Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Flávio Pinheiro

TIM LOPES, ASSASSINADO

"Ritos da crueldade", copyright no mínimo, 10/06/02

"Para que não pudesse fugir, Tim Lopes levou um tiro no pé. Levado para o topo da favela Vila Cruzeiro foi atrozmente torturado. Nas redondezas, seus gritos foram ouvidos. Depois, Elias Maluco, o chefete do tráfico do lugar, trespassou-o várias vezes com uma espada ninja (!). Afinal, imolaram-no até ficar carbonizado. Quem sabe ainda com restos de vida.

Sobre o que Tim fazia na favela já houve abundante e produtiva discussão, sobretudo a partir do artigo de Fritz Utzeri no Jornal do Brasil. Não vi maiores discussões sobre outra dimensão de sua tragédia: a da crueldade, estágio avançado da patologia da violência brasileira. Um pesadelo recorrente afligiu nestes dias quem conheceu Tim de perto: o de seu inominável suplício.

Da lógica da exclusão social brotou a banalidade da violência. A vida por aqui não vale nada. Mata-se à toa, morre-se à toa. Em curtos embates em sinais de trânsito. Dentro dos ônibus. Em assaltos bestas. Na zoeira de balas perdidas. A morte violenta ceifou um bom naco da geração de jovens pobres entre 15 e 25 anos. Chefetes como Elias Maluco e sua soldadesca armada até os dentes levam de suas dissolutas biografias apenas a brevidade. Morrem como moscas em cruentos combates entre si que apavoram a cidade e tiranizam seus redutos mais pobres.

Toda a cautela com reducionismos mecânicos é conveniente. Há mais pobres trabalhadores em Vila do Cruzeiro do que Elias Malucos. Mas isso não esconde o fato de que a predisposição à violência existe e é cada dia maior. Em número de mortes por 100 mil habitantes, o Rio está em situação semelhante a de Amsterdã ou Estocolmo. De 400 anos atrás. Temos a taxa de cidades inglesas. De 800 anos atrás. Se nestas cidades, ao longo da história, operou-se o controle social da violência por aqui o que se vê é descontrole. Um absurdo descontrole.

Em matéria de violência, banalidade é uma coisa, crueldade é outra, mesmo quando o desfecho é idêntico. Tim foi vítima dos ritos da crueldade, até então descritos na literatura de Rubem Fonseca com ritmo vívido e exasperante. Em ?Notícias de uma Guerra Particular?, o exemplar documentário de João Moreira Salles, há em determinado momento o depoimento de um garoto encarcerado no Instituto Padre Severino. Ele descreve como os X-9 (alcagüetes) são torturados e queimados vivos em fogueiras feitas de pilhas de pneus velhos incandescentes. Quem vê o que ele diz fica dividido entre a verdade e a bazófia. Tim sentiu na pele que era verdade.

Pode-se alegar que no crime organizado os ritos de crueldade são indispensáveis. Vide Máfia e camorras afins. Mas o que está em jogo são os sintomas da crueldade brasileira. Não é sadismo na filiação etimológica da palavra ao Marques de Sade. Sadismo é perversão. A crueldade é mais próxima da barbárie que dormita na alma de muitos mas que aflora na de poucos. Cada vez menos não tão poucos assim no Brasil. O psicanalista Contardo Caligaris vai mais longe no livro ?Hello Brasil?. Segundo ele, na Europa o ladrão só quer roubar, de preferência sem ver ou confrontar-se com sua vítima. Aqui um menino leva bolsa, relógio, cartão de crédito e, como se não bastasse, atira na vítima.

Para Caligaris não há gratuidade no gesto. Trata-se de resposta com clamoroso lapso histórico ao duro legado da escravidão. O senhor era dono do corpo do escravo. Dispunha dele como quisesse. Quem com ferro fere, com ferro fere e fica por isso mesmo. Este foi o lema por tanto tempo. Nas senzalas, nas prisões, em tantas dimensões do cotidiano. E não parou mais. Até hoje, e com generalizada condescendência da sociedade e dos jornalistas, policiais exibem presos, às vezes apenas suspeitos, como troféus. Levantando rostos para que possam ser flagrados por câmeras. Nas imagens de arquivo de Elias Maluco ele é exibido assim. Desumanizado, animalizado. Não está animalizado só pelo o que a polícia fez com ele, é bom que se diga. Elias Maluco traz o mal dentro de si. Mas o grave é que sua doença nos animaliza a todos embora em proporções diferentes.

