NOTAS DE UM LEITOR
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Luiz Weis
As tragédias comovem o mundo na proporção direta da publicidade que têm. Eduardo Galeano, Folha de S.Paulo, 13/4/03, pág. A 31
A guerra no Iraque deu razão a todos quantos a ela se opuseram por razões humanitárias, recusando a perversa aritmética de que mais iraquianos deixarão de morrer porque Saddam foi eliminado do que morreram na operação para eliminá-lo ? ou a contabilidade absurda segundo a qual o número de vítimas civis foi apenas uma fração do que teria sido se as forças de Saddam tivessem conseguido engajar as tropas americanas nos previstos combates rua a rua, casa a casa, que transformariam Bagdá na Stalingrado do Oriente Médio.
"Essa guerra não valeu o dedo de uma criança", concluiu Julian Barnes no Guardian de Londres (11/4). Se assim é, os jornalistas, pelo menos os que acreditam que o seu ofício deve se pautar pelos valores da ética humanista, têm de se perguntar em que medida o seu trabalho permitiu que o público visse a guerra pelo seu ângulo mais brutal e, em última análise, definidor: o do morticínio dos não-combatentes. Ou, parafraseando o uruguaio Eduardo Galeano, se a tragédia iraquiana teve a merecida publicidade.
Já se sabe, e não surpreendeu ninguém, que o que os americanos, na sua esmagadora maioria, retiveram essencialmente da invasão foi a imagem da derrubada da estátua de Saddam numa praça do centro de Bagdá. O mesmo vale para os incontáveis milhões de habitantes de todos os outros países, como o Brasil, cujas emissoras de TV aberta repassavam as imagens captadas, quando não também editadas, pelas redes dos Estados Unidos.
Cenas como a da estátua são "pornografia emocional", para usar, em outro contexto, uma expressão do editor do New York Times Book Review, Charles McGrath ? "momentos carregados de sentimento, mas quase vazios de conteúdo". Ele escreveu que, à exceção da al-Jazira, as redes de televisão preferiram ignorar "não apenas as baixas, mas também o medo, o pânico, a confusão e a estupidez que constituem o verdadeiro tecido da guerra".
Acidente ou assassinato?
Uma novidade na cobertura da campanha do Iraque foi a dos jornalistas embedded, embutidos, incrustados, como se queira, nas tropas invasoras. Para o personal trainer político de George W. Bush, o guru Karl Rove, isso "ajudou o público a ver a realidade das coisas como nunca antes", o que só pode ser levado a sério se se achar que "a realidade das coisas" é apenas o som e a fúria de uma batalha ? complementados, naturalmente, pelos briefings dos porta-vozes do Comando Central, no Catar, general Vincent Brooks, e do Pentágono, em Washington, Torie Clarke.
A propósito, essa indomável megera do Departamento de Defesa foi uma atração (mórbida) à parte. Quando lhe pediram que comentasse o fato de que as quatro superbombas lançadas no dia 7 sobre um restaurante de Bagdá onde estariam Saddam e seus filhos acertaram, isso sim, três casas vizinhas, reduzidas a escombros, com um número indeterminado de mortos, ela disparou, de bate-pronto: "Não acho que isso importe muito. Eu não estou perdendo meu sono tentando imaginar se ele estava lá."
Sim, a TV mostrou, mais de uma vez, iraquianos em pranto desesperado pela morte de seus familiares nos sucessivos episódios de "dano colateral" provocados por mísseis em bairros residenciais de Bagdá ? e o porta-voz do Comando dizendo calmamente que os fatos seriam apurados no seu devido tempo. A TV também mostrou a seqüência horripilante de um carro que não parou em um posto de controle americano e foi destruído a rajadas de metralhadora que não deixaram ninguém respirando no seu interior.
