Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Flebizado???

“Livros sem papel, vida sem graça”, copyright O Estado de S. Paulo, 25/6/00

Especialistas talvez devêssemos chamá-los de e-specialistas – prevêem que o livro impresso, de papel e cola, vai tornar-se obsoleto por causa dos sistemas eletrônicos de distribuição de texto. Um deles, o Microsoft Reader, já está no mercado, oferecendo ‘livros’ num PC de bolso fabricado pela Hewlett-Packard. De fato, isso não é impossível de acontecer: hoje em dia, grande parte da comunicação escrita que circulava por cartas, jornais e revistas passou para a tela do computador e para a imensa biblioteca digital disponível na Internet. Se o pior acontecer e o livro de papel seguir o mesmo caminho dos rolos de papiro e dos códices de pergaminho, pressinto que vamos sentir falta dele, por vários motivos.

O livro como mobília As fileiras de livros na estante aquecem e iluminam a sala mais escura, enquanto os volumes espalhados aqui e ali indicam processos mentais em atividade; são livros em fase de consumo, temporariamente abandonados, mas que podem ser prontamente retomados amanhã ou no ano que vem. Ao lado da cama ou da espreguiçadeira, eles são uma promessa de libertação cômoda, imediata e silenciosa deste mundo para um outro, sem outro movimento além do livre e imperceptível engrenar das células do cérebro. A facilidade de acesso e a velocidade de armazenagem tornam o livro praticamente imbatível.

O livro como prazer sensual Menor que uma cesta de pão e maior que o controle remoto da TV, o livro normalmente se encaixa na mão humana num aconchego sedutor, um beijo de textura, quer tenha capa de pano, de papel ou sobrecapa acetinada. Seu peso repousa no dedo mindinho da mão direita por horas a fio sem que ele dê sinal perceptível de cansaço, enquanto o polegar mantém abertas as páginas para que os dedos da outra mão possam virá-las. A mancha retangular do texto, produto de cinco séculos e meio de saber dos impressores, se deixa decifrar com uma doçura tal que raramente nos damos conta da diferença que há entre imergir num mundo imaginário e observar com atenção a mobília da sala.

Nas últimas e atribuladas décadas de existência do livro, a necessidade de ser ‘apresentado’ nas livrarias de maneira a chamar a atenção deu lugar a volumes inchados, com páginas e letras maiores que o desejável, sujeitando o citado dedo mindinho a um esforço doloroso. É provável que a escassez de papel durante a 2ª Guerra Mundial tenha abalado a confiança estética dos fabricantes de livros. Os mais convidativos são os das décadas de 20 e de 30, com um formato de fácil manejo, margens generosas e impressão nítida. No entanto, qualquer que seja a sua apresentação, um livro ainda é melhor companhia na cama que um laptop, zumbindo, plugado num fio.

O livro como souvenir – A coleção que cada pessoa faz acaba simbolizando o conteúdo de sua mente. Os livros lidos na infância ou na sôfrega adolescência, na faculdade e nos primeiros anos de vida adulta consciente costumam acompanhar os leitores quando se mudam de uma casa para outra.

Lembro-me de que os textos de faculdade da minha mãe ficavam, intocados, num canto da estante de nossa casa de campo, irradiando os prazeres da poesia renascentista e do teatro grego, ao mesmo tempo que eram lentamente perfurados pelas traças.

A maioria dos meus livros da faculdade ainda estão comigo, raramente consultados, mas sempre ali, reminescentes dos momentos, dos estágios de uma peregrinação. Várias décadas, desde então, acrescentaram seu próprio repertório e camadas de volumes lidos, ou lidos pela metade, ou à espera de serem lidos. Os livros preservam, delicadamente, a fragrância da primeira leitura – esta praia, aquele apartamento, o ataque de crupe, um vôo para a Indonésia.

Sem esse testemunho físico, minha vida seria mais espectral. Mas, seja como for, eles se amontoam à minha volta, em pilhas que se elevam acima da minha cabeça, e não apenas como uma extensão do meu passado, fincando seus alicerces em minhas escassas anotações feitas nas margens, mas também se alçando até as nuvens das nobres intenções – livros que aguardam para ser lidos, pesados como uvas não colhidas, almiscarados, com anos de pó que num segundo se espaira ao, subitamente, serem manuseados, quando, enfim, chega o momento triunfal de serem folheados e absorvidos. Tais livros constituem a garantia de um futuro infini-to, assim como seus irmãos já lidos, mas em grande parte esquecidos, formando uma reserva infinita de potenciais releituras, por novos ângulos e descobertas, num terreno em que as marcas de nossas pegadas se desvaneceram. Os livros exteriorizam nossa mente e transformam nossas casas em corpos pensantes.

Livros como lastro – Como sabem quem faz mudanças e quem se muda, livros são uma carga pesada. É como se o peso de geladeiras e sofás estivesse dividido em caixas de papelão. Eles nos obrigam a pensar duas vezes antes de mudar de endereço. Quantos casais de idosos não decidiram ficar onde estão por não terem a menor idéia do que fazer com seus livros? Quantos divórcios já não foram cancelados por amor à biblioteca adquirida pelo casal?

Os livros refreiam nosso sorriso; eles atuam como contrapeso da nossa natureza caprichosa e frívola. Em contrapartida, todo dispositivo eletrônico de distribuição de texto carece de substância. Além do mais, já que o assunto é obsolescência, basta um ano para que tais engenhos fiquem ultrapassados, e 15 anos para que se tornem inoperantes, como aconteceu com meu antigo processador de texto, um precioso Wang de meados da década de 80.

Tudo o que é eletrônico equivale (ou e-quivale, como queiram) ao que é imaterial; é Ariel em contraposição ao nosso Caliban terreno. Sem livros, talvez nos misturemos às ondas etéreas e nos tornemos apenas mais um punhado de bips.”

 

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