que na borda da mesa, logo abaixo do monitor do computador, estava pregada uma pequena plaquinha de plástico escrito em azul: "Mercado".
Manchete em branco
"O mercado", disse-me. "O quê?", repliquei, acordando de minhas conjecturas. "É ele", continuou, sem desviar os olhos da tela. "Ele é que é o Mercado, quer dizer, o Mercado é que é ele…". Procurei em vão a metáfora escondida em suas palavras. Então ele me esclareceu que, para fechar a primeira página, tinha que esperar a opinião do Mercado. "Opinião sobre o quê?", perguntei, ainda sem compreender direito. "Sobre tudo".
Contou que aquele computador estava ligado diretamente ao servidor do Mercado. O jornal (assim como toda a concorrência) pagava uma assinatura mensal de 250 dólares para ter acesso diário à opinião do Mercado sobre os mais diversos assuntos. "Mas por que não fazer do jeito comum?", eu tentava objetar (sou do contra), "por que não uma reportagem com analistas daqui mesmo?". E lembrei que ele poderia estar falando do mercado internacional; mas não me dei por achado (sou antigo): "E as agências? Não bastam?".
"Você não está entendendo", ele disse, paciente. "A opinião que nós esperamos é a do Mercado. Essa, nós só temos nesse servidor". E prosseguiu, dessa vez sem me deixar interrompê-lo: "Agora, por exemplo, mandei uma consulta. Quero saber o que o Mercado acha do novo ministro da Indústria, Comércio e Internet. Estou esperando a resposta há mais de duas horas." "E…?", vacilei. "Mas não tem um prazo estabelecido. Ele só se manifesta quando quer. Pode levar um dia inteiro."
Então compreendi. A função dele era difícil por isso. Tinha que dar plantões de às vezes vinte horas, aguardando a manifestação do Mercado (os colegas, disse, chamavam-no, jocosamente, "operador do Mercado"). A tensão era imensa. Às vezes a resposta poderia vir de madrugada, atrasando toda a edição. Às vezes (felizmente eram poucas) poderia simplesmente não chegar, e a manchete de primeira página saía em branco. Acontecera duas vezes nos últimos três anos. Ingênuo, perguntei: "Mas não basta colocar uma outra manchete no lugar?". Ele me fitou nos olhos por uma fração de segundos, mas bastou para eu perceber que minha pergunta não merecia resposta.
(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina