Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Guilherme Fiuza

A DITADURA DERROTADA

"Geisel, o último presidente", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 19/11/2003

"Governar está fora de moda. O presidente da República precisa ter um bom marketeiro, um bom aliciador de deputados, um bom analista de pesquisas de opinião, um bom personal trainer. A solidão do poder, no sentido da responsabilidade última e indelegável encerrada num único homem, está em extinção. Figueiredo e Collor desbundaram no culto a si mesmos, Sarney e Itamar entregaram o leme a Deus, Fernando Henrique entregou-o a Malan (e cuidou das arestas). O último presidente brasileiro que assumiu para valer a tarefa de governar – no sentido amplo de liderar e administrar – foi Ernesto Geisel.

O que diria o general da Abertura sobre os critérios usados na montagem do frondoso e ecumênico ministério do atual governo? Não diria nada – nem ele, nem sua memória – porque no momento encontra-se, por assim dizer, censurado pela opinião pública. Ninguém quer saber o que Geisel acharia de nada, depois da revelação de que ele apoiava a matança de opositores do regime militar. Antes de fechar a tampa do seu segundo caixão, porém, o Brasil deveria examinar se não seria um desperdício historiográfico espremer o verbete do ex-presidente na classificação de assassino. E, mais do que isso, notar que essa própria classificação pode ser bastante discutível.

No diálogo que chocou a todos, publicado no livro ?Ilusões armadas?, de Elio Gaspari, Geisel dizia ao general Dale Coutinho que ?esse negócio de matar é uma barbaridade, mas tem que ser?. Uma frase tão clara e contundente que não permitiu às boas consciências um segundo sequer de hesitação: o presidente que fez a distensão política e preparou a anistia podia, afinal, ser posto lado a lado na história com seu antecessor Emílio Médici, símbolo da face mais brutal da ditadura. Com uma breve licença das consciências escrupulosas e vigilantes, porém, se poderia ao menos iniciar uma investigação sobre a realidade que cercava aquela frase.

A conversa com Dale Coutinho se deu antes da posse de Geisel na presidência, e portanto da nomeação do general como seu ministro do Exército. Nessa fase, Geisel estava em conversações intensas com aqueles que viriam a compor o seu ministério. Além de conhecê-los melhor, queria começar a sedimentar um clima de confiança para com seus futuros auxiliares diretos. A escolha de Coutinho (que morreria no cargo) devia-se aos seus atributos militares, mas havia ressalvas no plano político. Geisel considerava-o um tanto radical, mas acreditava que seria capaz de neutralizar esse radicalismo. ?Era um ministro que eu poderia, sem dificuldade, levar para minhas posições?, disse o ex-presidente a Maria Celina D?Araújo e Celso Castro, do CPDOC.

Quem pode afirmar que nesta e em outras conversas do gênero, Geisel não estava fazendo seu jogo político com a direita mais radical, exatamente para ?levá-la para suas posições?? Não foi ele o homem que desarmou politicamente a extrema direita dentro do regime militar, inclusive com a famosa demissão do general golpista Sylvio Frota do Ministério do Exército? Por que achar que as frases reveladas contrariam a biografia do ex-presidente, e não que a sua biografia é pré-requisito para a análise das frases? Pode ser até que ainda venha a surgir um filme de Geisel mandando executar alguém, mas por enquanto seria saudável evitar o atropelamento da história.

Se não sumir sob o carimbo de assassino, Geisel pode até servir de inspiração para Lula, descontados os inconvenientes notórios. O quarto presidente do regime militar tinha obsessão pelo ofício de governar, e devotava-se quase religiosamente aos instrumentos poderosos que o presidencialismo dispunha – e ainda dispõe – ao seu chefe supremo. Montou um ministério tecnicamente forte, onde despontavam nomes como João Paulo dos Reis Veloso, Severo Gomes, Golbery do Couto e Silva e Mário Henrique Simonsen, e estabeleceu uma mecânica em que as decisões de cada pasta tinham que estar sincronizadas entre si. Criou os Conselhos de Desenvolvimento (nada a ver com essa vitrine de inutilidades presidida por Tarso Genro no atual governo) e encontrou a única fórmula capaz de garantir que o seu ministério funcionasse realmente como uma equipe: tratou de compreender exatamente os problemas e prioridades de cada ministro, e assumiu, pessoalmente, a arbitragem dos conflitos e a coordenação das ações. Acusado de centralizador, exerceu até a última gota a autoridade que o cargo lhe conferia – o que, no Brasil, às vezes é pecado.