A face bárbara de Elias Maluco foi o epílogo da vida de Tim Lopes. Desde seu desaparecimento cobre a vida de Tim uma elegia à sua indiscutível bravura, à sua intrépida curiosidade de repórter. Falta uma palavra sobre sua doçura, que o diferenciava tanto do típico repórter de polícia. Uma doçura embebida de ingenuidade, jamais abrutalhada pela aspereza de seus temas prediletos. Conheci-o na redação do Jornal do Brasil entre 1985 e 1991. Já tinha os mesmos interesses. As matérias que gostava de fazer ainda eram chamadas de ?humanas?, como se todas as outras fossem desumanas. Tratavam de existências pequenas, anônimas, em geral vistas como desimportantes. Nestas ?janelas de compaixão? Tim às vezes enredava-se na adjetivação que encobria a substância do que relatava. Reagia aos redatores que limavam seus excessos. Acusava os golpes com lampejos de depressão. Sofria com as derrotas de sua sôfrega devoção.

Não sei se Tim é um mártir da liberdade de expressão. Sei que era um ótimo sujeito, um jornalista muito bom que não merecia ser vítima da crueldade que vandaliza o Rio de Janeiro e o Brasil."

 

"Como a TV pode reagir", copyright Jornal do Brasil, 11/06/02

"A confirmação do assassinato do jornalista Tim Lopes deflagra uma caçada aos bandidos que, antes de o matarem, intimidaram muitos outros jornalistas. Mas o que está em jogo é bem mais do que a localização dos culpados.

Tim acabou se transformando num instrutivo case study de vitimologia. De vítima da falência das instituições, passou a ser culpado por tentar investigar o poder que as substitui. Essa é no fundo a maior das homenagens que se poderia prestar ao jornalista. Tim foi julgado e condenado pelo poder paralelo instalado no Rio de Janeiro. O que esse poder vem fazendo é traçar os limites da liberdade de expressão e colocar o jornalismo sob a censura prévia da bandidagem, que em boa parte do país já exerce na prática um poder largamente superior ao das instituições, em particular a polícia e o Judiciário.

Há na sociedade focos de resistência, principalmente em faixas da população que ainda buscam se proteger, e em instâncias da imprensa que exercem um dificílimo exercício de vigilância. Não há limites para essa prática, que é por natureza solitária e não consiste em acompanhar forças constituídas, como às vezes acontece até na guerra.

As denúncias trazidas pelos que buscam se proteger acabam se transformando na última esperança de populações desamparadas pelo Estado que tem a obrigação de protegê-las. Constituem portanto um serviço público de extraordinário valor. Acusar as emissoras de televisão de obrigar seus jornalistas a enfrentar essa situação, além de ser uma atitude nociva ao direito de expressão, denota pouco conhecimento das práticas adotadas para esse tipo de reportagem.

Na verdade, reportagens investigativas que levem a provas concretas sobre a ação do poder paralelo são na maioria dos casos propostas pelos jornalistas que as realizam. O que as emissoras fazem é dar condições para que esse trabalho seja realizado, mesmo sabendo que vão bater de frente contra governos que são grandes anunciantes. Houve época em que as emissoras de televisão preferiam adotar outra postura: noticiavam o crime do pé-de-chinelo e amparavam a palavra oficial sobre ele. Nesse caso não estavam colocando em risco a vida de nenhum jornalista.

Encorajar o repórter a sair às ruas e investigar os acontecimentos é, no mínimo, apostar na dignidade da profissão. É demonstrar paixão pelo bom jornalismo. É reconhecer que o jornalismo pode vir ao encontro do interesse público e que a sociedade está clamando para que as televisões venham a exercê-lo, porque alguém tem que provar que os bandidos – seja com AR-15 ou com mandatos políticos – passaram a exercer o poder.

