Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Flávio Aguiar

GOVERNO LULA

“O que muda e o que não muda (II)”, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 2/10/03

“Tom conservador da mídia ao falar do governo, aplaudindo o que seria continuísmo de políticas anteriores e condenando o que se aproxima do cumprimento de compromissos sociais históricos é culpa do próprio governo.

Prometi na semana passada aos leitores que comentaria dois aspectos que me saltaram aos olhos ao ler nossa imprensa a um tempo variegada e monocórdica, na semana passada, enquanto eu passava por aeroportos indo para e vindo de Brasília. Comentei um: a oportunidade que se abria de discutir os caminhos, impasses, escolhas e condição do governo Lula deixando de lado os adjetivos e passando aos substantivos da análise. Nesta trilha procurei analisar o que havia de comum entre os ?jovens? administradores do tempo de Fernando Henrique e os agora ?jovens? sindicalistas que chegam ao Planalto e à Esplanada dos Ministérios. Procurei analisar como eles compunham uma ?geração? à luz de um certo pragmatismo administrativo e político, construído a partir do contato ou do conviver com universidades norte-americanas ou com a social-democracia européia da ala reformista.

Vamos hoje ao segundo aspecto. Consiste ele em observar como a visão conservadora, sempre presente e alerta em nossa imprensa, procura ?enquadrar? os caminhos, impasses, escolhas e condição do governo Lula.

Partindo de uma agenda neo-liberal como necessária e suficiente, esta visão conservadora vem construindo, passo a passo, uma moldura de avaliação para o governo com as seguintes balizas:

1) Tudo aquilo em que o governo acerta é uma continuação de tendências passadas;

2) Tudo aquilo em que o governo erra é uma inovação baseada na sua vida partidária pregressa, sobretudo se tenta inovar na área social, melhorando não só a vida, mas a participação dos pobres, excluídos, trabalhadores, etc., na determinação de seus rumos (governo) ou de seus destinos (pessoas e coletividades);

3) O governo acerta sempre que continua as agendas pregressas;

4) O governo erra sempre que tenta infletir à esquerda.

São quatro balizas que compõem esta moldura, de que cada órgão de imprensa ou comentarista tem sua própria versão. Ela aparece de modo mais sensível nos jornais diários, nas revistas semanais e em alguns comentaristas de programas de televisão, sobretudo na área econômica e social. No rádio confesso não ter muita idéia no momento.É isso que faz, por exemplo, órgãos conservadores elogiarem a política externa do governo. Apesar dela ter uma clara, ainda que cautelosa, inflexão à esquerda, seu sucesso, para esse pensamento, se deve a dar continuidade a uma política iniciada ainda na ditadura militar, particularmente no governo Figueiredo (já que para essa imprensa o nacionalismo meio megalomaníaco do período Geisel, quando na verdade se deu a inflexão de abandono de alinhamento com a política da guerra fria, é demasiado). Ao mesmo tempo, se o governo busca qualquer forma de diálogo com o MST, isso entra no campo das ?inovações petistas?, e deve ser imediatamente condenado.

Ocorre que o governo, e particularmente o grupo identificado como palaciano, termina por se enquadrar e mais, se acomodar, nestas balizas e nesta moldura, por falta de uma linguagem e de uma política adequadas para enfrentar a situação. Já comentara aqui nesta coluna que o governo, ao invés de uma política de comunicação, tinha uma estratégia de marketing. Nesse sentido, de fato, o governo dá continuidade a uma política consagrada por governos anteriores, preferindo a informação classificada à transparência expositiva.

Vou dar dois exemplos: onde está o porta-voz da presidência, o sr. André Singer? Ele simplesmente não aparece, ou pelo menos não tanto quanto devia. Os ?recados? do Planalto aparecem na boca de líderes no Congresso, ou até mesmo do presidente do partido! Outro exemplo: tivesse uma política de comunicação ao invés de uma estratégia de marketing no seu lugar, o governo teria se poupado do constrangimento de fazer com estardalhaço o anúncio do Estatuto do Idoso, aprovado no Congresso Nacional, e depois se reunir a portas fechadas para decidir o que iria vetar, espremido entre declarações antagônicas no Ministro da Saúde e do Senador Paulo Paim, co-signatário do projeto e vice-presidente da Casa.

