EUA EM GUERRA
"Informar na Guerra", editorial, copyright Folha de S. Paulo, 7/10/01
"Em reportagem publicada há poucos dias, o ?The New York Times? identificou, nos desdobramentos dos atentados de 11 de setembro, um debate sobre o ?equilíbrio entre liberdade de expressão, segurança nacional e patriotismo?.
Episódios alinhavados no texto deixam clara a ameaça que paira sobre o primeiro vértice desse triângulo. O governo tentou suspender a veiculação, pela emissora de rádio ?Voz da América?, de entrevista com o líder supremo do Taleban. Um apresentador de televisão foi publicamente repreendido pela Casa Branca e abandonado pelos anunciantes depois de criticar as Forças Armadas. Pelo menos dois jornalistas de publicações do interior perderam o emprego por fazer restrições ao desempenho do presidente George W. Bush.
?Tempos difíceis para o país tendem a ser difíceis também para a Primeira Emenda?, analisou um advogado estudioso do trecho da Constituição norte-americana que é paradigma de garantia à liberdade de expressão. Para a imprensa, o tempo é de enormes desafios.
O mais aparente diz respeito às restrições impostas ao acompanhamento noticioso da operação militar preparada pelos Estados Unidos.
Ficou famosa a frase de um veterano do mesmo ?The New York Times? sobre sua experiência na Guerra do Golfo. Segundo ele, o sistema de cobertura conjunta -o chamado ?pool?- transformou os repórteres em ?empregados não remunerados do Departamento de Defesa?.
Hoje se sabe que a ofensiva de 1990, descrita na primeira hora como pontual e asséptica, devastou o Iraque e deixou perto de cem mil mortos.
Das alianças costuradas por Washington à quase inviolabilidade geográfica do território do Afeganistão, tudo aponta para um cerceamento de informações ainda maior desta vez -aprovado, como mostrou reportagem na Folha de ontem, por parcela expressiva dos americanos.
Quando as próprias autoridades assumem a intenção de ?mentir sobre algumas coisas?, como disse um representante do Pentágono, o mínimo que a imprensa tem de fazer é redobrar suas reservas em relação ao discurso oficial.
Também o pluralismo estará sob risco. Inédito em sua amplitude, o arco de apoio internacional aos EUA tende a eliminar vozes dissonantes. Sem esforço permanente, será difícil fugir tanto do alinhamento aos interesses americanos quanto da leniência com grupos radicais islâmicos.
São desafios que o modelo CNN de jornalismo, sem prejuízo de sua agilidade e de seu alcance global, não tem condições de atender. Os jornais que se limitarem a reproduzi-lo ficarão longe de introduzir o leitor no que o diário francês ?Le Monde? chamou de ?nova desordem mundial?.
Tem sido comum ouvir que serão necessários anos para entender o significado do ataque sofrido pelos EUA. Se for assim, tanto maior a responsabilidade da imprensa para rascunhar a história com investigação extensiva e reflexão."
"Lei reforça vigilância na internet", copyright Folha de S. Paulo, 7/10/01
"Uma caixa literalmente preta, que pode ser instalada pelo FBI em provedores de internet, está no centro de uma polêmica entre defensores de liberdades individuais e autoridades americanas.
A caixa se chama Carnivore (pronuncia-se ?carnivór?, que em inglês quer dizer carnívoro) e, segundo seu inventor, a polícia federal dos EUA, é apenas uma ?ferramenta de diagnóstico?.
Mas, para seus inimigos, o Carnivore significa vigilância indiscriminada e potencialmente irresponsável do tráfego de informações na internet. O debate acirrou-se ainda mais após os atentados de 11 de setembro. Um projeto de lei que deve ser aprovado em curtíssimo prazo pelo Congresso americano amplia o poder policial de investigação eletrônica.
Pela lei atual, ?grampos? de internet são permitidos só com ordem judicial que explicite os limites da espionagem. Além disso, cada vez que se usa o Carnivore, um novo mandado é necessário.
Se a nova lei for aprovada, uma ordem judicial genérica já permitiria um grampo longo e abrangente. O projeto de lei é conhecido por Patriot, que são as iniciais, em inglês, da frase ?fornecer as ferramentas apropriadas e necessárias para interceptar e obstruir o terrorismo?. Além de ampliar a cibervigilância, o Patriot facilita prisão de estrangeiros, ações contra suspeitos de colaborar com o terror e congelamento de bens de organizações extremistas.
