Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Guilherme Fiuza

VELOX, COUSA DE DOUDO

“Na alfândega da internet”, copyright No mínimo (http://nominimo.ibest.com.br), 7/1/04

“Globalização, livre circulação de idéias, informação e dinheiro ? tudo isso pode ser utopia inalcançável se uma pequena dose de estupidez humana atravessar o caminho na hora e no lugar certos (ou melhor, errados). Um neófito juiz matogrossense determina uma vingança primária contra um povo amigo ? seriamente ameaçado pelo terrorismo ? e o país aplaude a ?reciprocidade? mais assimétrica que a semântica já viu. Em nome de uma suposta rivalidade entre Estados, cria-se um entrave à liberdade de pessoas. Por mais absurdos que sejam, os carimbos, as taxas e os guichês sempre nascem cheios de razão. A burocracia é absolutamente lógica. E vai fincando suas embaixadas no território inventado justamente para extinguir barreiras: a banda larga da internet.

Um assinante do produto Velox, no Rio de Janeiro, que apenas queria manter-se online com o mundo e pagar regiamente por isso, viu-se de repente retido numa espécie de alfândega intransponível. Nem voltar atrás era possível. No meio da ?infovia? mais veloz de todas, viu-se confinado numa espécie de cárcere privado do consumidor. Tudo começou quando o tal usuário mudou-se de residência, e pretendeu transferir sua assinatura do serviço de banda larga para o novo endereço. Em poucas horas, ele estaria mais embaraçado do que turista americano que desembarca no aeroporto Tom Jobim sonhando com um mergulho em Copacabana.

A conversa com a moça do 0800 ia bem, até que ela pediu o CPF do titular da linha telefônica à qual o Velox estava ligado (e da qual agora seria transferido). O cliente explicou que a linha estava em nome de uma pessoa já falecida há muito tempo, familiar do locador do imóvel, e que por isso não dispunha desse dado. Inclusive, acrescentou, não precisara fornecer o tal CPF quando assinara o Velox. Nada feito, respondeu a atendente. A transferência só podia ser feita com aquele dado.

O assinante procurou argumentar. Informou que o locador do imóvel, cujo antepassado figurava como titular da linha, estava em viagem ao exterior ? e talvez também não tivesse o número exigido. Àquela altura, quem sabe até a Receita Federal já não o tivesse mais em seus arquivos. Lembrou à atendente que ela tinha em seu computador todos os dados pessoais dele, usuário do serviço: nome, endereço (que correspondia ao da linha telefônica), CPF e até os dados da conta bancária, onde a cobrança era feita por débito automático. Que já recebera técnicos do Velox e assinara ordens de serviço naquele endereço, para aquela linha.

Inútil. Como um robô, a moça do 0800 repetia mecanicamente duas frases: ?É preciso o CPF do titular?, ?É o procedimento da empresa?. Com alguma insistência, o cliente conseguiu ser atendido pelo supervisor da atendente. Ele foi além das duas frases e sugeriu que então fosse levantada a ?documentação? do morto. Perplexo, o cliente lembrou-lhe de que não se tratava de um inventário ou inquérito, mas da transferência de uma simples assinatura de internet. Não conseguindo sensibilizá-lo, informou-lhe então que infelizmente era obrigado a desistir dos serviços daquela empresa. Só aí ficou sabendo: também não tinha o direito de cancelar a assinatura. ?Só com o CPF do titular?, repetiu o autômato.

O assinante perdeu o resto de paciência que resistira até ali. Disse que se a empresa o aceitara como assinante sem o tal CPF, e agora não aceitava o seu desligamento sem esse dado, ele estava sendo constrangido a permanecer pagando por um produto que não desejava consumir. E que isso era contra a lei. Portanto, teria que processar a empresa. Mas logo se deu conta de que estava jogando seus argumentos fora. Do outro, a voz retrucou, imperturbável: ?A assinatura só pode ser cancelada com o CPF do titular da linha.?