Geisel foi o presidente que trocou os despachos com seus ministros de 15 minutos, a qualquer hora, para uma hora a cada quinze dias (fora as chamadas de emergência). Era capaz de passar um fim de semana estudando os temas que seriam tratados num desses despachos na semana seguinte. Em lugar do rame-rame picotado e improdutivo, queria tempo para enxergar o que o ministro estava realmente fazendo – ou não fazendo. Pode-se imaginar o que a ministra Benedita da Silva teria a dizer durante uma hora a sós com o presidente Lula (não valendo ler a Bíblia). E se poderia tentar imaginar, com a permissão dos caçadores de bruxas, o que Ernesto Geisel diria de um ministério montado com prazo de validade de seis meses.

Não é difícil presumir a provável resposta do ex-presidente, que talvez fosse uma pergunta: como pode um governo governar, a partir do momento em que o seu chefe anuncia, com seis meses de administração, que o ministério será reformado? Quem pode planejar uma gestão já pensando na hipótese de ter que arrumar as gavetas para a entrada do próximo? Geisel provavelmente diria também a Lula que é suicídio administrativo impor nomeações nas equipes diretas de seus auxiliares, como fez o PT. Seria constrangedor ouvir o ex-presidente de direita ensinando ao presidente de esquerda que os ministros e seus principais auxiliares devem ser livres para escolher suas equipes, criando uma cadeia de confiança – e colhendo os frutos em forma de eficiência. Foi assim que o general fez com seu ministério, que na quase totalidade atravessou o governo do início ao fim.

Quando foi preciso, o general soube demitir ministro forte – o caso Sylvio Frota -, e também é isso que distingue o governante do pajé político. Lula deveria prestar atenção a esse capítulo em especial, de preferência abrindo os olhos em direção ao Ministério da Previdência – criado, aliás, por Ernesto Geisel."

 


"A ditadura edulcorada", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 20/11/2003

"Se Luiz Inácio Lula da Silva tem muito a aprender com o ditador (ou ?presidente do governo militar?) Ernesto Geisel, Guilherme Fiuza, meu colega aqui de NoMínimo e autor da sugestão ao presidente, tem muito a aprender com o jornalista Elio Gaspari, que em ?A ditadura derrotada? revela a alma de verdugo do penúltimo dos generais que mandaram no país. A começar por saber distinguir, na prática, opinião de diatribe, frase de efeito de argumento, pesquisa de citação vadia. Seria um bom começo.

Em sua coluna, Fiuza sugere que, antes que se feche a tampa ?do segundo caixão? sobre um dos últimos ditadores brasileiros, reconsideremos tudo à luz do que, para ele, o colunista, é indício de maestria política: em conversa, Geisel concedeu que matar era necessário só de brincadeirinha, para atrair um possível aliado, sondar suas bases políticas – e depois manipulá-las para o caminho do bem comum, o que estaria provado pelo destemor do general em demitir o general Sylvio Frota ou seu empenho em criar o Ministério da Previdência, hoje em situação lamentável. Nesta receita, por uma mentira conveniente e uma obviedade ululante cria-se o grande estadista que Lula não consegue ser com suas sucessivas trapalhadas políticas.

Certamente Fiuza leu com detalhe e diligência as quase 500 páginas de ?A ditadura derrotada? mas, curiosamente, constrói uma coluna e um argumento sobre o que, do livro, foi divulgado pela imprensa, temperando isso com uma aspa vadia e preguiçosa do depoimento prestado pelo ditador à FGV. Critica o primarismo com que se pespega numa reputação o rótulo de assassino, mas esquece de dizer que esta é apenas parte da história em que Gaspari se encarrega de, longamente, matizar o personagem.

E aí é que está o ponto. Se a bronca é que Geisel, insultado e ofendido em sua memória, passará para a história como assassino por um primário reducionismo ideológico, Fiuza deveria ter aproveitado sua coluna para desfazer o mal-entendido com argumentos consistentes. Gaspari não o faz porque não está preocupado com ataque ou defesa de quem quer que seja: seu compromisso é com o bom jornalismo, não o da imparcialidade quimérica e impossível, mas o do parti pris responsável, que parte de idéias e hipóteses apenas para ordenar os fatos, abundantes, caudalosos, que se encarregam de reforçar ou suavizar esta idéia.

