TRIPÉ SATÂNICO
Rogério Augusto de Barros Gonçalves (*)
Acabou o mistério: a principal responsável pelas vendas casadas que obrigam o usuário da conexão à internet em banda larga a contratar os provedores-laranja é a SPV (Superintendência de Serviços Privados) da Anatel. Quando requisitada pela Justiça a se pronunciar sobre o assunto, em vez de relatar fielmente o texto da lei, que não deixa dúvidas sobre a ilegalidade da exigência da venda casada, prefere dar uma interpretação própria que, além de altamente nociva aos direitos do consumidor, incentiva as operadoras a cometerem outras violações à legislação das telecomunicações. [Venda casada: prática proibida pelo Código de Defesa do Consumidor, é a obrigatoriedade de o usuário ter um provedor, quando fisicamente a conexão pode ser feita apenas pela operadora, que configura também dupla cobrança.]
A Anatel é uma agência reguladora com nível de ministério: suas regulamentações têm força de lei, o que a coloca como autoridade máxima em assuntos de telecomunicações em nosso país.
Devido a esse status, os documentos oficiais emitidos pela agência tornam-se provas incontestáveis e decisivas nos tribunais, o que tem sido freqüentemente utilizado pelas teles para cassar liminares que suspendem o pagamento aos provedores-laranja, obtidas por usuários de banda larga que questionam a venda casada na Justiça Cível. Quando o juiz cassa as liminares dos usuários sempre parte do princípio de que as informações fornecidas pela Anatel são verdadeiras e que nada foi omitido, pois isto seria crime.
Entretanto, sempre que se manifesta em informes oficiais sobre denúncias de venda casada, a Superintendência de Serviços Privados da Anatel utiliza como base a Norma 004/95 do Ministério das Comunicações ? e inexplicavelmente omite o item 7 desta norma, que diz:
7. Entidade exploradora de serviços públicos de telecomunicações como provedora de serviço de conexão à internet
7.1. A EESPT, ao fixar os valores a serem praticados para o seu SCI, deve considerar na composição dos custos de prestação do serviço, relativamente ao uso dos meios da Rede Pública de Telecomunicações, os mesmos valores por ela praticados no provimento de meios a outros PSCIs.
Creio que a única interpretação possível para este item é: as teles podem ser provedoras de acesso internet para qualquer tipo de usuário, e não precisam de provedores-laranja para nada. Portanto, a venda casada é ilegal.
Este item existe na Norma 004 por uma razão meramente estratégica, pois na época em que ela foi editada o Ministério das Comunicações não fazia a mínima idéia de como o mercado se comportaria com a entrada dos novos provedores internet comerciais. Caso os provedores criassem algum tipo de cartel para dominar o mercado (como as teles estão fazendo agora), o item 7 permitiria uma intervenção, com as teles estatais agindo também como provedoras de acesso internet para disciplinar o mercado. Todos os provedores de acesso (PSCIs) sabiam disso previamente.
“Laranjal” justificado
A intervenção no mercado nunca foi necessária, e o item 7 acabou ficando esquecido. Mas as teles sempre puderam ser provedoras de acesso internet.
Só que esqueceram de avisar isso à SPV, da Anatel, e os coitados andam emitindo uns informes meio estranhos, que afrontam o Código de Defesa do Consumidor, prejudicam algumas centenas de milhares de usuários e permitem que as teles formem um cartel para monopolizar o mercado de acesso internet em ADSL.
Em <a href=”JavaScript:avulsam(‘bvavm.asp?nnota=11&emp=tele’,’javm11′);”> você pode ver um informe padrão da SPV da Anatel, no qual são omitidos os dados do requisitante.
Por não existir absolutamente nada na legislação das telecomunicações que impeça as teles de serem provedoras de acesso internet (PSCI), o pessoal da SPV/Anatel esbanja criatividade para encontrar argumentos que justifiquem a existência dos provedores-laranja.
Alguns já são até folclóricos, como o artigo 61 da LGT, que fala sobre Serviço de Valor Adicionado, o principal argumento dos informes da SPV, que nem poderia mais estar sendo utilizado, pois já foi apreciado em 3/9/2001 pelo STJ no caso Sercomtel, e até criou jurisprudência sobre o assunto: “8. O serviço prestado pelo provedor pela via da Internet não é serviço de valor adicionado, conforme o define o art. 61, da Lei n? 9.472, de 16/07/1997.”
