“Usava o deslumbrante traje de matador, mas nunca matou. O destino quis que a morte o levasse no auge da glória.”
A frase é de Henri Cartier-Bresson, magistral fotógrafo, figura humana superior, sócio de Robert Capa na famosa agência Magnum.
Não há nenhum gancho jornalístico formal para lembrar Capa neste momento. Morreu num 25 de maio (o cinqüentenário será dentro de um ano) e os 90 anos de nascimento só serão lembrados em 22 de outubro. Mas a guerra do Iraque, a confusão provocada pela guerrilha ideológica em torno da sua cobertura e, sobretudo, o lançamento da biografia daquele que é considerado o melhor fotógrafo de guerra de todos os tempos justifica a incursão ao passado ? bom antídoto para barafundas do presente.
O charmoso Robert Capa é uma invenção dele próprio e da sua primeira companheira, a fotógrafa-produtora Gerda Pohorylles, depois Gerda Taro. Nasceu em Budapeste e chamava-se André Friedmann, de uma família da classe média húngara. Discriminado como judeu, resolveu estudar Ciência Política em Berlim matriculando-se na famosa Deutsche Hochshule Für Politik.
Com uma Leica emprestada e a boa pinta que Deus lhe deu, caiu na gandaia. Sua primeira reportagem assinada foi sobre Leon Trotsky ? àquela altura já ferrenho opositor de Stalin. Com a ascensão de Hitler mandou-se para Paris onde por acaso conheceu um fotógrafo judeu polonês (David Seymour, o Chim) que trabalhava no Partido Comunista Francês e o apresentou a Henri Cartier-Bresson ? eis o núcleo da agência que fundarão em 1947 com o nome da famosa champanhe.
O nome Capa está associado à cobertura de guerras mas também às mais lindas mulheres dos anos 1930-1940, Heddy Lamar e Ingrid Bergman, entre outras.
A primeira cobertura de guerra foi a da Espanha, onde conheceu Ernest Hemengway e de quem se tornou amigo inseparável. Gerda Taro, linda, com um revólver na cintura, morreu em combate.
Capa, primeiro, incorporou-se à milícia republicana que combatia os rebeldes de Francisco Franco e, em setembro de 1936, fez o seu primeiro clássico de guerra, “A morte de um miliciano” ? flagrante tomado a poucos metros de um jovem combatente, segundos antes de ser abatido.
A foto provocou acirrada polêmica, os coleguinhas invejosos acusaram o fotógrafo sedutor de usar truques. Capa respondeu: “Não é preciso usar truques na Espanha, não é preciso pedir a ninguém para posar. As fotos estão ali, esperando que alguém as faça. A verdade é a melhor fotografia”. As dúvidas suscitadas pela foto o incomodaram até a morte.
Desincorporou-se dos republicanos e foi cobrir a frente de combate perto de Madri e ali flagrou o outro lado da guerra: o rosto das mulheres que fugiam com os filhos dos bombardeios da aviação franquista.
Em 1938 resolveu cobrir uma guerra no outro extremo do mundo: China contra o Japão. Recebeu o apoio do governo chinês na pessoa da Madame Chiang Kai-Chek para o projeto de um documentário enquanto fotografava os horrores da guerra e a miséria da população civil. Retornou para a Espanha a tempo de cobrir a derrota dos republicanos, em 1939. Suas últimas fotos mostram a longa fila de combatentes espanhóis atravessando a fronteira para pedir asilo na França.
A invasão nazista obriga-o a refugiar-se em Nova York, onde reencontra a família que também conseguira fugir da Hungria. A entrada dos EUA na guerra, em dezembro de 1941, facilitou outras coberturas: a invasão do norte da África, da Sicília e, na Itália continental, as batalhas de Nápoles e Montecassino ? que cobriu com o amigo e escritor John Steinbeck, sempre incorporado às forças americanas.
“A guerra é como um atriz envelhecida. Cada vez menos fotogênica e cada vez mais perigosa.”
Em 6 de junho de 1944, o famoso Dia D, incorporado a um pelotão de 30 soldados, desembarca na praia que recebeu o nome-código de “Omaha”, na Normandia, para fazer outra das suas emocionantes seqüências fotográficas.
“Vi como caíam centenas de soldados e tive que abrir caminho empurrando os corpos, o que fiz com todo cuidado.” Passou 90 minutos no meio da sangueira, ficou sem filmes, tomou outra lancha para voltar ao navio e ainda clicou algumas tomadas memoráveis da praia calcinada. Subiu no navio e teve um colapso.
Cobriu a libertação de Paris com lágrimas nos olhos. Depois sucumbiu ao jet set ? romance com Ingrid Bergman, cobertura dos grandes desfiles de moda em Paris, namoro com quase todas as supermodelos, muito vinho, champã, scotch, pôquer e corridas de cavalo.
Com John Steinbeck (na ocasião o xodó das esquerdas), resolveu fazer uma reportagem sobre a vida na União Soviética. Perdeu esta guerra: os soviéticos queriam “incorporá-lo” ? não permitiram que fizesse as fotos que desejava e ainda seqüestraram as que conseguiu fazer.
Crise existencial interrompida por um convite da revista Life para cobrir a guerra na Indochina (mais tarde denominada de Vietnã). Em 9 de maio de 1954 chega a Hanoi para incorporar-se às forças francesas que combatem os guerrilheiros comunistas: “Pode ser que esta seja a última grande guerra”, anotou. No dia 25, no sul do país, perto de Thai Binh, salta do caminhão do exército francês e embrenha-se num arrozal para fotografar os camponeses. Uma explosão: ei-lo com as pernas despedaçadas no meio de uma poça de sangue e a Leica na mão.
“Numa guerra ou odeias ou amas, é preciso adotar uma posição ou não agüentas.”
Em todas as fotos em que aparece como fotógrafo, Capa usa uniformes de campanha. Sua última foto, num posto avançado do exército francês, está ao lado do amigo, o fotógrafo Michel Descamps, que usa insígnias militares nas ombreiras.
O fotógrafo das guerras foi enterrado no cemitério de Amawalk, em Nova York. Na lápide, a identificação em inglês e, em caracteres hebraicos, a palavra Shalom ? “paz”.
Blood & Champagne ? The Life and Times of Robert Capa, por Alex Kershaw sairá em julho de 2003 nos EUA. Lançada no início de abril na Espanha (Sangre y Champán).
Informações da revista dominical de El País (EPS), de 6 de abril de 2003, págs. 70-77. Pela transcrição, A.D.