O caso Tim Lopes lembra, para quem tivesse alguma dúvida, o avanço recente do telejornalismo brasileiro, que, investigando o que corrompe a nação, troca a chapa branca por câmeras reveladoras; substitui o discurso sensacionalista pelo exercício da investigação responsável, correndo os riscos impostos por tal opção. Quem faz isso merece ser saudado, não demonizado.

Há apenas 10 anos a televisão brasileira mal admitia diversidade temática no seu jornalismo. Investigação era prerrogativa dos jornais. Se essa situação mudou substancialmente, deve-se em grande escala à utilização de equipamentos de microgravação; à coragem de muitos jornalistas de utilizar esse artifício e de algumas emissoras em possibilitar que isso seja feito responsavelmente.

Um repórter foi assassinado e toda a sociedade morreu um pouquinho. O mínimo que ela pode fazer é criar condições para que o jornalismo de investigação não se intimide; saiba que o que está fazendo é o correto – e tenha no martírio de Tim o melhor estímulo para continuar servindo à população com mais contundência."


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"A censura do crime organizado", copyright Jornal do Brasil, 4/06/02

"Em 8 de janeiro, o Jornal do Brasil perguntava: ?Como garantir a liberdade do exercício do jornalismo investigativo num meio onde a exposição dos repórteres é muito grande, a existência do aparato técnico, por menor que seja, é necessária, e que ainda por cima não dispõe de uma cartilha de procedimentos formatada pela experiência desse tipo de jornalismo??

A pergunta vinha a respeito das ameaças que a repórter Cristina Guimarães estaria sofrendo depois que sua série sobre o tráfico de drogas nos morros cariocas – feita em parceria com o repórter Tim Lopes – fora ao ar na televisão. O fato era agravado pelas características do agressor: ?Quem a ameaça são bandidos comuns. Tornar-se vulnerável a isso é uma gravíssima ameaça à liberdade de imprensa?.

O telejornalismo investigativo pressupõe a existência de um aparato mínimo que o distingue do jornalismo de opinião. É esse tipo de investigação que mudou, de pouco tempo para cá, a face do telejornalismo brasileiro. Ao denunciar – e provar pela imagem e pelo som – atos criminosos a televisão brasileira deu um salto qualitativo. Escapou do oficialismo a que esteve confinada durante quase 40 anos minimizou relações promíscuas com fontes duvidosas e passou a servir melhor à sociedade.

Repórteres como Tim Lopes acabaram sendo os mais eficazes instrumentos de defesa de uma sociedade carente de qualquer outro tipo de proteção. Jornalistas tornaram-se mais confiáveis que a polícia ou a Justiça. Talvez não devesse ser assim, mas assim o é. Em meio à corrupção deslavada entre os poderosos e a uma autêntica guerra social, alguns jornalistas foram forçados a assumir o papel de heróis que usam as armas legítimas de que dispõem – e que algumas emissoras de televisão, conscientemente, os facilitam. A verdade é que um e outro estão prestando serviços insubstituíveis à cidadania.

O caso da repórter Cristina, alertava o JB, mostra a urgência de se encontrar resposta ao desafio de poder enfrentar os inimigos da população pela mera exposição de seus atos. A suspeita de que tenha acontecido um crime é um golpe contra o dever que a imprensa tem de manter o público informado.

Acossada, a imprensa combativa pode tender a recuar. Não bastasse a censura prévia do judiciário a que recentemente se tornou sujeita, ela passa a sofrer também a censura prévia da bandidagem.

Transformado em terra de ninguém, o Rio vê o enfraquecida sua última instância de defesa contra os criminosos. E o telejornalismo combativo corre o sério risco de ceder lugar ao antigo servilismo aos poderosos – talvez ao crime organizado, que é de fato quem detém o poder."