Os informes da SPV também são bem originais quando fazem referência somente aos itens da Norma 004/95, que são mais convenientes para justificar a defesa da venda casada. Existem também outras pérolas, como a afirmação de que basta a autorização de SRTT para que as teles possam comercializar o acesso em ADSL, que foi originalmente criado para permitir a transmissão de vídeo digital através de linhas telefônicas comuns (POTS), mais ou menos como uma TV a cabo por telefone, análogo aos padrões MMDS e DTH dos Serviços de Comunicação Eletrônica de Massa.
Para a SPV, a licença de SCM é totalmente dispensável no caso das teles, que com as suas autorizações de SRTT podem transmitir vídeo-sob-demanda à vontade aos assinantes de ADSL.
Deveria ser obrigação da SPV consultar a LGT antes de incluir em seus informes oficiais afirmações categóricas como “A regulamentação de serviços de telecomunicações vigente, emitida pela Anatel, não trata a exploração de serviços do ponto de vista das diversas tecnologias, como o ADSL, por exemplo”. Esta afirmação contraria diretamente o artigo 69 da LGT, que diz: “Art. 69. As modalidades de serviço serão definidas pela Agência em função de sua finalidade, âmbito de prestação, forma, meio de transmissão, tecnologia empregada ou de outros atributos. Parágrafo único. Forma de telecomunicação é o modo específico de transmitir informação, decorrente de características particulares de transdução, de transmissão, de apresentação da informação ou de combinação destas, considerando-se formas de telecomunicação, entre outras, a telefonia, a telegrafia, a comunicação de dados e a transmissão de imagens.”
Os informes enfatizam que as teles não podem comercializar o acesso internet, somente fornecendo a rede de transporte, tentando justificar com isso a existência dos provedores-laranja. Isto significa que a própria Anatel recomenda que um serviço de telecomunicações com características de comunicação de massa como o ADSL seja prestado por empresas totalmente alheias à área.
Teste a Anatel
Eu acho que a Anatel só ficou sabendo da existência do item 7 da Norma 004/95 quando enviei e-mail no dia 8/9/2002 diretamente ao ouvidor, Sr. Fernando Reis, que está no cargo desde junho de 2002. Só, que a esta altura do campeonato, a lambança já foi feita e um monte de informes da SPV que omitem o item 7 da norma já foi enviado à Justiça, várias liminares foram cassadas em função destes informes e muitos consumidores acabaram sendo prejudicados por eles.
A Procuradoria de Ordem Econômica do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro achou interessante o teor do item 7. Tanto que estará questionando diretamente a Anatel sobre o assunto. Talvez seja apenas uma questão de tempo para que os procuradores de outros estados façam o mesmo.
Portanto, para desmascarar a cascata dos provedores-laranja basta que se redirecione a artilharia contra a Anatel, questionando o item 7 da Norma 004/95. Pois, enquanto ela puder utilizar seus informes fajutos para cassar liminares, as possibilidades de sucesso das ações cíveis que contestam as vendas casadas serão praticamente zero.
Um último detalhe que merece registro: no dia 16 de agosto de 2002, formulei duas simples perguntas à Anatel:
1) Os senhores poderiam informar se existe alguma lei ou regulamento que proíba as empresas concessionárias de serviços de telefonia fixa comutada (STFC) de serem provedoras de acesso à internet para usuários domésticos? Por favor, respondam somente sim ou não.
2) Caso exista, poderiam informar o número da lei e do artigo ou o número da resolução?
Pois bem: até hoje, 21 de setembro de 2002, a Anatel não se dignou a respondê-las.
Experimentem fazer um teste. A URL para fazer perguntas à Anatel é:
<http://200.252.158.174/faco/atendimento/atendimento.asp>.
(*) Especialista informática e desenvolvedor de sistemas para internet. Webmaster do site Eu amo a Telemar <http://tele171.cjb.net>
Leia também
Seleção de links para textos sobre as irregularidades na prestação do serviço de acesso à internet no Brasil