Outra alternativa: novamente, tivesse uma política de comunicação, o governo chamaria uma coletiva com o porta-voz da presidência, mesmo o presidente estando no exterior, para expor a posição oficial perante o espinhoso assunto dos transgênicos, e não daria o espetáculo de saírem notícias sobre pressões e telefonemas do chefe de estado para seu vice. E chamo a atenção: o que estou cobrando aqui se refere a um certo decoro governamental, não a posições em favor desta ou daquela tendência, ainda que, como é sabido, minha simpatia pessoal vá mais para o lado da resistência e cautela perante os transgênicos e pelo vice-presidente do que pelo acobertamento oficial do contrabando praticado e que, no caso, ameaça a soberania alimentar da nação.

Na semana que passou o jornalista Bernardo Kucinski, meu antecessor e ainda titular (só que em afastamento por razões de força maior) desta coluna, comentou estes temas em matéria na Folha de S. Paulo (25), comparando as atitudes dos governos brasileiro e norte-americano, mostrando que este (e olhe que estamos falando do governo Bush!) tem uma postura mais profissional. O governo de lá recorre aos ?briefings? com a imprensa, tratando os órgãos de maneira equivalente; o de cá, e nisto o governo Lula não inovou, tendo uma estratégia de marketing, termina por recorrer aos ?contatos pessoais? (o que chamo de informações classificadas) o que, em termos beeem brasileiros, termina por significar, aí sim, uma certa política de favor.

O resultado disso é que nunca temos uma súmula diária, ou de dois em dois dias, ou semanal que seja, das ?posições do governo Lula?, e sim uma constante fila de informações fragmentadas que são esmerilhadas, re-acondicionadas e constantemente servidas ao gosto do leitor, quero dizer, não do cidadão, mas do órgão que recondiciona as posições do governo.

Em suas ponderações Bernardo Kucinski chama a atenção para o fato de não fazer parte da cultura dos governos brasileiros o conceito de que eles devem uma ?prestação de contas? pública de seus atos e que, portanto, essa prestação, digamos, pessoal e insubstituível, deve ser feita através de um tratamento equânime e cidadão do espaço público da informação. Mas a este raciocínio, sem dúvida correto, é necessário acrescentar que tampouco faz parte da tradição do pensamento conservador, hegemônico em nossa imprensa, qualquer conceito de que ela mesma deve também uma ?prestação de contas? à sociedade de seu comportamento no espaço público da informação.

Na verdade o imaginário dominante vê seus próceres como se fossem donatários de capitanias hereditárias (até mesmo a constituição em clãs familiares de muitos desses órgãos de imprensa sugere a comparação). Esses donatários só devem prestação de contas a el-rei, e el-rei não é mais nem Bragança nem Orleãs; el-rei agora é a agenda do capital e seu novo Moloch, o Mercado.

Só esse tipo de estrutura imaginária pode explicar o comportamento de órgãos de imprensa e comentaristas que, quando se trata do MST, brandem as exigências da lei e da Constituição; mas quando se trata dos transgênicos, aplaudem o acobertamento do contrabando. Aliás, copiam, neste ponto, o comportamento dos próprios contrabandistas. Ou seja, estamos longe de qualquer sentimento republicano.

E é nisto que, ainda antes das definições e das cobranças, é necessário compreender que o governo deve avançar, em se tratando da informação, da comunicação ou de todos os outros campos: na construção do espaço republicano. Porque no Brasil a República ainda é uma causa, não uma conquista.

O que muda e o que não muda

Chico de Oliveira atribui atitudes consideradas como conservadoras do governo a uma classe de administradores de extração sindical influenciados pela ala direita da social-democracia européia. Em vez de classe, prefiro geração.

Começo pedindo desculpas aos leitores e ao editor desta página pelo atraso no envio da carta desta semana. É que fui chamado com urgência a Brasília e fiquei uns dias fora do ar. Não, não caros leitor e leitora, não fui chamado para alguma missão junto ao Palácio do Planalto. Não, não, também não foi para uma missão contra o Palácio do Planalto. Apenas fui prosaicamente cumprir funções de consultoria junto a organismos competentes do MEC, funções estas que fazem parte de meus privilégios (ou atribuições, como se preferir) de professor universitário, essa espécie que já declarei estar ameaçada de extinção.

Mas as idas e vindas entre aeroportos me permitiu um tempo extra de leitura de nossos jornais e pude constatar duas coisas, que tratarei em diferentes cartas, a seguir (a segunda observação, portanto, ficará para a semana).