Tão detestável quanto a cegueira ideológica que Fiuza denuncia em sua coluna é o revisionismo barato que a pauta. E não estamos falando aqui de um caso isolado, de uma aberração – ou de uma questão pessoal. Toda uma linhagem de colunistas, no Brasil e no exterior, tem procurado mostrar independência de opinião a partir da defesa do indefensável. Polêmica passou a ser sinônimo de afirmação irresponsável, de rompante pseudo-racionalista para, com a tranqüilidade do presente, enxovalhar o passado. É este o argumento fundador das criticas mais correntes à esquerda e às transformações, boas e más, que ela sofreu nos últimos anos: todo impulso de mudança do passado é ingenuidade do presente; a força democrática de ontem também parece inevitavelmente autoritária hoje, como se o stalinismo fosse o destino biológico de cada leninismo.

Ao lançar a suspeita de um ataque ideológico a Geisel, Fiuza lança a armadilha das críticas que se façam a ele, como esta aliás: quem levanta a voz está, irreversivelmente, comprometido ideologicamente com a cega defesa do governo Lula – uma hipótese que, sinceramente, não combina com minha insatisfação pessoal com o candidato em que votei, mas juro que ainda estou longe de ter saudades de Geisel.

Esta escola de colunismo é a do fiscal das obras prontas, aquele que chega na obra depois que a peãozada já deu o suor e, em vez de tentar entender os erros e apontar os caminhos, sai listando os defeitos e lamentando a seqüência de ?equívocos imperdoáveis? que levaram à janela mais torta, à porta fora de medida. Este fiscal não precisa nem mesmo de capacete para se defender, pois quando chega, o prédio já está em uso e dificilmente despencará algo em sua cabeça. É o mar tranqüilo do revisionismo numa era que, segundo o simplista Francis Fukuyama, a História e seus sobressaltos são página virada. Nesta baía, indignação é sinônimo de ingenuidade e a sensatez se traduz pela rejeição de todo movimento que, no passado ou no presente, esteve ou está relacionado com qualquer tipo de ruptura.

No mundo das certezas apresentado por Fiuza, a opinião divergente da sua é censura, numa inversão total de qualquer valor por conta do bom efeito retórico. É, de certa forma, fórmula eficiente, pois provoca respostas como esta e e-mails que lembram muito as conversas de táxi e botequim em que se lamenta o tempos bons da ditadura e os desmandos da cambada comunista. De uma forma ou de outra, a defesa do indefensável amplifica vozes trêmulas e limpa delas vacilações de toda espécie. No lugar da força, o estrondo.

Por ingenuidade ou autoritarismo, ainda prefiro um presidente imperfeito (como o foi FH e está sendo Lula) do que um ditador brilhante. A obra, a meu ver, ainda está sendo feita."

 

20 ANOS DAS DIRETAS JÁ

"Defesa das diretas fixou identidade da Folha", copyright Folha de S. Paulo, 23/11/2003

"Oito meses antes da festa-comício do Pacaembu, quando ainda eram incipientes na sociedade civil as manifestações de adesão ao então recente projeto de emenda constitucional propondo eleições diretas, a Folha decidiu dar o seu primeiro passo em direção à campanha que, a seguir, seria indissociável da atuação do jornal.

Foi um passo discreto, mas que sinalizou claramente o caminho. ?O êxito da tese das eleições diretas será tão menos improvável quanto mais firme e abertamente ela seja sustentada pelos setores da opinião pública que lhe são favoráveis?, afirmava o editorial de 27 de março de 1983.

Importava, pois, ganhar as ruas. ?Na atual situação de graves dificuldades econômicas e demandas sociais insatisfeitas, tal forma de escolha [eleições diretas] se apresenta como a mais apta a estabelecer vínculos sólidos e de confiança entre governo e sociedade?, sustentava o jornal.

Se a maioria das pessoas apoiava a idéia das diretas, como revelou pesquisa publicada pela Folha em 22 de abril, essa vontade ainda não havia se convertido em mobilização. Nos meses seguintes, salvo articulações de gabinete e um ato público isolado que o PMDB promoveu em Goiânia, em 15 de junho, não ocorreram manifestações relevantes.

A cobertura jornalística do movimento pelas diretas ganhou maior visibilidade a partir do momento em que o comando suprapartidário da campanha marcou a data da manifestação no Pacaembu: 27 de novembro. Nas edições que antecederam o evento e na do próprio domingo, quando ele foi realizado, o jornal publicou manchetes e editoriais que buscavam fixar o tema como prioridade da agenda nacional.