Depois de falar com seu advogado e pegar as primeiras orientações, uma amiga que acompanhava sua epopéia surrealista perguntou-lhe se, por acaso, guardara alguma conta telefônica de um ano atrás. Na época, o CPF do assinante ainda vinha inscrito na cobrança. Mesmo que o falecido não tivesse mais CPF, o número poderia ter ficado na conta por inércia ? e isso satisfaria os robôs do Velox. Ele respondeu que não costumava guardar contas antigas, mas prospectou suas mais velhas pilhas de documentos e acabou encontrando a preciosidade: lá estava, legível e absoluto, o número da discórdia.

Mas a impressão de que agora as coisas correriam livres e rápidas, como diz a propaganda da modernidade digital, era falsa. Com o CPF cabalístico na mão, o assinante volta ao 0800 e, já no terceiro atendente (o primeiro serve só para perguntar ?em que posso ajudá-lo?, apesar de precedido por um atendimento eletrônico que já selecionara por demanda), fica sabendo que tem de pagar uma taxa de 120 reais à Telemar pela transferência. Estranha, acha caro e pergunta quanto custa uma assinatura nova. ?32 reais?, responde a voz. Então é melhor cancelar o Velox e assinar de novo? O senhor é quem sabe. A linha vai ser transferida para que bairro?

Só então o cliente se dá conta de que o atendente está providenciando a transferência de sua linha telefônica, e não de sua assinatura de banda larga. ?O senhor não disse que era para transferir o Velox?, defende-se o robô. ?Mas esse 0800 não é o telefone do Velox??, pergunta o cliente. ?Se liguei para o Velox, devo estar interessado em transferir o Velox.? O atendente então responde que tudo bem, a transferência da assinatura da banda larga pode ser feita e é gratuita. Só que não é com ele.

A vítima então é passada para uma atendente com forte sotaque carioca, que pergunta o bom e velho ?em que posso ajudá-lo? e transfere para uma baiana. Esta pergunta de que estado o cliente está falando e ameaça transferi-lo mais uma vez, ao que ele grita, antes que entrasse a musiquinha de espera: ?Ao menos explique tudo que você já sabe sobre o meu pedido à próxima atendente, para não termos que começar do zero pela enésima vez?. A baiana diz cantando que ele não se preocupe, a ficha será toda transposta para o novo estágio do atendimento.

Após aproximadamente cinco minutos de vinhetas de espera (provavelmente devido a uma explicação minuciosa do pedido), atende uma carioca perguntando se o assinante ?deseja estar solicitando? a tal transferência. Ele responde que não apenas deseja, como está solicitando. Ela então informa que é preciso pagar uma taxa de 120 reais à Telemar e…

Nesse ponto, o assinante percebe que está num labirinto. E como em todo labirinto, não adianta perseguir sofregamente a saída, sob pena de perder cada vez mais as referências e voltar sempre ao mesmo ponto. Se nenhum homem é uma ilha, cada robô por trás daquele 0800 é. E estarão todos sempre perguntando de onde o cliente veio e para onde vai. Pensando bem, é a pergunta crucial da filosofia. Confortado por esta constatação profunda, o cliente resignou-se e desligou o telefone.”

 

O QUE PESA NO BOLSO

“Internet e TV já pesam mais que arroz e feijão”, copyright O Globo, 9/1/04

“As famílias brasileiras estão gastando mais com internet e TV por assinatura do que com arroz e feijão. É o que registra a Pesquisa sobre Orçamentos Familiares (POF 2002-2003), divulgada ontem pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Com a mudança de hábitos do consumidor, o peso das contas com internet e TV por assinatura já soma 1,47% do orçamento. Ou seja, já supera o do arroz e feijão, que ficou em 1,30%.

Outra mudança relevante está no uso do telefone celular pelo brasileiro. Seu peso no grupo serviços públicos de residência saltou de 0,45% para 1,30% em quatro anos. Com isso, é quase comparável à fatia do gás de botijão no orçamento das famílias, que atingiu 1,71%, contra 0,90% na pesquisa anterior (a POF 1999-2000).

