MÍDIA NO CAMPO
Thea Tavares (*)
Não é difícil entender a dificuldade e insegurança que há na grande imprensa brasileira, salvo raríssimas exceções, em abordar as temáticas do combate à fome, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável e solidário. Primeiro porque esses assuntos, bem como a definição desses termos, não encontravam, até agora, espaço nas editorias dos grandes veículos, uma vez que estes eram vistos como pautas exclusivas das discussões e dos meios alternativos de comunicação da esquerda nacional. Também porque a grande imprensa do país tem formação e prioridades definidas a partir da lógica de um modelo de desenvolvimento concentrador, excludente e focado no ambiente e no modo de vida urbanos, que não está sintonizada com a problemática da fome e da miséria para além da mera denúncia e do fatalismo.
Apesar de a economia e a sociedade brasileiras terem íntima relação com o cenário rural, a imprensa em geral, sempre pensando "grande", restringe a divulgação de notícias desse ambiente aos anúncios governamentais, aos índices de produção e exportação de grãos e a destina às editorias específicas de agropecuária. Embora sejam informações importantes, não retratam toda a realidade do "interior" do país, nem dos vários setores produtivos, muito menos da diversidade de sistemas empregados na produção e comercialização de alimentos, que vão resultar nos índices e estatísticas divulgados e na formação da sociedade interiorana.
Na edição de n? 202 deste Observatório (11/12/2002), Mauro Malin já chamava a atenção para o fato: "A agricultura virou solução, mas a mídia não entendeu"; no início do ano de 2003, após ser empossado como presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva pautou a mídia brasileira, não em denúncias do flagelo da fome ? estas já existiam antes, muitas vezes acompanhadas de denúncias sobre a seca no Nordeste, e as duas eram tão tradicionais quanto as reportagens do bolinho japonês da virada de ano ?, mas no desafio de informar a sociedade e de estimular o debate sobre o combate à fome e sobre alternativas para vencer essa problemática. Esse debate ainda pouco consegue avançar das críticas e polêmicas em torno da execução do programa do governo ? o Fome Zero ?, embora a sociedade já venha criando suas próprias alternativas localizadas e de acordo com a diversidade de "caras" que a fome e a miséria assumem pelo Brasil.
Até para melhor compreender o assunto, a imprensa grande parece disposta a institucionalizar essa pauta e a não olhar para mais nada em volta. "Combate à fome" ganhou status de notícia "chapa branca".
Simplismo e preconceito
Pelas propagandas institucionais veiculadas em mídia, o governo federal está assumindo como "pauta oficial", por sua vez, a discussão do combate à fome e promovendo, aos poucos, algumas desmistificações. Quando se vê Antônio Fagundes falar na TV de temas como a ampla reforma agrária, a geração de emprego e renda, a valorização da agricultura familiar e o microcrédito, entre outras ações necessárias ao combate à fome e visando o desenvolvimento sustentável, estamos diante de um processo educativo, que orienta para a conscientização social de buscar na raiz as soluções estruturais para a má distribuição de alimentos. Não só isso, ele orienta para se pensar em outro modelo de desenvolvimento e outras práticas que conduzam à busca coletiva pela qualidade de vida.
Com isso, a propaganda alerta para se enxergar o meio rural não somente pelo seu conceito de matéria-prima do setor primário da economia, ou seja, o de mero produtor de alimentos in natura ou, ainda e pior, de solo fértil para um extrativismo desmedido e sanguessuga. Na versão para o rádio do mesmo comercial, o governo é mais claro: "Precisamos dar o peixe, mas também ensinar a pescar".
A agricultura familiar, por exemplo, é vítima do simplismo de quem não consegue imaginar essa "pescaria" que o governo propõe. Com potencial que a torna responsável por mais da metade da produção de alimentos da cesta básica só no Sul do Brasil, a agricultura familiar, durante muito tempo, vem carregando o preconceito de ser formada por "pequenos produtores". Esse termo é pejorativo, e já está em discussão no Congresso Nacional uma lei para criar a profissão de "agricultor e agricultora familiares", com isso corrigir muitas distorções e elevar a auto-estima dessa categoria de trabalhadores. As propriedades dessas famílias é que são pequenas, mas, proporcionalmente, sua produtividade, geração de empregos e de renda nas suas localidades são maiores que nas grandes empresas rurais.
Comunidades carentes
Pelo viés social, a agricultura familiar também leva vantagens, pois é capaz de manter mais famílias trabalhando no campo com uma quantidade menor de recursos de crédito rural que o necessário para investir em poucas, porém grandes propriedades. Enxergar um retrato desfocado do campo brasileiro é desumanizar a problemática em torno do nosso modelo de desenvolvimento.
No município de Campo Bonito, região oeste do Paraná, mais de 70% das suas propriedades rurais estão nas mãos de apenas 20 famílias. Destas 20, apenas uma tem residência fixada no município. A riqueza gerada na atividade agrícola das outras 19 famílias não contribui para incrementar a economia local ou regional, mas acompanha a mesma trajetória de êxodo dos agricultores familiares que não encontram condições de continuar na lavoura;
Pranchita, no Sudoeste do Paraná, perdeu metade de sua população em pouco mais de duas décadas. Com uma das terras mais valorizadas do estado, o município está se transformando em uma grande monocultura de soja, pois inúmeras famílias têm vendido suas terras e migrado para outros estados. A administração local começa a sentir os reflexos do modelo excludente na perda de sua população. Pranchita, como outras tantas cidades no interior do Brasil, está esvaziando!
