RAYMUNDO FAORO (1925-2003)
Lida por sete milhões de pessoas, a maior revista de informações do país, a quinta maior do mundo, Veja concedeu ao falecimento, aos 78 anos, de Raymundo Faoro, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, um acanhado registro na coluna de necrológio (edição n? 1.803, 21/5/03, pág. 97). Num universo de gente que brilha por circunstâncias, acasos e qualidades inatas (e freqüentemente maltratadas), o perfil de Faoro não permitiria enquadrá-lo como um dos heróis de Veja.
O advogado que morreu em 14 de maio, porém, foi um dos principais personagens da fase de transição até o retorno do Brasil à democracia, depois de 19 anos de ditadura militar. O elegante cidadão de Vacaria, no Rio Grande do Sul, harmonioso mesmo em suas dimensões de jogador de basquete, assumiu naturalmente um papel de destaque. Não o buscou: foi procurado para desempenhar sua função. Foi atraído e atraiu por seu magnetismo pessoal, sem precisar forçar nada, sem gritar nem carregar nas tintas.
O que mais importava em Raymundo Faoro era a dimensão que ele tinha do valor dos símbolos na vida humana. Só tem essa percepção quem penetra no mundo dos conceitos. Para adquirir o entendimento conceitual é preciso absorver o legado intelectual da humanidade, o que cada geração produziu e transmitiu de perene às gerações seguintes. Era em sua biblioteca que Faoro se achava em seu ambiente natural, entre pares e iguais, dialogando com a história. Dessa conversa com os clássicos do pensamento ele próprio já surgiu clássico na sociologia com Os donos do poder, publicado em 1958, quando Faoro tinha apenas 33 anos.
É um livro tão desconcertante quanto Casa grande & senzala, de Gilberto Freire, ou Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, que têm sido comparados a ele. Não podem ser enquadrados rigidamente (e muito menos ainda satisfatoriamente) em qualquer uma das disciplinas das ciências sociais isoladamente. Cabem em todas, usando o que têm a oferecer, e as ultrapassam, indiferentes às classificações metodológicas. São, na verdade, ensaios de interpretação. Partindo de um mote, tomam-no como impulso para apresentar sua visão do país, uma verdadeira weltanschaaung.
Não concordo que esse tipo de suma se reduza à trilogia. Temos mais desse insight, bem caro à tradição inglesa, exemplos mais numerosos do que permite nosso sentimento de inferioridade e autocomiseração. Seus autores conhecem e dominam a língua. Escrevem com clareza e correção. Alguns, com toques de verdadeira literatura, da melhor, sem distinção entre prosa e verso. Todos, com inusual confiança no próprio taco. Como é que esses intelectuais, com idades que mal haviam passado dos 20 anos ou entrado nos 30, possuíam um conhecimento tão íntimo deste Brasil barroco e racional, arcaico e moderno, jovem e velho?
Não era porque o tinham palmilhado território por território. Mas porque o haviam encontrado nas transversais das grandes abstrações humanas, naquele tipo de teoria que, refinada, chega a arquétipos e tipos ideais, modelos e teleologia, abrangente e localista, universal e específica. Todos eram cultos, argutos, inventivos. Raymundo Faoro exumou o patronato brasileiro modelando-o por Max Weber e seu conceito de patrimonialismo, mais heurístico do que a teoria de classes (com seu inelutável conflito) do outro alemão, mais otimista, Karl Marx. Marx reconstituiu a anatomia e a genealogia do capitalismo no olho do furacão, em confortável poltrona do Museu Britânico (que ainda está lá, seduzindo os crentes da osmose, ainda que à dérnière). Weber vinha da Prússia, dos junkers. Estava mais perto de nós, que somos periferia e não centro, no sertão da dominância.
Desmemoriados e tolos
Veja foi o cúmulo do maltrato a esse grande brasileiro, que estava na hora certa, com a linguagem certa e a biografia certa quando o general Ernesto Geisel, imaginando-se algo entre Bismarck e Ludendorff (mais afim com Hindenburg, porém), andou à cata de interlocutor, quando formava seu governo, no Rio de Janeiro, para seu projeto da distensão lenta, gradual e segura. Encontrou, do outro lado do Largo da Misericórdia, um homem que não abria mão da anistia ampla, total e irrestrita, mas respeitava quem tivesse uma visão de mundo na cabeça para dialogar (e, se fosse o caso, negociar).
Não sou e nunca fui um fã do projeto de Geisel ou do próprio general. Grandioso demais para ser de carne e osso, biografando-se antes de ter vivido, o general Geisel podia ser seduzido por satélites menores, porém sagazes, como Esmeraldo Barreto, Heitor Aquino, Shigeaki Ueki ou mesmo Golbery do Couto e Silva. Mas foi o único dos presidentes militares, depois de Castelo Branco, que não pensou apenas em si e nas suas extensões. Ou que pensou antes de fazer. Havia uma certa grandeza naqueles tempos difíceis, um tom de drama e tragédia que antecederia, como sempre nos alerta o bardo Shakespeare, a comédia que viria depois, ou a farsa que a sucederia, nos novos tempos (não tão novos assim).
Por falar em teatro: era instrutivo acompanhar as palavras, os gestos, os movimentos e os silêncios dos personagens que naquele momento desafiavam a linha-dura militar e os radicais de esquerda na montagem de uma saída menos traumática para o fim-do-túnel a que os condottieri castrenses nos levaram.
Todos entendiam de símbolos. Falavam tanto pelo que diziam quanto pelo que silenciavam. Quem partilhasse suas referências saberia para onde estavam indo e o que conduziam. Seguraram o andor que carregava um santo de barro puro, em meio aos sacolejos. Fizeram o que a história deles esperava. Não é sua culpa se, quando se vão, os que ficam são tão desmemoriados e tolos quanto os editores desta requintada vacuidade multicolorida a que a querida Veja de outros tempos se reduziu.
(*) Jornalista, editor do Jornal Pessoal, de Belém, PA