TIM LOPES (1951-2002)
Cristiana Mesquita (*)
Não conhecia Tim Lopes, adoraria tê-lo conhecido, mas como todo mundo fiquei comovida com sua morte no exercício da profissão.
É dever de todo o jornalista botar a boca no trombone contra a violência que tomou conta de nossas cidades e, principalmente, defender nossa categoria profissional mostrando aos bandidos que não se mata um dos nossos sem pagar caro, muito caro, por isso.
Mas agora, passado algum tempo, espero que já seja possível discutir o "caso Tim Lopes" com um pouco mais de frieza e, quem sabe, até aprender um pouco com o que aconteceu.
Como uma pessoa que já extrapolou todos os limites do bom senso e da autopreservação na procura de uma imagem ou boa história, comecei a me perguntar até onde seria capaz de ir para conseguir uma matéria?
No início do ano passado fui contratada pela rede norte-americana ABC para produzir, no Rio, uma matéria sobre bailes funk para o programa 20/20. Não me entusiasmei muito com a pauta porque já estava enjoada do tema . Afinal, todos já sabiam que os bailes funk são violentos, que menores são usadas para shows eróticos nos palcos, que os "eventos" são patrocinados por traficantes etc., etc. A matéria realmente só era nova para os gringos.
Comecei minha investigação indo até a locadora de vídeo mais próxima, onde aluguei duas fitas pornô gravadas durante bailes funk. Material impressionante, com menores nos palcos e na platéia.
Depois fui atrás de documentários feitos sobre a violência das galeras e comprei vários minutos de imagens para utilizar no programa. Estava indo bem mas, felizmente, nem só de imagens chocantes vive o telejornalismo. Além do mais, a maioria daquelas imagens mostrando peitos e bundas (ainda por cima de menores) jamais entraria no ar na televisão americana.
As condições deles
Em seguida marquei uma reunião com um advogado da defensoria pública, Homero Lyra, que vem se dedicando a estudar e investigar esses bailes. Ele me deu o background necessário assim como os processos que estavam sendo movidos contra os organizadores de bailes funk. Também entrevistei uma policial, Cristina Pereira, que contou sobre os casos de morte ocorridas dentro desses bailes e me deu uma batelada de fitas cassete com músicas de funkeiros que faziam clara apologia ao crime ? com letras que falavam de "comandos vermelhos", "bondes", "AR-15" e afins.
Gravei um baile funk bem-comportado na Vila do Salgueiro, promovido pelo "Casal 20" dos bailes funk. Ela, Verônica Costa, vereadora e ele, Romulo Costa, recém-saído da prisão onde esteve acusado de tráfico de drogas e exploração de menores. Era, como disse, uma baile comportado com exibições de dança que, embora normais para os nossos padrões, para os gringos eram quase sexo explicito.
Com uma ou outra imagem dos vídeos, o baile e as entrevistas eu já tinha uma história. Mas um programa como o 20/20 exige muito mais.
Precisava achar um funkeiro daqueles que pertencem a galeras e que estivesse disposto a contar como eram esse bailes ? e por que eles achavam "divertido" espancar uns aos outros até que alguém caísse morto.
Eu tinha alguns nomes. Num sábado, ao meio-dia, eu subi uma grande favela do Rio procurando um desses funkeiros. Encontrei-o sentado num bar assistindo a uma pelada. Me apresentei: "Meu nome é Cristiana Mesquita e eu sou jornalista". Depois de muita conversa e várias rodadas de cerveja para ele e para os companheiros, o funkeiro, que também era o chefe de uma das maiores galeras da Zona Sul, concordou em dar a entrevista. Ainda perguntei se queria esconder o rosto ou identidade, mas ele, com ar desafiador, disse que não tinha medo de ninguém.
O depoimento desse rapaz foi impressionante. Ele deu nome aos bois, descreveu a morte de um companheiro a porrada no meio de um baile e, finalmente, confessou que a galera dele havia se vingado matando o chefe da galera rival.
Matéria pronta? Quem disse? O meu lado tablóide queria mais.
Aproveitei o contato com a galera da Zona Sul e fui conhecer um baile funk barra-pesada. A droga rolava solta e o pau comia. Não havia nenhuma restrição na entrada, e por isso a média de idade dos freqüentadores era entre 14 e 18 anos. Eu queria aquela imagem.
A ABC me mandou o equipamento e eu, pela primeira vez, me dispus a bancar o James Bond e trabalhar com uma câmera escondida. Logo eu, que sempre achei esse negócio de câmera escondida um absurdo, chegando inclusive a sugerir uma espécie de "lei Miranda" para jornalistas no estilo dos filmes policiais americanos: "Sou jornalista. Tudo o que você disser poderá e será usado contra você. Você tem o direito a ficar calado etc. etc." Mas o desejo de ter aquela imagem era maior do que os meus princípios éticos e maior do que o bom senso.