O ornitorrinco

A primeira foi que, de longe, a coisa mais importante que se publicou na imprensa desta semana foi a entrevista do professor Chico de Oliveira na Folha de S. Paulo, segunda-feira, dia 22. Para resumir a lógica do professor, ela estabelece uma discussão em torno das atitudes consideradas como conservadoras do governo Lula, atribuindo-as à chegada ao poder de uma nova classe (cujo perfil e atitude política ele chama de ?ornitorrinco?, aquele animal australiano com corpo de castor, bico de pato e patas de outro bicho, ou algo assim), formada por administradores de extração sindical fortemente influenciados pelas tendências à direita da social-democracia européia.

Faz sentido. O termo ?classe? aí pode parecer forte demais, mas deixo essa discussão para sociólogos, cientistas políticos, historiadores e economistas, além dos marxistas de carteirinha. Como professor e jornalista da área cultural, me limito a (e prefiro) falar em ?geração?.

Por que ?geração?? Porque penso haver mesmo um sentimento de geração em relação à coisa pública que se estende dos relativamente ?jovens? administradores dos tempos de Fernando Henrique até os agora ?jovens? sindicalistas dos recém inaugurados tempos de Lula que, esperemos, sejam longos o suficiente para propiciar de fato algumas mudanças positivas na sociedade brasileira.

Aqueles ?jovens? dos tempos de Fernando Henrique ocuparam no mais das vezes os segundos escalões, mas foram eles sobretudo que administraram o processo de privatização e reorientação das definições do Estado brasileiro que o presidente professor inaugurou. Conheci e conheço alguns deles. Foram ?jovens? (e o termo se aplica porque estavam galgando postos nunca dantes ou pouco navegados por sua geração) que, das universidades, entrando ou saindo delas, assistiram ao colapso do populismo, pelo que sempre tiveram um secreto ou manifesto horror), e a emergência das políticas centralizadas da ditadura militar, com que aprenderam o valor do pragmatismo, e também sua posterior falência.

Alguns deles foram catapultados pela ditadura e seu clima adverso ao pensamento livre, compulsoriamente ou não, para as universidades norte-americanas ou londrinas, onde viram reforçadas as tendências a um certo pragmatismo e tornaram-se infensos a qualquer sombra de democracia participativa. Mesmo os que lá não estiveram cresceram à sombra dessa influência.

Esses ?jovens? administradores, com algumas exceções, permaneceram não só no segundo escalão, mas à sombra ou no bastidor, porque o que ganhou vulto no governo de Fernando Henrique foi o pacto com os ?velhos? coronéis do PFL, tão afeitos aos tapetes do poder que até suas solas de sapato já têm pelos. Mas no final do governo Fernando Henrique houve o divórcio inevitável; e alguns dos próceres do coronelismo explícito e suas adjacências tiveram suas asas aparadas – não podadas de todo. Com a candidatura Serra esses ?jovens? subiriam ao pódio, mas a manobra abortou, ou teve de ser adiada pelas circunstâncias.

Com a vitória de Lula subiu uma outra gama de ?jovens? administradores, mas que pertencem à mesma geração. Também viram o colapso do populismo, e contribuíram decisivamente para neutralizar suas tentativas de renascimento em nível federal, num jogo curioso de gato e rato, e de afeto e desafeto, com o sr. Leonel Brizola, quando os papéis se alternavam. Também assistiram a emergência e a falência do pragmatismo da ditadura. Não cresceram à sombra das universidades norte-americanas, mas foram buscar outros padrinhos no exterior: através do partido e da CUT chegaram à social-democracia européia, particularmente a alemã e a italiana, mas também à nova esquerda francesa e ao neo-socialismo espanhol, e, por que não dizer, às reformas internas do trabalhismo britânico. Mesmo os ?jovens? que não vieram da extração sindical cresceram à sua sombra.

Tiveram ainda duas lições extras, que os ?golden boys? de Fernando Henrique não tiveram oportunidade de ter. A primeira foi a de aprender a conviver com formas de democracia participativa, coisas do tipo de assembléias e congressos massivos de trabalhadores. Como conviver com isso? Através da rígida disciplina do grupo. No grupo (mais do que meramente na tendência) a discordância é tolerada até a votação interna, mas depois a dissidência é punida com a ?morte?, isto é, a exclusão. Não há portanto surpresas no trato com os ?dissidentes?.

