A associação do pão branco com mais refinado, de luxo, de ricos, sugere uma abordagem de longa duração, conforme o historiador Fernand Braudel. Em Poitiers, em 1362, havia quatro variedades de pão: pão mole com sal, pão mole sem sal, pão de rafleur e pão reboulet. O pão mole, com ou sem sal, era o pão branco de qualidade superior, feito de farinha peneirada. Dependendo do preço, eram autorizadas mais ou menos variedades de pão, de três a sete categorias, abrindo-se o leque para o mau pão. No caso do pão, escreveu Braudel, a regra é a desigualdade social. O pão branco continuou sendo uma raridade, um luxo, feito para os ricos, pelo menos até o período entre 1750 e 1850, quando o trigo se sobrepôs aos outros cereais e o pão branco, livre de parte do farelo, se disseminou.
"A trindade trigo, farinha, pão, percorre a história da Europa. É a principal preocupação das cidades, dos Estados, dos mercadores, dos homens para quem viver é ‘morder o seu pão’, Personagem invasor, o pão, nas correspondências do tempo, tem sido sempre a vedete. Mal há uma elevação do preço, tudo começa a agitar-se e a tempestade ameaça", escreveu Fernand Braudel. Em Nápoles, grandes exportações de cereal para a Espanha desencadearam a fome. Logo seria preciso comer pão di castagni e legumi, feito com castanhas e legumes frescos. O mercador açambarcador, Gio. Vicenzo Storaci, respondeu ao povo revoltado que não queria comer este pão: ‘comam pedra’. O povo napolitano avançou sobre ele, matou-o e o arrastou pela cidade, o corpo mutilado, depois esquartejado. O vice-rei, por sua vez, mandou enforcar e esquartejar 37 homens e enviou cem para as galés. "Verificam-se milhares de sublevações semelhantes entre o século XV e o século XVIII. É assim, aliás, que começa a Revolução Francesa", escreveu Braudel.
Mais do que qualquer outro componente da alimentação, dos hábitos do cotidiano, o pão desperta sensibilidades, revoltas e desencadeia revoluções. Não é preciso haver fome – o que poderia levar a uma revolução –; basta uma pequena alteração de sabor para insuflar os ânimos do povo que percebe nisso a tirania e o desprezo das autoridades, que vê ampliar-se o leque das desigualdades sociais.
Um dado extemporâneo a esta pesquisa pode ajudar a entender esta centralidade na memória de guerra em São Paulo das filas e da falta do pão. Pesquisa realizada em 1997 pelo IBGE mostra que o pão francês é o principal alimento da população brasileira, constituindo 7,2% das despesas alimentares das famílias do país. Isto tornava o pão francês o maior mercado alimentar do país em 1997.
Não foi a guerra que provocou a falta relativa de pão em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. Foi a falta de pão e as filas que trouxeram a sensação de guerra, o efeito de guerra, ao cotidiano de São Paulo. Foi o alarme da escassez de um produto símbolo da alimentação, de religiosos hábitos cotidianos ("pai nosso…. o pão nosso de cada dia nos dai hoje", reza a oração), que trouxe à cidade de São Paulo a sensação de guerra. Foi o investimento mobilizatório em torno do pão de guerra que fez criar efeitos de mobilização, e sua contrapartida, de recusa à mobilização, de recusa à intervenção do Estado em uma esfera do cotidiano considerada inviolável.
Menos de um ano depois de terminada a guerra, no Carnaval de 1946, em meio à campanha queremista, Ataulfo Alves cantou:
Nós queremos gozar liberdade
Liberdade de cantar e falar
Nós queremos escola pros filhos
E mais casas pro povo morar
Nós queremos
Leite, carne e pão
Nós queremos
Açúcar sem cartão.
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