?O Carnivore é como um filtro gigantesco, que, segundo o FBI, deixa passar algumas informações e retém outras, que ficam guardadas num arquivo para serem analisadas?, disse à Folha a professora de informática Coralee Whitcomb, presidente da organização Profissionais da Computação pela Responsabilidade Social.
Com sede no Vale do Silício (Califórnia), centro nervoso da indústria de informática, a PCRS combate com vigor o controle oficial sobre a comunicação. ?Sou contra espionar informações na internet. Não é assim que iremos capturar terroristas. No futuro, o único resultado disso vai ser o uso de nossas comunicações privadas contra nós mesmos.?
Se conectado à central de um provedor de internet, o Carnivore pode vasculhar tudo o que entra e o que sai do computador de um usuário: e-mails enviados e recebidos, sites mais visitados etc. O FBI afirma que, no caso de e-mails, por exemplo, o Carnivore se limita a investigar o cabeçalho, não chegando a analisar o conteúdo das mensagens.
Mas especialistas em computação afirmam que isso é impossível. Para eles, o Carnivore pode, sim, destrinchar conteúdo. Pior: de todo o tráfego de um provedor.
O FBI contra-argumenta: mesmo que isso acontecesse, filtros poderosos selecionariam só a informação requisitada pelo juiz. Muita gente duvida. A principal limitação técnica do Carnivore é que ele não consegue invadir um computador. Só analisa informação em trânsito -saindo ou entrando de uma máquina.
A descoberta
A existência do Carnivore foi revelada em julho de 2000 pelo jornal nova-iorquino ?The Wall Street Journal?. O caso chegou à imprensa devido à recusa de um dos maiores provedores de internet dos EUA, a Earthlink, a colaborar com o FBI numa investigação que usaria o Carnivore.
Imediatamente, o Centro de Informações sobre Privacidade Eletrônica (Epic, sigla em inglês), entidade dos EUA de defesa de ciberliberdades, entrou na Justiça exigindo que o FBI tornasse públicas todas as informações sobre o Carnivore. ?Não nos opomos à vigilância na internet. O problema é que faltam ao Carnivore proteções às liberdades individuais?, disse à Folha Marc Rotenberg, diretor-executivo da Epic.
Desde então, o FBI vem tentando, à sua maneira, diminuir o segredo sobre a caixa preta. Mudou o nome oficial para DCS100 (mais neutro e menos assustador) e incentivou que uma auditoria independente a avaliasse.
Isso foi feito pelo Instituto de Pesquisa e Tecnologia de Illinois. O relatório final, ainda que positivo para o FBI, ressalva que, ?se configurado incorretamente, o Carnivore pode gravar todo o tráfego que passa por ele?, não apenas o que a Justiça permitir. Quando o estudo começou, em setembro de 2000, o FBI admitiu que já havia usado o Carnivore em 25 investigações.
Rotenberg, do Epic, assim como Coralee Whitcomb, dos Profissionais da Computação pela Responsabilidade Social, acha que aumentar a segurança em aeroportos é mais prioritário do que espionar a internet. Ambos avaliam que, mesmo com o Carnivore 100% ativo, os atentados em Nova York não seriam evitados.
Diante da pressão para que as investigações antiterror caminhem rápido, a Earthlink, que havia se recusado a permitir a instalação, abriu seus computadores. O mesmo foi feito pelo maior provedor dos EUA, a America Online. Nem foi preciso usar o Carnivore. As empresas abriram voluntariamente seus registros."
"Caçando a verdade", copyright Folha de S. Paulo, 7/10/01
"Alguém já afirmou que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Nunca duvidei disso, mesmo sem saber exatamente o que seja ?a verdade?. O que me surpreendeu agora, no que a imprensa vem chamando de ?guerra contra o terror?, é o despudor com que versões substituem fatos e categorias ganham estatuto de epifanias.
É emblemático o caso do programa ?Caçando Bin Laden?, que, no Brasil, foi ao ar pelo GNT. O documentário é, em princípio, bom, ainda que obviamente pró-americano. Mesmo tendo sido produzido a toque de caixa e lançado apenas dois dias depois dos ataques do dia 11, consegue trazer um perfil razoavelmente equilibrado de Osama bin Laden. ?Caçando Bin Laden? é uma produção da PBS, a TV pública dos EUA, em parceria com ?The New York Times?, duas grifes da correção jornalística.