O comício ficou aquém das expectativas. E a Folha, já no editorial do dia seguinte, identificava os erros: ?O viés amadorista e por vezes ainda sectário que persiste no discurso do PT, o que dificulta o entendimento com outras forças oposicionistas; o caráter hesitante e reticente do apoio oferecido pelo PMDB ao evento, o que transforma sua adesão em mero respaldo formal e não em compromisso concreto com o trabalho de base; e o silêncio significativo de boa parte da imprensa, em especial setores do rádio e TV, que não se empenharam em dar a cobertura que a importância do ato merecia?.

O peemedebista Franco Montoro, governador de São Paulo, que no dia da festa publicou um artigo na Folha conclamando a população a ir à praça, não compareceu. Nem ele nem outros governadores de oposição que tinham acabado de lançar um manifesto a favor das diretas. O editorial os alfinetou: ?O receio de ser criticado em praça pública é humano, mas não se deve justificar a omissão daqueles que se identificam com a perspectiva democrática?.

O texto concluía com uma nota otimista: ?O ato público do Pacaembu representou, sem dúvida, uma nova etapa na luta democrática?. A realidade, porém, era que, após o início vacilante, a oposição se mostrava incapaz de traduzir o anseio da sociedade em alternativa política concreta.

Letargia vergonhosa

Assistia-se a uma ?letargia vergonhosa?, disse a Folha em editorial de primeira página em 18 de dezembro. A cobrança era dura: ?Tamanha incapacidade de criar fatos políticos que expressem a irreversibilidade das diretas deve ser apontada como uma verdadeira traição aos respectivos programas partidários e à vontade transparente da opinião pública?.

Em janeiro de 1984, o noticiário do jornal passou a identificar os congressistas segundo sua posição em relação à emenda, informando se o político era pró-diretas ou pró-indiretas. Nessa altura, o jornal já estava em plena campanha pró-diretas. Mas falava sozinho; o restante da mídia não o acompanhava. Sintonizada com a maioria do eleitorado na busca pelo reestabelecimento da democracia plena no país, a Folha aprofundou suas transformações editoriais de meados dos anos 70, quando apostou no projeto de abertura política do governo Geisel, aparelhando-se para ocupar o espaço que se apresentava.

A decisão de entrar na campanha pelas diretas, tomada pela direção do jornal, fora defendida por Otavio Frias Filho, então secretário do Conselho Editorial. Ao mesmo tempo, chegou às mãos de Octavio Frias de Oliveira, publisher da Folha, uma proposta por escrito, com teor semelhante, do repórter Ricardo Kotscho (hoje assessor de imprensa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva).

Com o primeiro grande comício, o da praça da Sé, em São Paulo, no dia 25 de janeiro, aniversário da cidade, a campanha não podia ser mais ignorada pela mídia. Os comícios se multiplicaram pelas grandes cidades e o jornal mobilizou recursos para fazer a cobertura mais extensiva.

No dia 12 de fevereiro, a Folha publica o editorial ?Amarelo, sim?, defendendo o uso da cor amarela como símbolo da campanha, para ?afastar corajosamente as nuances do espectro político para abraçar apenas uma delas, cristalina como a luz do dia, que dispensa apresentações?. Dois dias depois, os presidentes do PT, PMDB e PDT lançam a campanha ?Use Amarelo pelas Diretas?.

A partir do dia 18 de abril, o jornal passa a ser publicado com uma faixa amarela com a frase: ?Use amarelo pelas diretas-já?. No dia 22, a Folha publicou o número dos telefones de todos os congressistas, ?a fim de que os leitores tenham a oportunidade de se comunicar diretamente com os parlamentares, manifestando a eles seu desejo de que a emenda Dante de Oliveira seja aprovada?.

Quando o Congresso rejeitou a emenda, a Folha mais uma vez captou o sentimento popular. ?A NAÇÃO FRUSTRADA!? foi a manchete de 26 de abril. No lugar da faixa amarela (?Use amarelo pelas diretas-já?), o jornal colocou uma tarja preta (?Use preto pelo Congresso Nacional?). Na primeira página, a lista com os nomes dos responsáveis pela derrota. Ao lado, o editorial os chamava de ?fiapos de homens públicos, fósseis da ditadura?.

Oscar Pilagallo, jornalista, é autor de ?O Brasil em Sobressalto – 80 Anos de História Contados pela Folha? (Publifolha)."