RELAÇÕES PERIGOSAS
Alberto Dines
O que é melhor para um veículo na véspera de eleição? Assumir sua preferência e, a partir dai, buscar a objetividade noticiosa ou fingir neutralidade para mais facilmente esconder sua predileção?
A Folha de S.Paulo talvez seja o jornal melhor equipado em matéria de deontologia no Brasil mas é recordista em flagrantes de adultério com causas e candidatos.
Está evidente que, no plano nacional, ao jornalão desgostam duas candidaturas: Garotinho e Serra. Faz restrições a Lula porque a Folha é uma empresa e os empresários, muito espertamente, estão simulando que renderam-se ao charme do candidato do PT. Além do mais, se o jornal apoiá-lo ostensivamente comprometerá os últimos oito anos de oposição ou independência frente ao governo.
No peito da Folha bate um coração pró-Ciro. Nada demais, escolher é legítimo. Ruim é fingir indiferença e distanciamento olímpico.
Este Observador, há algum tempo, vem apontando evidências da mal-disfarçada preferência:
** Contrariando decisões duras tomadas em passado recente, a Folha está permitindo que na coluna da direita da Página 2 milite o principal conselheiro do candidato da Frente Trabalhista, o professor Mangabeira Unger. Mesmo que o dito venha se protegendo atrás do não-dito, sua figura está de tal modo entranhada na figura do parceiro que a simples presença num dos espaços mais prestigiados da imprensa brasileira confere-lhe uma distinção que, automaticamente, estende-se ao outro. Nunca é demais lembrar que a Folha removeu do mesmo lugar o economista André Lara Resende, no momento em assumiu a presidência do BNDES; e substituiu o mesmo José Serra quando este foi levado ao Ministério da Saúde. Tudo em nome da independência e da imparcialidade.
** Oferecer ao mentor de uma candidatura lugar tão nobre ao longo da campanha eleitoral equivale, no mínimo, a arrastar a asa para o candidato. Pode alegar-se que os leitores consideram fas-ci-nan-tes os textos do articulista. Adorariam mais ainda se o jornal tivesse a coragem de anunciar que nos próximos dois meses a atração semanal da página de opinião será outra. Isto, sim, seria mostrar que tem o rabo preso no leitor.
** O privilégio torna-se ainda mais gritante quando se sabe que o mentor, nos últimos anos, teve grande influência nas opções opinativas do jornal ? a mais notória quando o Banco Central deixou flutuar a cotação do dólar e, em editorial de primeira página, proclamou-se a necessidade de adotar o currency board. Não se trata de um colunista distante e solitário mas de alguém que, simultaneamente, exerce grande influência tanto no comando do jornal como no comando da campanha.
** A Folha foi o primeiro veículo da grande imprensa a explorar a doença e o novo visual da mulher do candidato, a atriz Patrícia Pillar. Não o fez num episódio médico mais grave e com uma figura televisiva ainda mais conhecida, a apresentadora Ana Maria Braga. Foi uma opção claramente política, camuflada e, para quem conhece os mecanismos de uma redação, seus desdobramentos são facilmente reconhecíveis.
** Agora, quando o candidato Ciro Gomes faz aquela desastrada confissão (depois apresentada como brincadeirinha) dizendo que a principal função da companheira é dormir com ele, a mídia reagiu com estridência. E não apenas por pressão das feministas mas pelo extremo mau-gosto e vulgaridade da proclamação. A Folha foi o único veículo a sepultar a gafe por meio de uma discreta nota de uma coluna, em página par, do caderno “Eleições” (sábado, 31/8, pág. 4).
O leitor compenetrado dirá que são “abobrinhas”, insignificâncias ou impertinências que não podem se sobrepor aos atributos do postulante. O leitor pode ter razão. Mas este leitor também tem o direito de exigir do jornal uma exposição equânime das informações de modo que, na hora de votar, ele ? e não um editor ? saiba o que foi pertinente ou não ao longo da cobertura.
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