 

"Jornalista foi morto por traficante", copyright Jornal do Brasil, 10/6/2002

"O chefe de Polícia Civil, Zaqueu Teixeira, confirmou, ontem, o assassinato do jornalista Tim Lopes, 51 anos, da Rede Globo. Tim estava desaparecido desde o dia 2, quando fazia uma reportagem sobre um baile funk na Vila Cruzeiro, na Penha. A confirmação da execução do repórter veio com a prisão de dois integrantes da quadrilha do traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, ontem, no Morro da Caixa D?Água, próximo à Vila. Segundo o depoimento de Fernando Sátiro da Silva, o Frei, 25, um dos bandidos presos, foi o próprio Elias Maluco quem assassinou Tim.

?Com esses depoimentos, não há mais dúvida de que Tim Lopes foi morto?, afirmou o chefe de polícia, ao deixar a 38? DP (Brás de Pina). ?O Tim, até então, estava aqui nos ajudando, mas Deus está agora precisando dele ao seu lado para ajudar o mundo todo?, declarou a mulher do jornalista, Alessandra Wagner, em mensagem divulgada pela família. Ontem, o secretário de Segurança Pública, Roberto Aguiar, mandou impedir a realização do baile funk na favela.

Para Zaqueu, também não há dúvidas de que Tim foi executado pelas mãos de Elias Maluco, chefe do tráfico no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro. ?Ele foi morto com um golpe de espada dado pelo próprio traficante?, contou Zaqueu. Pelo depoimento de Frei, que revelou com detalhes a execução, Tim foi assassinado sem piedade por Elias e mais três traficantes, identificados como Maurício de Lima Martins, o Boi, André da Cunha Barbosa, o André Capeta, e Ratinho.

Segundo contou Frei, após ser capturado na Rua 8, onde o baile da Vila Cruzeiro é realizado, Tim foi levado à presença de Elias Maluco, na Favela da Grota, no Complexo do Alemão. Lá, os quatro bandidos se reuniram para sentenciar a morte do repórter, que chegou a se identificar como jornalista. Tim ainda foi torturado e queimado.

De acordo com a polícia, Ratinho é um dos bandidos identificados na reportagem de Tim sobre uma feira de drogas na Grota, ano passado. Hoje, a polícia fará uma operação na favela para tentar localizar o corpo do repórter, que teria sido enterrado num cimitério clandestino no local, e prender os assassinos dele. Frei e Reinaldo Amaral de Jesus, 23, o Cadê foram presos ontem de manhã, em casa, no Morro da Caixa D?Água. Segundo Zaqueu Teixeira, os dois são apenas suspeitos de terem participado do crime. ?Os depoimentos têm riquezas de detalhes que levam a crer que os dois, pelo menos, poderiam estar na cena do crime?, afirmou Zaqueu, sem descartar o envolvimento deles.

Investigar era paixão de Tim

Tim Lopes trabalhou nos jornais O Globo, O Dia e Jornal do Brasil e estava na TV Globo desde 1996. Teve uma carreira marcada por reportagens investigativas. Ele gostava de viver na pele o cotidiano das pessoas sobre as quais iria escrever. Sua última grande reportagem foi uma série sobre os maus tratos que pacientes recebiam em clínicas para recuperação de drogados, um trabalho de meses, durante os quais ele se internou em diversos estabelecimentos. Quando trabalhava no jornal O Dia, Tim se passou por operário na construção da Linha Vermelha e, em outra ocasião, fez as vezes de grileiro em Rio das Pedras.

Apesar de ter nascido no Rio de Grande do Sul, Tim era o estereótipo do carioca: mulato, sorridente, conhecedor de quase todos os cantos da cidade. Criado na Mangueira, circulava com a elegância de um mestre-sala tanto na Vieira Souto, em Ipanema, quanto na Baixada Fluminense.

Tim começou no jornalismo como contínuo na Bloch Editores. Na TV Globo, trabalhou primeiro como produtor do Fantástico e, depois de seis meses, foi para a Editoria Rio, onde comandou a equipe que fez a série ?Feira das Drogas?. As reportagens, que denunciou a ação de traficantes à céu aberto na favela da Grota, foram ao ar no Jornal Nacional e renderam à emissora o Prêmio Esso de Telejornalismo de 2001."