Mas foram os aumentos dos alimentos nos supermercados e a disparada dos preços das tarifas ? que entram no grupo habitação ? que mais pesaram no bolso do consumidor. Esses dois grupos já comprometem 59% do orçamento familiar. As pressões maiores vêm das contas com botijão de gás, que subiram 220% desde 1999, energia elétrica (136%) e telefone (75%).

A apuração do período 2002-2003, comparada com a de 1999-2000, registrou aumento de 9% no peso dos gastos com alimentação. Eles passaram de 25,22% para 27,49%, mantendo-se como o segundo grupo de maior peso no orçamento. Só perde para habitação, que abocanha 31,84% da renda do consumidor. Ou seja, de cada cem reais ganhos, R$ 31,84 são aplicados em gastos com habitação, especialmente pagamento de tarifas.

Os gastos extras com internet, TV a cabo e celular tornam a renda do consumidor brasileiro ainda mais apertada. Esse comportamento se reflete na queda dos gastos com saúde e cuidados pessoais: o peso deste grupo caiu de 12,01% para 10,36%, como reflexo do corte de planos de saúde e de medicamentos, mesmo com os preços controlados desde 1999.

O grupo transportes também recuou, de 13,9% para 11,7%. A razão disso, segundo o economista André Bráz, coordenador da FGV, é a retração de compra de carros novos e usados, de combustível e de viagens de passeio.

? Com os gastos maiores em alimentação e habitação, o consumidor reduziu os supérfluos. Cortou também no lazer e livros. Com os preços mais estáveis, esse comportamento pode mudar ? analisou ele.

O aumento nas despesas nos supermercados forçou a dona de casa Vânia Mattos, da Ilha do Governador, a cortar artigos que não considera mais essenciais, como iogurte e presunto. Em casa, ela pressiona as filhas para reduzir a conta de telefone, que saltou de R$ 80 para R$ 130.

? Estou controlando as ligações de celular. A vida não é só comer e falar ao telefone. Quero gastar mais em lazer ? disse Vânia.”

 

SOCIEDADE DO CONHECIMENTO

“Rumo à sociedade do conhecimento”, copyright Valor Econômico, 6/1/04

“Cooperar e compartilhar. Não faz muito, esses dois verbos passaram a dar o tom do uso das tecnologias de informação, como conseqüência da união com as tecnologias de comunicação. Desde então, o mundo ideal das tecnologias da informação e comunicação, as famosas TICs, passou a ser o mundo das redes, da circulação e troca de dados, a tempo e a hora. E nos colocou diante de um enorme desafio: disseminar democraticamente as informações. Utilizá-las para gerar conhecimentos que nos levem à uma sociedade mais justa.

Mês passado, durante a realização da primeira etapa da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em Genebra, esse desafio tornou-se mais evidente. Enquanto delegações nacionais de dezenas de países-membro da Organização das Nações Unidas avançavam pouco nas negociações que levaram à redação da ?Declaração de Princípios? e do ?Plano de Ação?, dezenas de representantes da sociedade civil demonstravam, na prática, caminhos para superação, na exposição paralela ?ITC for Development?. Quase todos baseados na educação, em valores locais e práticas sustentáveis consistentes com a realidade global, e no acesso ao conhecimento para todos os seres humanos. A mensagem explícita? Precisamos construir uma sociedade sem limites ao conhecimento.

Parece utópico demais, idealista demais, especialmente a setores da sociedade pós-industrial que consideram o conhecimento seu principal insumo. Na carta contribuição do Clube de Roma, por ocasião de outra cúpula da ONU ? a Global sobre Desenvolvimento Sustentável ? a questão é abordada de forma bastante pragmática.

?O surgimento de uma sociedade do conhecimento em rede nos próximos 20 ou 30 anos representa uma grande mudança de paradigma desde o modelo industrial dos séculos 19 e 20. Ela pode ser parte da solução de nossos problemas, ou ser parte do problema.

