Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fritz Utzeri

TIM LOPES, ASSASSINADO

"Mau gosto e vaidades", copyright Jornal do Brasil, 14/06/02

"Não pretendia voltar ao assunto Tim Lopes, mas sou obrigado a fazê-lo. Acho que tenho um passado profissional e pessoal que me autorizam a lançar a discussão sobre as questões éticas do jornalismo.

Pode até ser que a expressão porra-louquice, em carta de Mario Chimanovitch que reproduzi, tenha soado inadequada a ouvidos sensíveis e acostumados a jornalismo de gabinete, mas somos suficientemente acostumados ao uso das palavras para não recuar diante de expressões fortes. Em princípio, todo bom repórter é porra louca, um vira-lata. Não precisa nem ter sentido o zunido de bala passando a um palmo de sua cabeça ou ter tido filhos ameaçados de morte.

Faço minhas as palavras de Mario Chimanovitch e atrevo-me, sim, a dizer que Tim Lopes era um tremendo porra-louca porque era um grande repórter. Quando estamos na rua, cheios de adrenalina, espécie de droga que produzimos e que vicia, jamais imaginamos que algo terrível como a morte vá nos encontrar e cortar as asas. Somos anjos, invulneráveis. A fatalidade acontece sempre aos outros, mas às vezes o destino erra a mão.

O motivo de minha revolta é considerar que Tim morreu por pouca coisa, muito mais em nome do show do que do jornalismo propriamente dito. Ele não estava no baile funk para fazer denúncia que contribuiria para combater a droga. O objetivo declarado da matéria era obter imagens de adolescentes tendo relações sexuais e do comércio de drogas nesses bailes. Não são fatos novos, mas a TV vive de imagens e uma imagem chocante, mesmo que não agregue nada à consciência ou à razão, serve sempre para alimentar o voyeurismo que tomou conta de nossa mídia televisiva (e não só da TV Globo. Há coisas piores mas – felizmente – muitas ainda não são chamadas de jornalismo).

Quero discutir a questão ética, sim! Malhar o ferro quente e não cair na hipocrisia das lágrimas de crocodilo num olho, enquanto o outro verifica (satisfeito) a subida da curva do Ibope. O fato é que nossas condições de trabalho são cada vez mais precárias e a competição sem limites justifica todos os excessos.

Conheci Pena Branca e muitos de seus discípulos e devo dizer que, embora reconheça que tenham feito algumas grandes reportagens, não os tomei jamais como exemplo profissional. Vários desses jornalistas atravessaram a fronteira e acabaram mais parecidos com policiais do que com jornalistas. (Não é o caso, nem de longe, de Tim). Mas houve até quem chegasse a participar (como espectador) de grupos de extermínio. Não faz o meu gênero. Não é a profissão que reconheço e que tenho procurado exercer, com um mínimo de dignidade e honestidade, há quase 35 anos.

Não posso calar ante a porra-louquice (aí no sentido da irresponsabilidade que mata) de entregar um profissional a uma tarefa de altíssimo risco, com um propósito pífio, e não procurando sequer dar-lhe as condições mínimas de segurança ou cobertura. Jornalismo investigativo pressupõe técnica, padrões a observar e um compromisso absoluto da empresa com o profissional. Tim foi sozinho e quando desapareceu fez-se o silêncio. A matéria do sumiço do repórter saiu em grande destaque no JB e em nota escondida dentro de O Globo. Não afirmo que se a TV Globo tivesse gritado, assim que soube da captura de Tim, teria salvado a sua vida, mas o silêncio ajudou a matá-lo.

E o que dizer da jornalista Cristina Guimarães, outra porra-louca que trabalhou com Tim na matéria sobre a feira das drogas que valeu a ambos o Prêmio Esso? Cristina começou a ser perseguida pelos traficantes. Hoje vive escondida, apavorada. Sinto por Tim e tremo de pavor ao imaginar a maneira brutal como foi assassinado. Não voltarei ao assunto. Mas é bom lembrar que só o Elias Maluco ?assou? pelo menos 200 pessoas em seu ?microondas?. Como ninguém era jornalista, pareceu normal, rotina."