Mas era preciso ler os jornais para acompanhar "ao vivo" as barbaridades da Batalha de Bagdá ? aquela que foi sem nunca ter sido. E no Brasil, salvo engano, a Folha de S.Paulo foi que deu mais destaque às matanças de civis, enquanto O Estado de S.Paulo, por exemplo, com abundância de mapas e infográficos, se preocupava sobretudo com a guerra-guerra propriamente dita.
O Estadão só transbordou no tratamento dado à morte de três jornalistas ? um espanhol da TV Telecinco e um ucraniano da Reuters, ambos no Hotel Palestine, e um jordaniano da al-Jazira, no escritório da emissora ? no dia 8/4. Em "letras garrafais", como se dizia, anunciou, na dupla central do caderno da guerra: "Vítima do dia: a imprensa", com imagens (da TV France 3) do ataque ao hotel, da câmara destruída do cinegrafista espanhol sobre o chão ensangüentado e da remoção de um ferido.
A Folha, em compensação publicou o testemunho do correspondente Robert Fisk, do Independent, de Londres, que não deixa dúvida alguma sobre a resposta verdadeira à sua própria pergunta: "É possível acreditar que isso tenha sido um acidente? Ou é possível que a palavra certa para as mortes decorrentes desses ataques seja assassinato?".
"Novo século americano"
Fisk, um veterano do mundo árabe, cujas matérias a Folha costuma publicar com freqüência, escreveu uma das três reportagens mais devastadoras que este jornalista leu sobre a catástrofe humana em Bagdá. (As outras são da enviada do Guardian, Suzanne Goldenberg, premiada duas vezes seguidas como "Jornalista do Ano" na Inglaterra, mas que os leitores brasileiros em geral desconhecem, como desconhecem ? por decisões editoriais discutíveis da nossa imprensa ou por problemas de direito autoral ? a maior parte dos comentários de excelente qualidade sobre a guerra saídos todo dia nos principais diários do Ocidente.)
De 10/4, a matéria de Fisk (intitulada, no Independent, pesadamente, "Prova final de que a guerra é sobre a falência do espírito humano" e, na Folha, "Visitar hospital é como descer ao inferno") descreve o que ele compara a uma cena da Guerra da Criméia, no Hospital Mártir Adnan Khairallah. O fecho: "Uma criança pequena (…) estava jogada em um cobertor. Ela precisou esperar quatro dias por uma operação. Os seus olhos pareciam mortos. Não tive coragem de perguntar à mãe se era um menino ou uma menina".
Os textos de Suzanne combinam informação e qualidade literária: "O homem tinha sido jogado perto das latas de lixo lá atrás, o sangue encharcando a sua camisa xadrez. Um servente, que vinha enterrando corpos inchados numa vala comum no terreno do hospital, recitou os últimos ritos muçulmanos. ?Morto, morto, ele está morto, o que podemos fazer?? e voltou para a sua pá. Mas o homem respirava, com movimentos lentos e trabalhosos, e a sua carne estava quente".
Em outra matéria: "O abraço da morte deu aos corpos intimidades que jamais conheceram em vida. Estranhos, ensangüentados e escurecidos, passavam os braços à volta dos outros, em abraços apertados. A mão de um homem ergueu-se, desencarnada, debaixo do monte de cadáveres para repousar na barriga de um homem perto do topo. Uma pedra azul em seu anel faiscava enquanto um servente abria a porta da morgue, deixando entrar a luz do dia e o som dos soluços de um homem no frio silêncio do seu interior".
Reportagens com esse enfoque e esse padrão foram o que mais faltou na cobertura "brasileira" da guerra de Bush para sujeitar o mapa político do Oriente Médio ao "projeto para o novo século americano" ? os exclusivos interesses estratégicos e econômicos da hiperpotência.
(*) "Guerra e humanidade" é o título em português dado à trilogia Ningen no joken, de 9 horas de duração, sobre a Segunda Guerra Mundial, filmada entre 1959 e 1961 pelo diretor japonês Masaki Kobayashi e considerada uma das mais fortes obras pacifistas da história do cinema.