Eu tinha problemas que o colega Tim Lopes não tinha. Sou loura, de olhos azuis, e portanto bem longe do tradicional padrão funkeiro. Como também já passei da idade de bancar a loura gostosa, disfarcei-me com boné e uma calça largona que permitia esconder o gravador entre pernas, bem ali onde vocês estão imaginando, para poder passar pela revista na entrada do baile. Acontece que as câmeras são realmente muito pequenas, não mais do que um botão de camisa, mas os gravadores ainda são enormes. Tinha que andar de perna aberta.
Minha negociação com a galera era a seguinte. Minhas condições:
1. Eu iria no meu carro (um carro alugado) para poder sair de lá na hora que quisesse.
2. Levaria um amigo para ficar de olho em mim e acionar a polícia caso algo desse errado.
As condições deles:
a) Se desse alguma coisa errada, seria como eles nunca tivessem me visto antes.
Sem plano B
Sábado à noite lá fui eu para a Baixada Fluminense. Suando frio, entrei na fila para ser revistada. Olharam a mochila, passaram a mão de leve pelo lado externo do meu corpo e graças a pouca iluminação não perceberam a minha aparência exótica.
Respirando aliviada, achei que nada mais podia acontecer.
O baile estava rolando normalmente até que o DJ deu uma palavra de ordem e as galeras começaram a formar o corredor que divide "lado A" e "lado B". E o pau quebrou.
Comecei a dar voltas na quadra para tentar conseguir as melhores imagens sem levar um soco ou um chute. Era difícil.
Num determinado momento e turba veio para o meu lado e a melhor imagem que tenho sou eu caída de costas e tentando me defender com as mãos e os pés. Consegui escapar sem nenhum machucado sério, mas o gravador e possivelmente a câmera teriam saído do lugar. Vou ao banheiro e para minha desgraça o banheiro da meninas não tinha porta. O jeito foi procurar um canto escuro e tentar colocar o equipamento para funcionar novamente, às cegas.
Enquanto isso o baile pegava fogo. Já havia sangue no chão e alguns funkeiros estavam na enfermaria (um canto atrás do bar em que as namoradas e amigos prestavam primeiros socorro) grunhindo de dor.
Resolvi me posicionar perto do palco, onde teria uma boa visão do salão e onde eles tinham uma espécie de cordão de isolamento para proteger os equipamentos, os DJs e os convidados-vip.
Foi um erro. No momento em que saí do meio da multidão, fiquei visível para os "seguranças" do baile. Eles me pegaram pelo braço mas, antes de me levarem para a sala dos fundos, o meu amigo entrou no meio dizendo que eu era uma gringa amiga dele, que estava no Rio de férias, e que ele tinha me trazido ao baile…
Revistaram a minha bolsa mas os meus documentos estavam dentro do sapato. Enquanto isso eu falava umas bobagens em inglês e arranhava um português com sotaque carregadíssimo.
Meu anjo da guarda estava comigo, eles aceitaram a histórioa mas ficaram de olho. Avisei para meu amigo que ficaria mais dez minutos para não parecer que estávamos fugindo e depois sairíamos dali o mais depressa possível. Já estava do lado de fora do baile quando ouvimos um tiro. Todo o pessoal da "minha galera" saiu correndo e, sem pedir licença, foi entrando no meu carro e gritando "toca! toca!".
Segundo os "meus" funkeiros, os seguranças desconfiaram de alguma coisa e foram para cima deles.
O Gol alugado carregou oito funkeiros que tiveram que se acomodar na horizontal, uns em cima dos outros. Pensei comigo que se escapasse dos traficantes certamente seria morta numa blitz da polícia na Avenida Brasil. Larguei todos num ponto de ônibus e vim para casa tendo que controlar o pé, que cismava em apertar demais o acelerador.
Fui correndo revisar a fita de vídeo e vi que, apesar de algumas boas imagens, não tinha nada de diferente do material que eu já havia comprado.
Tive sorte, poderia ter morrido e até hoje tento entender o que fez com que eu arriscasse a minha vida e a de outras pessoas por tão pouco. Talvez um pouco de curiosidade e muita vaidade.
O que teria feito o experiente Tim Lopes se arriscar sozinho, sem um plano B (plano de fuga ou proteção de algum conhecido), numa região que ele já conhecia e onde era conhecido, para fazer uma reportagem que todo mundo já viu?
Será que não teria sido o suficiente ligar para os contatos dele na polícia, contar sobre a denúncia feita pelos moradores e exigir, por meio de uma matéria, que as devidas providências fossem tomadas?
Assim como eu, Tim certamente sabia que a polícia também trabalha com espiões ou agentes infiltrados para investigar esses bailes. Não gosto muito de polícia, mas esse é o trabalho deles.
A profissão de jornalista/repórter é perigosa mas, que tal combinar? Vamos arriscar a vida apenas quando for absolutamente necessário, ok?
(*) Jornalista; cobriu a guerra da Bósnia e, mais recentemente, a do Afeganistão