"A impressão digital do jornalista", copyright Jornal do Brasil, 16/06/02

"O jornalista da TV Globo Tim Lopes morreu, no último dia 2, brutalmente assassinado por traficantes, quando fazia uma reportagem sobre tráfico de drogas e exploração sexual em um baile funk na favela Vila Cruzeiro, subúrbio do Rio de Janeiro. Tim, como se costuma dizer, estava exercendo o seu ofício. Perigosamente, em uma zona de conflito da cidade, nervo exposto à violência do poder paralelo do tráfico de drogas. Como Tim, outros tantos jornalistas, no mundo todo, se arriscam e morrem no trabalho de campo. Hoje, a partir das 22h30, o canal GNT (Net) aborda esse aspecto mais dramático da profissão exibindo os documentários Notícias de uma guerra particular e Morrendo para contar a história (Dying to tell the story).

Com uma hora de duração, direção de João Moreira Salles e Katia Lund, Notícias de uma guerra particular, lançado em 1999, analisa o estado geral de violência das grandes cidades brasileiras, em particular, o crime organizado que subjuga algumas áreas do Rio. O documentário é costurado com depoimentos de policiais, moradores, traficantes e outros envolvidos nessa guerra urbana.

Logo depois, às 23h30, vai ao ar Morrendo para contar a história, documentário com uma hora e meia de duração que conta a trajetória de Dan Eldon, fotógrafo de 22 anos que trabalhava para a agência de notícias Reuters e que, junto com outros quatro repórteres, foi apedrejado até a morte, na Somália, em 1993. Realizado em 1997 pela irmã de Dan, Amy Eldon, que tinha 19 anos quando ele foi covardemente assassinado, o filme procura responder e entender por que alguns profissionais arriscam suas vidas na busca de notícias e imagens de conflitos pelo mundo.

O documentário mistura entrevistas com profissionais que adotam o risco como uma espécie de impressão digital de seu trabalho – como o cinegrafista australiano Des Wright, a correspondente da CNN Christiane Amanpour e Peter Magabune, preso e torturado por ter registrado cenas do apartheid. Do outro lado do front, Morrendo para contar a história mostra antigos correspondentes que se bandearam para a segurança do glamour das festas e das celebridades. Também há desabafos emocionados de familiares e amigos de jornalistas mortos em situações de risco. A eles restaram as seqüelas emocionais do trauma."

"Elegia ao Jornalismo", copyright Comunique-se, 14/6/02

"A morte monstruosa do repórter Tim Lopes, da TV Globo, enquanto fazia uma matéria investigativa sobre uma festa funk que envolvia sexo explicíto e tráfico de drogas, prova que o jornalismo brasileiro está à beira de um colapso. Apesar do seu método pouco ortodoxo – o disfarce amparado com uma micro-câmera -, mas perfeitamente justificável se observar o meio onde conseguia suas notícias – o submundo carioca -, o assassinato de Lopes exibe a fragilidade da profissão de jornalista.

Fragilidade não só pelos perigos que ela apresenta, como provam os mais de cento e cinqüenta jornalistas que são mortos anualmente nos interiores dos estados do Nordeste e do Sudeste, mas também pelo exemplo trágico de Daniel Pearl, o correspondente do Wall Street Journal, que foi seqüestrado e decapitado por um grupo terrorista islâmico. O jornalismo está em uma crise ímpar porque, além da falta de segurança – um tema recorrente depois do Terror do 11 de setembro -, há a completa ausência de um sólido caráter moral na maioria das pessoas que o exercem. A morte de Tim Lopes é só o início de uma série de fatos que marcará uma das épocas mais sangrentas na história da imprensa, em que o jornalista estará no centro de uma guerra – uma guerra que ele próprio ajudou a deflagrar.

Mas, na verdade, a tragédia começa muito antes, nas universidades e, depois, nas próprias redações. A causa é a mudança sutil de uma ética baseada no cotidiano – a ética do cidadão que Claudio Abramo afirmava que o jornalista deveria cumprir como sua – para uma outra ?ética?, filha bastarda dos panfletos esquerdosos, em que o que importa não é a notícia e sim o interesse político que se tira dela.

