Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Gabriela Goulart

O QUINTO DOS INFERNOS

"Peladões para todos os lados", copyright Jornal do Brasil, 10/1/02

"Peladões de Uga uga? Presente. Mulheres em sensuais banhos de rio como em Pantanal? Estão lá. Piadinhas com o tamanho da potência masculina, típicas das chanchadas? De perder a conta. Caricaturas com personagens da História do Brasil, como no filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati? Tem. Referências mudernas, com som pop embalando cenas de época, no melhor estilo do filme Moulin rouge? Aos montes. Um clima pornô-soft, com musiquinha de fundo e tudo? Nossa, como tem. Cabe tudo no lotação que leva para O quinto dos infernos da TV Globo. Com exceção de muitos pares de seios e alguns traseiros masculinos, nada fica de fora da minissérie que estreou terça-feira, às 22h30. Pelo contrário, sobra coisa. Peca-se pelo excesso. Dá para rir? Dá, às vezes. Se bem que se esta pergunta estivesse nos diálogos da trama do autor Carlos Lombardi, algum personagem responderia: ?não dou, não dou, não dou?.

A Carlota Joaquina de Betty Lago seria forte candidata a fazer a gracinha. Difícil para o telespectador seria entender seu sotaque, misto de português, italiano e espanhol. O D. João VI de André Mattos também poderia ser o autor, se não estivesse sempre com a boca cheia das manjadas coxas de galinha que tira dos bolsos (em Carlota Joaquina já era assim o tempo todo). Como define a própria Carlota, seu marido é um ?mierda, um mierdão enorme?.

Tão grande quanto foi a audiência do primeiro capítulo de O quinto dos infernos: média de 37 pontos. A chanchada/pastelão de Lombardi deixou para trás a ousadia de Presença de Anita, última minissérie exibida pela Globo, que, além de muita polêmica, registrou 30 pontos na estréia.

Ritmo – Número que, depois da fracassada reconstituição histórica de Os Maias, deve estar fazendo a direção da Globo rir até da piada mais sem graça. No primeiro capítulo de O quinto dos infernos, aliás, ficou evidente que o fantasma da minissérie dirigida por Luís Fernando Carvalho ainda ronda pela emissora. Em vez do ritmo lento, optou-se pela agilidade quase frenética.

Em 45 minutos, morreram o rei de Portugal e o príncipe herdeiro D. José, D. Maria enlouqueceu, Carlota Joaquina levou para sua cama boa parte da guarda da Família Real, D. Pedro, ainda menino, deu sinais de que será um taradão, a Manoela de Daniele Winits passou por duas tentativas de estupro e balançou as próteses de silicone como nunca e o Chalaça de Humberto Martins exibiu-se, nu, de costas e de frente, em ângulos da revista G Magazine – e terminou o capítulo caindo de boca em um cacho de uvas estrategicamente localizado entre as pernas de Manoela.

Mesmo assim, na proposta de chacota histórica, a canastrice do ator funcionou – como se diz habitualmente. Humberto Martins está para O quinto dos infernos como Alexandre Frota para Casa dos artistas, do SBT. É ruim, mas é bom. Já Daniele Winits não convenceu muito como a virgem derrotada pela volúpia exagerada de seu corpo. No fim das contas, suas formas chamaram mais atenção que o conteúdo.

Tanta atenção quanto o caráter duvidoso dos personagens. Na História contada em O quinto dos infernos, todo mundo é picareta, dá algum golpe, engana alguém. D. João, Carlota Joaquina, Marialva (José Wilker), Chalaça. Até os especialmente criados para a trama, a bela Branca (Bruna Lombardi) e seu pai, o jornalista Camargo (Pedro Paulo Rangel). Livre adaptação dos livros, a minissérie vale uma olhada pelo ritmo dos diálogos – estilo de Lombardi -, que mistura sacadas ao humor bem popular. Pode pegar. Pode até virar cult."

 

"Nova versão da ?grande família? real com cenas impróprias para menores", copyright O Globo, 10/1/02

"Ah, se os portugueses que aqui desembarcaram lá pelos idos de 1808 tivessem aprendido a achar graça deles mesmos, teriam sido muito mais felizes. E teriam se sentido no Paraíso e não no ?quinto dos infernos?, expressão usada por Carlota Joaquina que dá título à minissérie que estreou anteontem na TV Globo, logo após O clone.

Como nunca é tarde para recuperar o bom-humor, o autor Carlos Lombardi e o diretor de núcleo Wolf Maya já mostraram no primeiro capítulo que vão recontar a história da vinda da família real para o Brasil pincelando com tintas fortes as situações de comédia e as muitas, muitas cenas eróticas. Com certeza, quem se surpreendeu com os índios pelados de Uga uga (última novela de Lombardi) vai ficar ainda mais perplexo com o desfile de seios turbinados e corpos sarados. Sem falar nas cenas de sexo que pipocam em todos os blocos.

Trilha sonora bastante ousada para a época

Mas, apesar dos seios turbinados saltitantes de Danielle Winits e do bumbum ? e muito mais ? de Humberto Martins à mostra, a grande vedete da noite foi mesmo a trilha sonora. Sem qualquer compromisso com a época, pode-se ver, em pleno século XIX, personagens tendo como tema músicas nacionais e internacionais modernas.

O refrão ?Mas logo teus olhos disseram que não, e o sol penetrou no meu coração?, na voz de Ney Matogrosso, valorizou as cenas vividas por Danielle Winits. A atriz, por sinal, não fez feio no momento de mostrar o sofrimento de sua personagem, a camponesa Manoela, que é estuprada pelo padrasto, Juvêncio (Paulo Gorgulho). Mas foi Débora Duarte quem roubou toda a dramaticidade do primeiro capítulo. Apesar de, na verdade, ter sido o único momento de drama, a atriz, que faz Amália, mãe de Manoela, deu um show na cena em que apedrejou a filha, não acreditando ter ela sido atacada por seu marido.

E o que dizer da interpretação da pequena Raissa Medeiros no papel de Carlota Joaquina quando tinha 10 anos? A menina não se intimidou e mostrou talento diante de feras como Eva Wilma (Maria, a louca) e Cássio Gabus Mendes (Dom João jovem). O ator, aliás, nos dez minutos em que apareceu mostrou mais uma vez que é craque em comédia. No que foi substituído à altura por André Mattos, o Dom João mais velho.

Já Betty Lago fez uma Carlota Joaquina adulta tão audaciosa quanto a pequena Raissa. E a dobradinha com André Mattos funcionou perfeitamente. Os dois viveram um dos momentos mais engraçados da noite: Carlota e Dom João dançando ao som de uma música árabe. Intérprete de uma espanhola, Betty mereceu ter como tema a ópera ?Carmen?, de Georges Bizet.

E não há como não voltar à trilha sonora. Quem não lembra de ?Raindrops keep falling on my head?, de Burt Bacharach, que embalou o filme Butch Cassidy? Pois foi esta canção que deu um toque diferente às situações vividas pelo Chalaça de Humberto Martins. Como em Uga uga, o ator mais uma vez incorporou o herói-garanhão-engraçadinho-pelado.

Bruna Lombardi ganhou uma chegada holywoodiana. Só que de carruagem. A primeira impressão foi a de que ela faria uma versão loura da personagem de Cláudia Ohana em ?As filhas da mãe?, mas logo se viu que Branca será ardilosa e formará uma dupla divertida com o jornalista Camargo (Pedro Paulo Rangel).

Enganou-se quem pensou que vinha aí mais uma minissérie de época como todas as outras. Já que o horário permite, Lombardi vai ousar nas cenas de sexo. E parece que o público gosta. A média de audiência na estréia foi de 37 pontos. No mesmo mês, ano passado, o primeiro capítulo de Os Maias teve 32 pontos, e o de Presença de Anita, 31, em agosto. A audiência de O quinto dos infernos só não superou a média da estréia de A muralha: 44 pontos em janeiro de 2000."

 

"Quinto dos Infernos, pornochanchada histórica", copyright O Estado de S.Paulo, 10/1/02

"A família real portuguesa nem ameaçou vir para o Brasil e a nova minissérie da Globo já desagradou a historiadores portugueses e brasileiros. ?Pornochanchada? foi a palavra usada por vários dos entrevistados pelo Estado para definir o primeiro capítulo de O Quinto dos Infernos, de autoria de Carlos Lombardi, que foi ao ar na noite de terça-feira, num capítulo supostamente especial. Até a trilha, que recorre a músicas contemporâneas (como Marylin Monroe cantando My Heart Belongs to Daddy, de Cole Porter), alerta para a idéia de que não se pode confiar na reconstituição histórica da série – recheada de muito silicone e homens nus.

O único que conseguiu encontrar algum elogio para o programa foi o secretário-geral do Conselho da Comunidade Luso-Brasileira, Paulo Machado: ?Pelo menos um mérito não pode ser negado: a Rede Globo reuniu para a novela um elenco de primeiríssima qualidade.? Mas foi um pequeno afago, depois muita crítica: ?No meu entender, trata-se de uma publicidade enganosa; a Globo, em suas chamadas, anunciou que faria ‘uma versão bem-humorada da história do Brasil’; pelo menos no primeiro e enfadonho capítulo, não houve história e muito menos humor.? Para Machado, O Quinto ficaria melhor se fosse feito pela turma do Casseta & Planeta.

Segundo Mary del Priore, professora da Universidade de São Paulo e autora de História das Mulheres no Brasil (Contexto), ?o episódio presta-se à caricatura, pois se inspira na bibliografia republicana e positivista do fim do século 19 que, para afirmar a identidade do novo regime, enxovalhou o anterior?. Ela diz ainda que, ?emprestando um pretexto histórico, no caso a vinda da Família Real portuguesa ao Brasil (1808), a série apenas vende ao espectador mais uma pornochanchada global?.

Elias Tomé Saliba diz que a minissérie estrelada por Danielle Winnits (Manuela), Betty Lago (Carlota Joaquina) e Humberto Martins (Francisco Gomes, o Chalaça) repete, com seu apelo excessivo à sexualidade, ?erros de Carlota Joaquina?, de Carla Camuratti, sem se aproveitar das qualidades do filme. O Quinto, segundo a emissora, faz uma adaptação livre dos livros O Chalaça, de José Roberto Torero, A Imperatriz no Fim do Mundo, de Ivani Calado, e As Maluquices do Imperador, de Paulo Setúbal. Saliba afirma que ?o resultado fica muito aquém dessas obras?.

De acordo com Rui Rasquilho, diretor do Instituto Camões, órgão cultural ligado à Embaixada de Portugal, a série ?é um divertimento sem reconstituição histórica?: ?O autor abrasileira os personagens, sem os contextualizar.? Ele pergunta: ?Será que os brasileiros não se envergonham de fazer uma coisa dessas?? Na sua opinião, a minissérie propaga idéias e versões equivocadas da história, ?o que é preocupante para a educação do povo brasileiro?.

José Jobson de Arruda, autor de Brasil-Portugal – História – Agenda para o Milênio (Edusc), considera O Quinto a versão brasileira do filme norte-americano Debi e Lóide. ?Um lixo televisivo, uma chanchada da pior espécie.? Segundo ele, torna-se, assim, difícil julgar tanto a caracterização dos personagens quanto o conteúdo da trama. ?Os adultos com boa formação conseguem entender a brincadeira, mas, para os jovens e adolescentes, a imagem distorcida pode ficar como referência, até porque o humor facilita a apreensão da história.? Na sua opinião, a Globo, por seu alcance, ?tem uma responsabilidade social? e não poderia estar ?prestando esse desserviço à educação?. Arruda defende que ?a imagem de d. João VI como indeciso?, explorada por Carlos Lombardi, é equivocada: ?D. João VI foi um sábio, que soube usar a astúcia da neutralidade para lidar com as pressões exercidas pelas potências França e Inglaterra.?

Mary del Priore acrescenta: ?D. João VI podia não ter o padrão global de beleza, mas foi um soberano que muito fez pelo Brasil: fundou a Imprensa Régia, o Banco do Brasil e trouxe a missão francesa, responsável por transformações nas artes; espero que entre uma mordida e outra na coxinha de galinha se diga isso ao espectador.?

Renato Pinto Venâncio, co-autor do Livro de Ouro da História do Brasil, acha que escolhas menos óbvias (e problemáticas do ponto de vista histórico) por parte do autor poderiam interessar mais ao público. Ele cita, por exemplo, o fato de d. João ser adepto de algumas modas românticas, como o piquenique: ?Logo que chegou, chocou a sociedade do Rio de Janeiro por comer na grama e com as mãos, um hábito dos escravos – o que resultou na sua imagem de glutão e desajeitado.?

Também Carlota Joaquina, crê Venâncio, poderia ter recebido um tratamento mais profundo. ?Ela não era apenas um furor uterino; foi uma articuladora política importante, cuja ação ficou conhecida como carlotismo.? Causava problemas para a diplomacia portuguesa (afinal de contas, ela era espanhola) e era uma mulher avançada para seu tempo: andava a cavalo, dava tiro de canhão e já tinha uma imagem negativa na corte portuguesa, por conta de sua relativa independência. ?Na República, essa imagem negativa virou caricatura.? (Colaborou Haroldo Ceravolo Sereza)"