Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Guálter George

O POVO

"Cada qual no seu galho" copyright O Povo, 24/1/04

"O jornalista foi historicamente incentivado, estando numa redação, a manter regular distância da área comercial. Com o passar dos tempos e a caracterização da comunicação como um negócio, cada vez mais evidente, o tom purista que sempre marcou esta relação foi perdendo consistência. Em nome disso, hoje, se procura trabalhar dentro de um clima de respeito mútuo entre os que fazem o jornal, na sua perspectiva editorial, e os que executam a indispensável tarefa de vender seus espaços comerciais, para torná-lo economicamente viável. Um sempre dependeu do outro, a diferença é que os dois somente há pouco começaram a aceitar que assim o seja.

A questão é que o jornalista é mais útil aos executivos de venda de um veículo de comunicação quanto mais estiver distante deles. Durante tempos fomos levados a acreditar que este distanciamento teria de ser físico, pressupunha um agente de vendas não poder andar na redação ou exigia que um jornalista nunca fosse à área comercial do jornal, nem sob o pretexto de tomar um cafezinho. Os conceitos modernos têm derrubado barreiras nesse campo e, segundo entendo, é importante que assim seja.

O anúncio virou notícia

Enfrentamos, na semana passada, uma situação prática e reveladora do quanto é danoso ao jornal O Povo ou a qualquer outro, que a linha virtual que separa a notícia da publicidade, a redação do comercial, seja rompida. Como o foi na edição de domingo último, dia 18, à página 2, em foto-legenda, localizada em ponto de pouco destaque, no canto inferior direito, que se propunha, a partir de um tratamento editorial, a noticiar a abertura de uma revenda de veículos, chamada NossoCarro.

O mais estranho do episódio, conforme posteriormente viria a descobrir, é que o departamento comercial do jornal estava absolutamente inocente. Na cobrança feita internamente, até sugeri que poderia se tratar de uma cortesia a um cliente, que talvez fosse uma ação entre amigos patrocinada pela direção da empresa etc, somente não me passara pela cabeça que aquele enxerto publicitário com o corpo de uma notícia tivesse nascido de uma pauta editorial. Pois, segundo descobri, o foi.

A partir da cobrança interna, vieram os esclarecimentos: a pauta pedia uma coisa, entregamos outra ao leitor. E o que oferecemos foi, em 10,5 centímetros de altura por 9,5 centímetros de largura, um texto sobre a inauguração de uma revenda de veículos em Fortaleza, localização, modelos à venda, condições de pagamento. O Povo, enfim, elevou à condição de notícia uma comum inauguração de um negócio comercial em Fortaleza. Sem lead que o justificasse

A prática de uma bela teoria

Lisianne Mossmann, uma experimentada, apesar de jovem, jornalista da área econômica, me encaminhou esclarecimentos em nome do Núcleo de Negócios, do qual é editora-adjunta e onde teve origem a pauta em questão. Faz um apanhado histórico do jornalismo econômico, o cenário em que surgiu, as transformações que experimentou etc, traçando um percurso que nos traria à realidade de hoje e estaria na essência da proposta de pauta que o texto, pela forma como se apresentou, escondeu.

A resposta contempla um bela teorização, é convincente neste aspecto, mas, quando toca na questão-chave, que envolve o texto que publicamos no domingo passado, resume-se a reconhecer que pecamos por um vício que insistimos em não superar: ficamos apenas na declaração, quando, diz ela, a idéia da pauta era mostrar os efeitos sobre a concorrência, a oferta de emprego e os preços de mercado, enfim, como aquele evento comercial poderia receber um tratamento editorial, transformando-se em um assunto do interesse do leitor.

Reproduzo o trecho final do que me foi encaminhado pela Lisiane: ?O problema, nesta matéria, foi não fugir de algo que nós jornalistas, muitas vezes, temos preconceito, que é tratar matérias, que parecem à primeira vista notícias sem importância e institucionais. Acabamos simplesmente reproduzindo a voz empresarial, sem avançarmos, como normalmente fazemos em notícias investigativas ou de denúncia. O que falta não só para repórteres econômicos é ir além do aqui e agora e poder ampliar um pequeno fato, que pode parecer publicitário, gerando uma notícia de maior interesse e que atinja um maior número de pessoas?.

O meu limite, o teu limite

Considero o episódio exemplar no sentido contrário daquilo que se recomenda. Redação e comercial podem, até devem, desenvolver uma política de aproximação que torne mais claro o limite de competência no qual cada um pode atuar, inclusive como meio de se tornar complementar ao outro. O exemplo desta infeliz matéria que publicamos domingo, nascida e gerada no espaço sagrado dos jornalistas do O Povo, exige que a redação reflita sobre a sua própria compreensão deste limite e quando é que enxerga a possibilidade de vê-lo ultrapassado. Afinal, alguém apurou e redigiu, alguém editou.

Uma vitrina embaçada

A coluna da semana passada, sobre a polêmica capa do último dia 7 que andou indignando leitores, rendeu uma boa troca de mensagens eletrônicas entre a editora-chefe Fátima Sudário e o ombudsman. Imagino que assim o seja, mérito do que se discutiu à parte. Não acho que deva, necessariamente, me curvar aos argumentos da redação, muito menos defendo que o contrário aconteça.

O processo de discussão que nasce, e às vezes morre, em questões levantadas pelo ombudsman será útil na medida em que todo tempo esteja contemplando o interesse comum de se buscar respostas. Especialmente quando tratamos de assuntos originários de manifestações do público, para o qual todo nosso trabalho é direcionado. Deve sê-lo, pelo menos, muito embora isso esteja longe de pressupor uma atitude necessariamente passiva da redação.

Foi o primeiro embate interno e acredito que muitos ainda virão pela frente. Quanto aos desconfortos que começam a ser gerados, acredito que deva lançá-los na ?cesta básica? que forma o conjunto de ônus inerentes à função. Em si, afinal, marcada pelo incômodo e pela capacidade de incomodar."