DOSSIÊ PERFÍDIA
Alberto Dines
Circo armado, folia solta, fúrias desatadas, começo com insignificante questão vernácula. Há uma ligeira diferença entre o título de hoje e o anterior, embora façam parte da mesma série. No primeiro, dizia que fui manchete de O Globo, preservando o nome do jornal e o artigo que o antecede. Agora, adoto a contração da preposição com o artigo.
Responsável pela mudança foi o Manual de Redação e Estilo (Editora Globo, 171 páginas). Quem adotou a informalidade agora consagrada foi Evandro Carlos de Andrade, responsável pela transformação de um vespertino, com todos os seus cacoetes, num jornalão de referência nacional.
O manual-bíblia, teoricamente para consumo interno, foi best-seller (meu exemplar é o da sétima edição, 1992, houve outras) e, graças a ele, descobre-se que o jornal é muito rigoroso na apuração e divulgação das informações. À página 32 está dito que o "o estilo pingue-pongue (perguntas e respostas em seqüência) é a fórmula que garante maior fidelidade… deve ser usado em todas as entrevistas longas – e, mesmo quando possível, em curtas. Regra para todas as entrevistas: pesquisar o assunto e o entrevistado e preparar questionário com perguntas breves e diretas. As respostas freqüentemente forçam mudanças de curso na entrevista e o repórter deve estar pronto a fazer novas perguntas, seja para insistir quando as respostas forem evasivas, seja para explorar pontos mencionados mas não esclarecidos etc. etc.".
A manchete malandra através da qual O Globo pretendeu escapulir do banco dos réus para colocar-me nele (dia 8/2, página 8) infringiu todos os preceitos éticos preconizados pelo precioso manual. Já é do conhecimento público o depoimento do Joca, autor do livro-pivô Memórias das Trevas, mostrando como suas declarações a respeito da suspensão do programa da TVE foram distorcidas para forjar uma manchete contra mim (www.teste.observatoriodaimprensa.com.br). Nem repetirei o que foi dito na semana passada.
Agora desvenda-se como foi abandonado o vade-mécum ético-estilístico e, dia seguinte, num passe de mágica ou mauvaise conscience, reativado para uma elegante reparação.
"Você nunca mais lerá jornal do mesmo jeito" é o lema do Observatório da Imprensa, e com base nele convido leitores-cidadãos a examinar alguns meandros da engrenagem jornalística da qual tanto depende. Publica-se diariamente no Globo, no pé da página 6, pequena rubrica, intitulada Autocrítica, onde o autor do manual, editor de Opinião e espécie de ombudsman (ouvidor), aponta os erros da edição anterior. Dia 9/2, após a desastrada manchete, as cinco nótulas diziam respeito a questões vernáculas, nenhum reparo a infrações éticas. Louve-se o cuidado com o idioma, código de comunicação essencial, mas estranha esse desapego pelo conteúdo do que é dito. O que adianta consertar concordâncias e regências se a matéria-prima da frase – a informação – está comprometida? Soa falso.
Com isso encerro o episódio jornalístico para entrar no cerne e motivo da questão, o problema político e moral originado pelo confronto ACM-Jader. O mesmo cinismo que levou grande parte da imprensa a esconder o lançamento do livro Memórias das Trevas, uma devassa na vida de ACM embarcou-a num moralismo pela metade. Jader Barbalho na presidência do Senado e do Congresso, terceiro na ordem da sucessão, é um acinte. Mas quem não considerou acintoso seu antecessor na função é, no mínimo, hipócrita.
A forma com que ACM manipulou a mídia durante tanto tempo, e especialmente agora para preservar-se de uma minuciosa investigação jornalística, revela perversão tão grave como o enriquecimento ilícito. A emasculação da imprensa, por artes da sedução ou intimidação, é falta grave. Compromete a democracia, amputa o regime, inutiliza um poder (quarto ou o sexto, não importa) que equilibra o sistema político. A matéria no New York Times de 14 último, enviada de Salvador por Larry Rohter, mostra como um jornalismo objetivo pode colocar os pontos nos ii.
Quando Carlos Lacerda denunciou o "Sindicato da Mentira", grupo de repórteres políticos que, embora de formação udenista, atrapalhava seus planos hegemônicos dentro da UDN, usava sua arrasadora verve panfletária para um projeto pessoal. Nas últimas décadas criou-se um formidável "Cartel da Mistificação" para produzir empulhação e imposturas. A ponta desse iceberg negro e pegajoso foi a cortina de silêncio imposta ao livro de João Carlos Teixeira Gomes, o Joca.
O que nos leva à compulsiva atração de certas esquerdas brasileiras pelo caudilhismo, inclusive o de direita. As chorosas despedidas de ACM na capitania legislativa onde esteve abancado teve lenços e lances lacrimosos nas chamadas "forças progressistas". Enternecidos pela oratória de Toninho Ternura, representantes das vanguardas revolucionárias passaram a borracha no currículo de Toninho Malvadeza, revelando sua insopitável vocação para o dramalhão pequeno-burguês. Não é de hoje. O sebastianismo luso talvez explique esses desvios e tropeços oportunistas.
O que não pode ser ignorado na equação ACM-Jader é que os ilustres senadores se equivalem. Esquecer essa realidade é reavivar o velho udenismo farisaico e ambíguo. (Fim)
(*) Copyright Jornal do Brasil, 17/2/01
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