A segunda lição foi a que aprenderam com o próprio Fernando Henrique. Também fizeram uma aliança mais à direita para chegar ao poder, mas desde logo a colocaram numa posição subalterna, de coadjuvante. Estão mais livres e mais à vontade do que os ?jovens? do governo anterior. Mas com eles compartilham alguns valores característicos, que são suficientes para compor o ?ethos? de uma geração: o pragmatismo, que neste contexto significa o estabelecimento de um plano de execução sem possibilidade de recuos, estabelecimento de quaisquer alianças para chegar aos resultados pretendidos, negociar com os aliados e até com os adversários, mas em contrapartida acaudilhar os correligionários. Está aí também o apreço pela administração progressiva e vitoriosa, ao invés do salto transformador: se assim no mais das vezes se faz na empresa, assim também se faz no mais das vezes na vida sindical.

Os ?jovens? de antanho esperavam relançar um processo de recapitalização do país, depois da pulverização da poupança interna pelo regime militar e o efeito Collor, pelas trilhas à direita, isto é, pelo impulso obtido através das privatizações e da ?correção? do déficit público, além da atração do capital externo. Conseguiram, já que a aliança que fizeram poderia propiciar até que a burguesia perdesse para o plano internacional o controle de seus dedos, mas jamais os anéis de seus privilégios, conseguiram, repito, desorganizar as parcas conquistas sociais do país a ponto de levar muitos de seus setores populares à beira da anomia. Já os ?jovens? de agora querem fazê-lo pelas trilhas da esquerda, mas não mais da democracia participativa, mas sim, desta vez, dos fundos participativos, que são provenientes da receita social democrata que aprenderam. Começaram portanto fazendo uma revolução francesa… no interior da própria classe trabalhadora, eliminando o que vêem como privilégios e abrindo caminho para um refinanciamento da capacidade nacional de investimento.

A vantagem da entrevista do professor Chico de Oliveira, de cujos temas aqui gloso alguns, recontextualizando-os, é situar a discussão sobre as iniciativas do governo num plano propriamente político e também analítico, abandonando aquele plano tão ao gosto de nossa tradição ?cordial? de esquerda, de guardarmos os piores adjetivos para ?eles? (traidores, vendidos, idiotas, e outros do calão nacional etc.), sobretudo quando ?eles? são os correligionários de ontem, e os melhores para ?nós? (?verdadeiros interesses da classe trabalhadora?, ?uma política de efetiva aliança contra o imperialismo? etc.), mesmo que esse ?nós? tenha se constituído por alianças feitas ontem. É sempre melhor procurar discernir que valores estão de fato em jogo antes de adjetivá-los a esmo. A discussão, portanto, é bem vinda.

Por fim, peço desculpas se estou falando heresias ou mesmo coisas sem sentido. Afinal, quando me perguntam se sou marxista, costumo responder que sou professor de literatura brasileira.”

“As falas de Lula”, copyright Folha de S. Paulo, 4/10/03

“A elite pode torcer o nariz. As metáforas são mesmo de lascar. Ninguém mais aguenta jabuticabeiras, vacas indo para o brejo e trucadas. Só que o formato do discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é, de longe, o mais popular (ou populista) de todos os presidentes civis pós-regime militar.

José Sarney (1985-1990) e Fernando Collor (1990-1992) representavam oligarquias nordestinas. Falavam de cima para baixo. Itamar Franco (1992-1994) tinha péssima oratória, com tom ultrapassado.

Fernando Henrique Cardoso é um professor universitário. Tucano. Em 1985, perguntaram-lhe para quem torcia no futebol. A resposta foi lapidar: ?Corinthians, claro. Mas já fui sócio do Palmeiras. Fora de São Paulo, torço para o Santos. E, se a Portuguesa ganhar, não fico triste?.

Lula se declara abertamente corintiano. Ao falar de futebol, truco e outros temas como numa conversa de bar, o presidente tem sido o principal marqueteiro de si próprio. Até agora, a popularidade do petista se manteve nas alturas -apesar de estar em trajetória declinante.

O fato concreto é que, segundo o Ibope, em setembro de 1995 a aprovação pessoal de FHC era de 56%. A de Lula hoje é de 69%. São 13 pontos a mais, sendo que o petista não tem o real valendo um dólar.

O discurso de Lula, a propaganda de Duda Mendonça e o desejo do brasileiro de acreditar no atual governo explicam a alta aprovação em meio a uma das piores crises econômicas recentes. O jeito de falar do presidente e seu carisma certamente têm peso considerável nessa equação, impossível de ser medida de maneira científica.

O que não está claro é se a curva de popularidade terá fôlego para aguentar até o dia em que a paciência da população se esgotar pela falta de crescimento econômico.

Quando esse momento chegar, Lula terá de ter muito mais que apenas o zápete na mão para trucar e ganhar a simpatia dos eleitores.”