Dessa forma, quem contribuiu para a desgraça de forma duradoura foram as faculdades de jornalismo. Obcecados com a tirania do diploma, os estudantes entram em um mundo onde a formação intelectual é irregular, para não dizer incompleta, em que estudar Marx e Marilena Chauí é muito melhor do que aprender Platão e Shakespeare, e a técnica da escrita é reduzida a uma pirâmide invertida que transforma a notícia num pastel gorduroso. Ninguém ensina aos alunos que eles deveriam virar a mesa, tornarem-se independentes e virarem donos de seu próprio negócio. Ao contrário: desestimulam o aluno com matérias e lições insípidas, sem nenhum contato com a realidade, gritam aos quatro ventos que Deus não é notícia e, se não caem no perigo do marxismo de botequim, são pegos pela armadilha do espiritismo fácil, com direito a duendes e trilha sonora da Enya.

O mais interessante é que a suposta oposição, que deveria defender os direitos da profissão, mal consegue ver o próprio umbigo e culpa os donos dos jornais como se fossem os vilões da história. Os ?opositores? não passam de revolucionários onanistas que desejam sentar na cadeira do dono de jornal, para ter o mesmo direito que este tem ao mandar em algo que ele possui, mas, com a diferença que o empresário quer somente um pouco de prestígio, enquanto o ?opositor? deseja mais dinheiro para o seu bolso puído. Os donos de jornal não têm culpa nenhuma. Apenas aproveitam o que lhes foi oferecido de mão beijada: um material humano pálido, sem uma formação crítica profunda, sem uma visão de mundo própria, apenas um retalho de opiniões ordinárias que levam a marca do Sindicato do Chute.

A ideologia política é um narcótico para o jornalista dar um sentido à sua profissão e, com isso, ajudar na expansão de um poder que não é deles, nem dos donos dos jornais e muito menos da sociedade. É o poder de algo que é muito mais difícil escapar do que a morte: a maldade. Ela se infiltra quando menos se espera, seja nas universidades ou nas redações, e o jornalista, alimentado pela vaidade da notícia, acaba confundindo as coisas, derrapa no barranco desesperado da sobrevivência e, num ato que só pode ser chamado de irracional, começa a admirar assassinos como Che Guevara ou Carlos Marighella por seus ideais pseudo-pacíficos. Parece algo sem conseqüências, mas foi assim que deixaram o traficante Elias Maluco cortar Tim Lopes com uma espada ninja – com uma surreal aliança entre bandidos e letrados, em que estes apoiavam os primeiros por irem contra o sistema ?opressor, capitalista e neo-liberal? que não se encaixava na ideologia deles.

A mesma desintegração moral também acontece em outras profissões no Brasil, como direito, pedagogia, psicologia, medicina, e um infinito etecétra. Mas o jornalismo deve ser tratado com carinho porque, talvez junto com a filosofia e a literatura, é uma das poucas atividades humanas que depende da vocação, o chamado interior da consciência que nos puxa para fazer aquilo e nada mais. O sujeito que quer ser jornalista faz isso por algum dever moral e humano – e não por uma obrigação social de querer resolver todos os problemas do mundo. O jornalista não veio para consertar a cidade onde vive: veio para cuspir nela, vigiando-a com os olhos afiados de irritação. Sem esta postura libertária e independente, sem vícios ideológicos, ele deveria escolher outra vida, porque o confronto com o poder será constante e o embate com a maldade humana exige uma integridade de alma que nenhuma faculdade pode ensinar.

O satirista Juvenal perguntava há dois mil anos na Roma antiga: Pone seram, cohibe. Sed quis custodiet ipsos Custodes? (Coloca o ferrolho, impeça. Mas quem vigiará os próprios vigilantes?). É uma pergunta de difícil resposta, mas o fato é que o jornalismo brasileiro está morrendo. Tim Lopes será apenas o primeiro de muitos e, enquanto existir o veneno da ideologia política, seja da direita ou da esquerda, o jornalista deve ser vigiado não só por si mesmo, naquela busca sincera pela verdade que caracteriza qualquer ser humano digno, mas por algo além da nossa compreensão, que ultrapasse o poder do dono do jornal, a fuga impossível da maldade e a vaidade fajuta da notícia."