Em Adrianópolis, no Vale do Ribeira paranaense, um extensionista local aponta para uma comunidade urbana das mais carentes da cidade e comenta que a maior parte das famílias que lá estão já foram produtoras de leite no município. Agora, elas integram o cadastro de famílias que serão beneficiadas com o programa estadual Leite da Criança, e que deverão receber, também, alimentos do Fome Zero.
Mesa rastreada
Em Capanema, a 600 km de Curitiba, na fronteira com a Argentina, os pacientes começam a chegar ao posto de saúde da sede do município às três da manhã para garantir uma senha, que começará a ser distribuída somente às 6h30. As causas desse sacrifício não recaem apenas no serviço ofertado pelo município, mas na dificuldade que a administração pública tem em conseguir profissionais de saúde que queiram trabalhar e se estabelecer no interior.
Em Rio Bonito do Iguaçu, região central do Paraná, dois assentamentos, frutos de uma grande ocupação, que ficou conhecida pela lente de Sebastião Salgado há oito anos, já produzem mais alimentos do que todas as demais 740 propriedades rurais do município, e seus agricultores familiares assentados já enviam grãos até a outros países. Dos 22 municípios da região de Rio Bonito do Iguaçu (a Cantuquiriguaçu), ele foi o que mais se desenvolveu nos últimos oito anos, graças à produção nos 1.500 lotes de terra desses dois assentamentos.
O que a imprensa grande e a sociedade urbana não conseguem enxergar é o potencial de um modo de vida mais simples, como o da agricultura familiar, e de um modelo alternativo de desenvolvimento que faça frente a algumas das mais importantes chagas sociais dos nossos tempos. Quanto ao papel da imprensa, vale salientar que uma realidade que não é vista ou não é contada corre sérios riscos de jamais poder ser transformada para melhor.
Um retrato do potencial da agricultura familiar no combate à fome pode ser encontrado na casa do agricultor Ivo Vial, de Capanema (PR). Quando sua mulher, Joilde, apresenta os pratos que estão dispostos à mesa para a refeição da família tece, sem perceber, o rastreamento todo da origem e da qualidade desses alimentos: "O salame veio do sítio do meu mano; o frango (diferenciado, ela frisa), nós mesmos é que produzimos; as hortaliças são do nosso quintal. Ah, eu levei um dia inteiro fazendo essas compotas, fervendo os potes e tirando a terra das frutas e dos pepinos! O queijo, minha mana é quem faz e vende na feira aos sábados; só o feijão, que é orgânico, eu comprei no mercadinho, porque vem de outro município da região".
Não dá para esperar
Esse último pensamento a remete a outra constatação: "Sabe que eu não sei o que é comprar um quilo de sabão no supermercado? Eu nunca fiz isso na minha vida. A gordura que sobra da cozinha armazeno e transformo em ?rinso? (como o produto é conhecido por lá)".
Contrária a esta cena, uma outra, no mesmo município, ilustra a única realidade que a grande imprensa conhece. Á porta do entreposto comercial de uma cooperativa de grandes produtores locais encontra-se uma placa, onde se pode ler a seguinte inscrição: "Promoções do dia: refrigerante da marca líder a tanto; sabão da marca líder a tantos reais e frango da agroindústria líder a tanto".
Falar, hoje, em combater a fome com políticas de desenvolvimento sustentável e com o estabelecimento de relações solidárias ao longo da cadeia produtiva é contar um pouco da história do casal Joilde e Ivo Vial; é pensar em agroindústrias familiares, que transformam seus produtos agregando valor, dão uma nova cara à agricultura familiar, exigem que os membros da família também se especializem nessa mão-de-obra da industrialização caseira, bem como nas normas e procedimentos técnicos exigidos pela vigilância sanitária; é, também, lembrar da demanda de práticas qualificadas de uma produção agroecológica e da produção de alimentos sem agrotóxicos, a produção orgânica, que não colocam em risco a saúde de quem planta, nem de quem consome os alimentos;
É lembrar da comercialização em feiras livres de produtos coloniais, que chegam mais baratos à mesa do consumidor urbano; do associativismo, do cooperativismo e do sindicalismo rural que garantem a organização e a formação profissional desses trabalhadores; do cooperativismo de crédito e do acesso aos incentivos agrícolas, que vai exigir do agricultor e da agricultora familiares a capacitação até mesmo em mercado financeiro; do turismo rural e da preservação ambiental, para que as famílias sobrevivam no campo, convivendo em harmonia com a natureza.
O governo Lula criou uma secretaria especial para pensar o desenvolvimento rural pelo prisma da ocupação territorial. Assim como tem pautado em segurança alimentar e combate à fome, a tendência é a de o governo pautar também a grande imprensa e a sociedade urbana para pensarem as discussões e a busca de soluções dos problemas de forma regionalizada, mais coletiva.
O risco de uma sociedade cujo governante foi eleito com esmagadora maioria da aprovação popular é de ela se esquecer do seu papel em ditar as ações e políticas do governo, e não o contrário, por mais nobres que sejam as causas defendidas e as práticas adotadas pela administração pública. Não é papel da sociedade, nem da imprensa, somente esperar para ver o que vai acontecer… Em muitos casos, até torcer para que dê tudo errado.
(*) Jornalista
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