UFRGS
Francisco Rüdiger (*)
Sabíamos como pessoas interessadas no futuro da vida acadêmica que o ensino superior passa por uma crise institucional, e que essa se estende da dúvida sobre qual é o seu atual sentido histórico e sua real função societária, até sua aberta transformação em serviço explorado em bases puramente mercantis e empresariais. Depois das negociatas com ingresso de estudantes, tentativas de fraude ou mesmo fraudes em vestibulares, sonegação de impostos, desvios de finalidade e outros fatos dessa ordem, começa a se discutir agora o quanto a situação penetrou na medula precípua da instituição e corrompe o verdadeiro espírito da universidade .
A expedição puramente burocrática de diplomas e os trabalhos comprados junto a terceiros no mercado de monografias e dissertações tornaram romântico o velho recurso da consulta indevida ao trabalho de pesquisa e estudo alheio: agora as tarefas podem ser feitas com base no "recorta e cola" permitido pelos computadores pessoais e os bancos de dados da internet.
Surpresa não é tanto ver como a UFRGS, a julgar pelo caso relatado em seguida, parece não estar livre dessa situação, mas constatar como começam a escassear as forças com que se poderia lhe fazer frente. Rola por suas mesas e repartições, desde abril de 2001, ainda sem perspectiva de conclusão, o processo de número 23078.010095/01-90, em que é feita denúncia de fraude por plágio em dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação.
Intitulado "O conceito de aura na teoria estética de Walter Benjamin", o trabalho merece a notícia e enseja comentário que em muito o transcende do ponto de vista escolar, porque, no caso, é nulo seu sentido filosófico e acadêmico. Significativo não é o fato de ser uma montagem de citações arbitrárias de terceiros, na qual não se observa argumento, nem qualquer propriedade intelectual, a começar pela falta de discussão, no texto, do tema que lhe empresta o título: o conceito de aura em Walter Benjamin.
Como no famoso caso Sokal, o relevante aqui é a maneira como um plágio sofisticado, mas, segundo tudo indica, um plágio, logra arrancar aprovação com conceito máximo de banca formada por três especialistas, professores-doutores, e, pior, encaminhamento para tanto por parte de um professor-orientador, responsável mais imediato pela investigação. Deixarei por constrangimento e alguma vergonha de repetir aqui os indícios da fraude que constam no processo.
Basta dizer que o autor da denúncia documentou, valendo-se apenas de três obras, 16 passagens fraudadas ou plagiadas, ocupando elas todas cerca de 20% da dissertação, se levarmos em conta que, das 100 páginas de texto, mais ou menos 35 correspondem a (estapafúrdias) notas de rodapé.
Quem de bom coração, mas convicção moral insustentável, pensar em justificar o fato, entendendo-o como resultado de problemas de identificação de autores, citações e fontes, precisará pensar duas vezes, se não quiser posar de cúmplice indireto do que, na vida do espírito, é crime. O problema em foco, quiséramos que fosse, não é o referido. As passagens não só estão muito bem identificadas como sendo da lavra do autor do texto mas, vendo bem, nota-se que elas não nasceram de seu pensamento: originaram-se de obras e textos que, sintomaticamente, não constam de uma extensa e erudita bibliografia referida no final da dissertação.
Apenas sabendo disso entenderá o leitor culto por que falta nesta lista tão abrangente e refinada, por exemplo, o clássico de Susan Buck-Morss, recém-traduzido, The Dialetics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project (MIT Press, 1989): ele é uma das obras plagiadas. Como a banca não viu isso, por Deus?! Desconhecia o texto, poderia ser a resposta; mas, se era esse o caso, não poderia ter julgado a dissertação. Pretendeu julgar assunto fora de sua competência. Quanto ao orientador, passou ele os olhos pelas obras, entre nós, pouco conhecidas, de acesso raro e incerto e, em muitos casos, difíceis de localizar mesmo em grandes bibliotecas estrangeiras que arrola seu pretenso pesquisador?
A comédia de erros e a parada de infelicidades já seriam dignas de nota e de pena se se detivessem por aí, mas vão além, porque consta que, não contente em agraciar o trabalho com o conceito máximo, a banca de especialistas que julgou o texto teria recomendado sua publicação em livro. O leitor pensa que é o bastante? Acredita que, logo em seguida à denúncia, feita quatro meses depois da apresentação do trabalho, a universidade se encarregaria de interromper o processo de validação do diploma, para proceder à devida investigação, não?
Saiba, porém, que não foi isso o que ocorreu: o processo teve continuidade, o autor segue gozando das prerrogativas que lhe conferiu o diploma, e cópia do volume, encadernada às custas da instituição, está depositada na Biblioteca da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação sob a referência T 1 (430) K66c (Registro 10229, de 11/5/2001).
Ainda não é tudo, porém: contratados para emitir pareceres sobre o ponto em discussão, especialistas no tema e em língua alemã, a despeito de notarem a compilação de trechos tomados de empréstimo sem citação explícita da fonte e a péssima qualidade acadêmica do trabalho, recomendado para publicação entre nós, não "encontraram provas que pudessem sustentar a suspeita de plágio"!
Forças morais vivas
Contudo, plagiar significa "apresentar como seu obra de outrem", "imitar trabalho alheio" ? e então não resta dúvida, à luz dos autos, do que se trata, ainda que se possa discutir a extensão; ou, então, criou-se um novo sentido para a expressão, o que precisaria porém ser, se possível, devidamente justificado.
José Arthur Gianotti defendeu em livro polêmico, publicado há mais de 15 anos, que a universidade brasileira, depois de ter alimentado ideais mais à altura de seu próprio objetivo e conceito, entrara em ritmo de barbárie. Salientando especialmente como e por que a figura do sabido estava tomando o lugar do sábio como sua personagem paradigmática, ele observou a formação de uma massa de acadêmicos conivente com a esperteza e que, para fazer carreira, adota a estratégia de "ser notado sem provocar diferenças [científicas]". Por aí, o sabido "vira chefe de departamento, diretor de unidade e, se for matreiro em política, sem dúvida, chegará a reitor" (A universidade em ritmo de barbárie, pág. 53).
Conhecemos por experiência muito próxima trajetórias desse tipo em nosso meio acadêmico: são, parafraseando um pensador, essas "nulidades sem alma ou espíritos medíocres", devotos de uma burocracia intelectual parasítica e petrificada, que fogem dos laboratórios escolares, da pesquisa séria e do debate de idéias, para se instalar em cargos comissionados e tentar lembrar que estão vivos em funções administrativas. Agora, parece que eles estão passando, respeitadas as diferenças da área de atuação, a servir de exemplo para a criação artística, filosófica, científica e tecnológica. Movendo-se das várzeas para o centro da vida acadêmica, os subprodutos do barbarismo intelectual e da moral do vale-tudo buscam instalar-se na ratio essendi da universidade.
Felizmente, como prova a própria denúncia da fraude, ainda há forças morais vivas e responsáveis em nossa universidade. Deveríamos aguardar o desfecho do problema com interesse. Pequeno em todos os sentidos, o caso não o é como mais um sinal dos rumos que a universidade tem de escolher, se ainda quiser disputar alguma coisa com a sociedade brasileira neste início de século 21.
[A segunda e última parte deste artigo estará na próxima edição (n? 210) do OI]
(*) Doutor em Ciências Sociais (USP) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul