VENEZUELA, GOLPE E CONTRAGOLPE
Marinilda Carvalho
Sexta-feira, 12/4, meio-dia, Globo News, telejornal Em Cima da Hora. A edição das 12h, uma das mais longas e densas do dia, abre com Oriente Médio. Fica patente que "o seu canal de jornalismo 24 horas no ar" vê com desprezo a América Latina, reduzindo a segundo plano o golpe militar que de madrugada depôs num país vizinho ao Brasil um presidente eleito, após confrontos de rua que ? naquela altura ? deixaram 10 mortos e uma centena de feridos. A mesma edição nem menciona a invasão pelas Farc da Assembléia Legislativa de Cáli, e o seqüestro de 12 deputados colombianos.
A América Latina é menos importante do que o Oriente Médio ? não importa o peso que a notícia de um golpe signifique neste nosso ambiente de democracias débeis, que muitos temem transitórias. Ora, a Venezuela não passa de uma banana republic governada por um golpista louco que tinha mais é que cair mesmo. Esta, aparentemente, a interpretação da Globo News sobre a mais importante notícia do ano para o nosso continente, ao lado da crise argentina e do impasse colombiano. Como poderia o caipira Hugo Chávez competir com Colin Powell, que acabava de desembarcar em Israel? Como 10 mortos e 95 feridos em Caracas competiriam com os seis mortos e 80 feridos de Jerusalém? Para o Em cima da hora, a mulher-bomba era o gancho de terror para a longa (e burocrática) matéria composta de vários informes (burocráticos) sobre a visita de Powell.
Quando finalmente falou da queda de Chávez, a Globo News foi fria e "imparcial". E tratou como estadista Pedro Carmona Estanga, golpista entronado por uma ala militar no comando do governo provisório. Carmona era presidente Fedecámaras, a Fiesp de lá. Lembram do "alerta" de Mario Amato em 1989, de que um mundão de empresários deixaria o Brasil se Lula fosse eleito? Pois Carmona agiu: minou o mandato de Chávez, e nos últimos meses fustigou-o com seguidos lockouts. (Como se viu depois, acabou preso.)
O quadro que ficou de fora
Mas a Globo News não explicou ao telespectador por que o "grevista" Carmona precisava derrubar Chávez. Aliás, ultimamente, informação sobre a Venezuela só em sites de mídia alternativa. Às páginas de nossa imprensa a Venezuela chega pelos olhos das agências internacionais, que moveram contra Chávez uma "selvagem campanha de descrédito" ? nas palavras do próprio presidente, ditas em 1999, antes de viajar aos Estados Unidos para tentar mudar a imagem distorcida de seu governo transmitida ao mundo pela mídia americana. Nem o chileno Salvador Allende, deposto e morto em 1973, sofreu tamanha perseguição.
Mas, pelo padrão Globo News de jornalismo ? somos isentos e imparciais, só relatamos os fatos ?, isso tudo é teoria conspiratória. Assim, não se ouviu uma palavra dos repórteres-apresentadores sobre essa campanha da mídia americana, ou sobre o combate obstinado da mídia venezuelana ao governo. O que o telespectador ficou logo sabendo é que na quinta-feira (11/4) Chávez tirou do ar as estações de TV privadas. A ironia é que a venezuelana Globovision, que mostrou ao mundo as manifestações anti-Chávez, decidiu não transmitir os protestos pró-Chávez. E deixou na mão até a Globo.
Para a mídia americana, cada passo de Chávez no governo deixava a Venezuela mais perto da ditadura. E, no entanto, sua reforma da Constituição seguiu todos os preceitos democráticos, apesar do clima de baderna implantado pelo Congresso oposicionista. Em 1999, o sociólogo Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais da Uerj, disse ao Jornal do Brasil que grande parte da reação contrária a Chávez vinha do fato de que o continente ficou traumatizado pelas ditaduras, e se apega aos procedimentos democráticos, ao funcionamento das instituições. "Mas Menem reformou a Constitui&ccediccedil;ão argentina, que era intocável, e Fernando Henrique também, ambos para chegar à reeleição. E não se diz que isso é golpismo."
"A verdade é que ninguém está interessado em explicar o que está por trás dos acontecimentos", diz a jornalista Claudia Antunes, ex-editora de Internacional. "Todo mundo engole as versões das agências, como se as agências fossem neutras." Para Claudia, "a imprensa criou o mito da neutralidade para encobrir uma incrível parcialidade". A mídia, que não vinha acompanhando Chávez, não explicou por que os partidos de esquerda que apoiaram a eleição dele estavam pouco a pouco saindo do governo. "Acho que o ápice foi a saída do Luis Miquilena [ex-ministro, ex-presidente da Constituinte, aliado de primeira hora] há uns três meses, e ninguém foi entrevistá-lo para entender o que acontecia." O que os poderosos, incluindo os meios de comunicação, não suportavam na realidade era a figura de Chávez e o que ela representava. "Ele é um mestiço, não estudou em Harvard ou Chicago, e foi eleito com apoio do povo mais pobre", resume.