Qual é o problema então do documentário? A dificuldade fica evidente nos instantes finais da peça. A câmera se fecha no apresentador, que relembra o telespectador de que Osama bin Laden é apenas um suspeito. Bem, se ele era apenas um suspeito, tornou-se, para boa parte dos que assistiram ao programa, culpado. Talvez não ainda culpado dos atentados, mas desde logo culpado de odiar o Ocidente e instigar a violência.
Devo esclarecer que acredito mesmo que a organização de Bin Laden, a Al Qaeda, esteja ligada aos ataques, embora não houvesse uma única prova de seu envolvimento quando o documentário foi ao ar. Mas a questão que me preocupa aqui não é procurar saber se o saudita é ou não culpado. Interessa-me é a forma como o Ocidente representa o Oriente, como a Civilização, o mundo judaico-cristão, figura o Islã, do qual Bin Laden seria uma caricatura radical.
Receio que tenhamos caído numa armadilha diabólica, da qual não bastam boas intenções para escapar. De um modo geral, a mídia fez o elogio da tolerância. Emissoras de TV, jornais e rádios fizeram questão de explicar que os extremistas são minoria no mundo muçulmano. Apressaram-se em publicar especiais sobre o islamismo e mostrar quão injustas eram as perseguições de que maometanos e árabes estavam sendo alvo, principalmente nos Estados Unidos.
Obviamente, apóio tudo isso. Diria até que essas atitudes são a obrigação de qualquer veículo de comunicação compromissado com a democracia. O problema está no fato de que, mesmo quando queremos ser justos e corretos, primeiro afirmamos a diferença para depois procurar circunstanciais semelhanças. Em vez de simplesmente dizer que somos todos homens e que o fato de usarmos turbantes ou crucifixos é absolutamente secundário, preferimos já sair sublinhando o que separa, o que distancia. Desconfio de que essa seja uma falha de programação da mente humana. Mesmo na ?Civilização?, continuamos dividindo os homens em duas categorias: parecido-aliado e diferente-inimigo.
Não vou defender aqui que somos todos filhos do mesmo Deus e que deveríamos nos esforçar para entender um ao outro. Aliás, sempre que se traz Deus para a discussão, as consequências costumam ser as piores possíveis. Longe de mim negar a importância de diferentes universos culturais. Tenho muito poucas certezas, mas uma delas é a de que o indivíduo é em grande parte produto de seu meio.
Temo, porém, que estejamos levando longe demais -talvez até sem querer- a idéia de confronto de civilizações, mais ou menos nos moldes em que a colocou o professor norte-americano Samuel Huntington. É claro que um mujahidin muçulmano do Afeganistão não tem a mesma ?Weltanschauung? (visão de mundo) de um vaqueiro batista do Texas, mas, daí a afirmar que eles vão inexoravelmente travar uma guerra santa, há uma enorme diferença.
Desconfio de que Huntington acabe forçando um pouco os fatos para adequá-los a seus conceitos, em vez de fazer com que as categorias se moldem ao mundo. É claro que todo teórico faz um pouco isso, mas Huntington claramente exagera.
Mesmo que venha a ocorrer um conflito de grandes proporções, não será uma guerra entre a Civilização e o Islã, entre o Bem e o Mal, como quer o presidente George W. Bush. Será, como todas as disputas, uma batalha entre grupos com interesses diversos. Aspectos culturais ajudam a determinar os interesses de cada parte, mas não são, obviamente, a causa última do conflito.
Meu receio é o de que programas como ?Caçando Bin Laden? -e vale observar que os especiais da TV brasileira vão caminhando na mesma linha-, mesmo que bem feitos e jornalisticamente corretos, acabem por alimentar a falsa idéia de que está em curso uma guerra santa contra as forças da barbárie. A idéia, mesmo falsa, pode precipitar um conflito de verdade, como nos tempos das Cruzadas, em que ambas as partes acreditavam estar lutando pela maior glória de Deus. Hoje, sabemos que aquelas guerras na realidade nada tinham de santas. Aliás, já deveríamos ter aprendido que nenhuma guerra nunca tem nada de santa."