É simplista esperar que a dinâmica do desenvolvimento da tecnologia da informação e da comunicação dentro dos mercados globalizantes contribuirá sozinha para a riqueza geral e para a redução da pobreza.

Com as políticas corretas, ela pode fortalecer e integrar bilhões de pessoas, mesmo nos países mais pobres, oferecendo novo acesso à educação, à informação e ao conhecimento até nas mais remotas regiões e ajudando a erradicar a pobreza e a construir comunidades sustentáveis. Sem eles, pode simplesmente contribuir para os enormes investimentos e para o ?fardo? ambiental e social da industrialização centralizada.?

De fato, o avanço tecnológico acelerado tem permitido o crescimento industrial continuado; mas a lacuna entre os ricos e os pobres tem se acentuado. Na era pós-industrial, abraçamos um modelo produtivo no qual o trabalho físico foi delegado às máquinas e o mental também, aos computadores.

Aos homens coube o desempenho de tarefas para as quais os seres humanos ainda são imbatíveis: ser criativos, ter idéias. Neste cenário, o capital humano ou intelectual sobressaiu. A informação pela informação sucumbiu. Começou a ser considerada inútil sem o conhecimento do ser humano para aplicá-la produtivamente. Nessa sociedade onde as idéias ganharam grande importância, o conhecimento passou a ser o bem mais precioso.

O botão vermelho que acaba de ser apertado alerta para o fato de que o conhecimento precisa ser distribuído para assegurar a construção de uma sociedade mais justa, menos concentradora, mais saudável do ponto de vista econômico e social, que possa proporcionar uma melhor qualidade de vida. Conclama governos, empresas e organizações da sociedade civil para a realização da mais difícil das tarefas: buscar um equilíbrio ? um elo de ouro ? entre as ambições de crescimento da humanidade, a eqüidade social e os limites do uso dos recursos. Não à-toa, os programas de ?responsabilidade social? cresceram em importância nas empresas, chegando mesmo a serem incorporados à gestão dos negócios.

A ?Declaração da Sociedade Civil? entregue ao presidente da cúpula na última reunião plenária, a qual o Comitê para Democratização da Informática (CDI) apóia, defende que a sociedade do conhecimento em rede tem que integrar a riqueza do conhecimento e as práticas regionais. Que a sociedade global do futuro tem que se basear em comunidades locais assentadas em sua herança cultural, que participem da sociedade do conhecimento.

Ao abrir a conferência, em seu discurso oficial, o presidente da ONU, Kofi Annan, lembrou a todos os delegados que ?estamos atravessando uma transformação histórica na maneira que nós vivemos, aprendemos, trabalhamos, comunicamos e fazemos o negócio?. Que não devemos atravessá-la passivamente, mas como fabricantes, construtores do nosso próprio destino. ?A tecnologia produziu a era da informação?, disse Annan. ?Agora é nossa tarefa construir a sociedade da informação.? Vou além! Precisamos, desde já, construir as bases da sociedade do conhecimento.

A jornada rumo à sociedade do conhecimento não começa em Genebra nem termina na Tunísia. Precisa ser planejada no âmbito local, regional e nacional. Por meio de ações como as que promovemos em nossas Escolas de Informática e Cidadania (EICs) e nos muitos projetos de inclusão digital Brasil afora. Todos valorosos em seus propósitos, mas pouco dedicados à construção das tais ?comunidades de aprendizagem, embrionários na troca de experiências, expertises e disseminação de soluções para o desenvolvimento local sustentável, que além de abrir novos postos de trabalho e oportunidades de geração de renda, promovam o bem estar coletivo e o aumento da qualidade de vida das comunidades menos favorecidas. E isso só será possível se aprofundarmos cada vez mais os vínculos entre pessoas, entidades, empresas e governos. A profundidade desses vínculos determinará a qualidade da futura sociedade do conhecimento.”