Não espanta, portanto, a aversão do setor de comunicações, fechado a cadeado com a elite empresarial, porque a ela pertence: perdera os privilégios adquiridos em quatro décadas de corrupção institucionalizada, sob o domínio dos partidos tradicionais, Copei e Ação Democrática. Empresários e políticos pegavam um avião toda semana para Miami, a meia hora de distância, para dar entrevistas contra Chávez na mídia americana. Gente como Carmona lamentava cada aumento do preço do petróleo, porque o ingresso de divisas dava mais fôlego a Chávez.
Copei e Ação Democrática são aqueles partidos que as agências americanas elogiavam porque, alternando-se no poder, "mantiveram a Venezuela como a democracia mais estável da América Latina durante 44 anos". Os efeitos dessa "democracia": com a desnacionalização da economia a partir do fim da década de 70, a exploração do petróleo foi dividida com o capital transnacional, as indústrias de aço e cimento, as telecomunicações e os bancos foram parcial ou totalmente privatizados. A dívida externa quadruplicou, a capacidade produtiva caiu de 97% para 49%, o desemprego subiu de 4,3% para 20%, a inflação saltou de 8% para 40% (a moeda passou de 4,30 bolívares para 620 bolívares por dólar), o salário real caiu à metade e o patrimônio público e privado teve perda de quase 60%. E mais: 80% da população afundaram abaixo da linha da pobreza. Enquanto isso, os 20% de ricos enviaram 100 bilhões de dólares a paraísos fiscais no exterior. Foi esse o quadro "democrático" que Chávez encontrou em 1998.
"Sem TV, arriscamos nossas vidas"
Assim, é inexplicável, num momento tão delicado para o continente, o descaso com a Venezuela do jornalismo da Globo News, ainda tão jovem e com tão grandes facilidades para trabalhar bem. Inclusive de tempo, num canal 24 horas. E olha que a grande imprensa, mesmo O Globo, valorizou a notícia, com manchetes de capa seguidas ? o Oriente Médio ficou abaixo da dobra. O Globo até deu nome aos bois: chamou o golpe de golpe, e deixou na página de editoriais a torcida das Organizações Globo contra Chávez. A revista Época, porém, manteve a versão da renúncia, assim como o Estado de S.Paulo. Na sexta-feira (12/4), a principal notícia no site da Fiesp era "Hugo Chávez renuncia e militares tomam o poder na Venezuela". A origem: Agência Estado.
Entre os grandes jornais, só não torceu pelo golpe ? um vexame terrível para a mídia de um país que se diz democrático ? a Folha de S.Paulo. De cima do muro em que sempre se coloca nas crises, contextualizou corretamente alguns fatos. Mas nem tudo é perfeito: no sábado, publicou perfil de Chávez produzido pela Associated Press, a agência que mais ataca o presidente. Também informou que a greve ? na verdade, um lockout ? deveu-se a um pacote de medidas "impopulares", sem mostrar que eram impopulares para os empresários: 49 leis sobre reforma agrária, controle da pesca predatória, petróleo etc., que afetavam o setor privado. Ou seja, a Fedecámaras de Carmona (ele mesmo empresário do petróleo), que reúne 350 mil empresas. Segundo analistas, o pacote era light. Lançado por Fernando Henrique, nem causaria escândalo.
Não se justifica então que a Globo News avaliasse que o Oriente Médio merecia a manchete da edição do meio-dia de sexta-feira. Aliás, Argentina e Colômbia fazem companhia à Venezuela na grade de desprezos da emissora. A cobertura da crise argentina nos chega pelos olhos do FMI e do mercado; a convulsão colombiana, pelo visor das agências antidrogas americanas. O "índice da dor-país", como chamou a argentina Silvia Bleichmar o sofrimento dos povos, não comove a Globo News. Uma pena.
Duas ou três coisas a comentar ainda sobre a Globo News, uma positiva e várias constrangedoras. A primeira: as edições extras sobre a prisão de Carmona e a posse do vice de Chávez na noite de sábado. A emissora jogou para o alto a programação e noticiou as novidades, além de manter as informações rolando no pé da tela.
No Painel de sábado à noite, montado às pressas com três acadêmicos, um constrangimento: o veterano jornalista William Waack não escondia sua aversão por Chávez, e sorria ao dizer que o presidente tinha sido "varrido" pelas "ruas". Também foi constrangedor ver a manchete da edição das duas da tarde de domingo do Em cima da hora: Condoleezza Rice, a conselheira de Bush para assuntos de segurança, pedia a Chávez para não perseguir os golpistas. Que coisa esquisita, o recadinho dos EUA ganhar manchete…
As demais estranhezas partiram da correspondente em Caracas. Nem cito o nome, em sinal de consideração. Nesta mesma edição das 14h ela disse: "A madrugada foi tumultuada pelo retorno de Hugo Chávez à Presidência." Sem comentários. Pior mesmo foi sua entrada ao vivo, por telefone, no Em cima da hora da meia-noite de sábado. "Cortaram o sinal da TV, não temos como ver as imagens, tivemos que vir para o centro, com grande risco para nossas vidas." O âncora Guto Abranches tentou várias vezes cortar sua fala. Afinal, era a primeira vez que um correspondente confessava no ar que faz suas matérias pela TV.