PROGRAMAÇÃO & AUDIÊNCIA
Nelson Hoineff
As cinco maiores audiências do SBT, a segunda maior rede de televisão do país ? que tem Silvio Santos, Gugu Liberato, Hebe Camargo e Ratinho ?, pertencem a filmes estrangeiros. Para constatar isso, basta ver a lista dos programas mais vistos entre 5 e 11 de janeiro, publicada em vários jornais, inclusive a Folha de S.Paulo. Os cinco campeões são: Quinta no Cinema, Tela de Sucessos, Sessão das Dez, Cine Especial e Sessão Premiada.
O programa de maior sucesso da Record, a terceira maior rede do país, também é um filme estrangeiro: Sessão Especial. Na verdade, afora a Globo, todos os programas das sete redes de televisão que chegam aos dois dígitos de audiência, segundo o Ibope, são, sem exceção, filmes estrangeiros (como o é também o primeiro lugar da Globo, a maior audiência do Brasil, Tela Quente, que na semana em questão ficou na frente de Celebridade, Big Brother Brasil, Jornal Nacional e da minissérie brasileira, todos estes variando entre 35pontos e 43 pontos).
Tirante os citados, o programa que mais se aproxima dos dez pontos é Cidade Alerta, o segundo lugar da Record, que atinge 7 pontos. O campeão da Bandeirantes, Brasil Urgente 2, faz 5 pontos; o da Rede TV!, Eu ví na TV, é líder de sua emissora com 3 pontos, assim como os líderes da Gazeta (Programa Sergio Mallandro) e da Cultura (Ruppert), que também ostentam orgulhosos 3 pontos.
Pagar a conta
Quando se fica diante de um quadro assim, não sobra espaço para dúvidas de que há algo de errado com a televisão brasileira. Se todos os líderes de audiência são longas-metragens estrangeiros, se Brasil Urgente, Eu Ví na TV e o Programa Sergio Mallandro são líderes em suas redes e se essa liderança é alcançada, na maioria dos casos, com 3 pontos de audiência, não é o público que se deve culpar.
A distância que separa a Globo de todas as outras deve-se em grande medida à competência da primeira, mas em sua maior parte à incapacidade das demais de gerir as empresas e formatar suas grades de programação. Isso quem está dizendo é o público. O curioso é que quando o público rejeita uma cerveja, ela muda de sabor; quando rejeita uma emissora, ela mantém o sabor ? e muda a embalagem.
Se faz isso é porque acredita em alguns princípios. Acredita, por exemplo, que a mediocridade é da natureza da televisão e atende ao desejo do público (ainda que, pelos números, o público grite que não). Acredita que o concentracionismo é fait accomplis na televisão brasileira e que não há nada mais para ser feito. Acredita, finalmente, que pode sobreviver disputando 3% de um mercado de 4 bilhões de reais, quando os números mostram que não pode.
Não é por outra razão que a tão discutida PEC da entrada do capital estrangeiro nas empresas de comunicação, aprovada no fim do ano passado e que modificou o artigo 222 da Constituição, até agora não deu em nada. O ingresso do capital estrangeiro foi autorizado, mas nenhum estrangeiro com dinheiro em caixa apareceu para investir na compra de 30% de emissoras administradas desse jeito e sobre as quais ele não terá qualquer ingerência. O que o público brasileiro e os mega-empresários de comunicação do mundo estão dizendo é a mesmíssima coisa: com esse tipo de produto e esse modelo de administração, a televisão brasileira está mergulhando num buraco do qual dificilmente poderá sair.
Na verdade, os construtores desse tipo de conteúdo que são também os arquitetos desse modelo familiar de gerenciamento acreditam que podem, sim, sair do buraco ? e quem tem a obrigação de puxá-los é a sociedade brasileira, por meio do dinheiro público repassado pelo BNDES. Muita gente, no entanto, acredita o contrário. Sustenta que o que as televisões são devedoras e não credoras da sociedade brasileira, e que portanto não gozam de instrumentos para fazê-la pagar essa conta. O Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação, por exemplo, conseguiu dizer algo parecido ao secretário-adjunto da Secom, Marcus Flora, no dia 15 de janeiro.
Bolo digital
O FNDC reivindica que a ajuda do governo às empresas de mídia esteja vinculada à "transparência do processo e ao estabelecimento de contrapartidas sociais que busquem o desenvolvimento da comunicação social", nas palavras de um dos líderes do Fórum, Daniel Herz. Nem precisaria. Se os grandes empresários internacionais que fizeram fortunas explorando empresas de comunicação acham que não é um bom negócio investir nas empresas brasileiras do jeito que elas hoje se apresentam, por que o Estado brasileiro haveria de achar o contrário? A não ser, é claro, que ele se tornasse sócio das empresas e tivesse o poder de gerenciá-las. O próprio Estado, no entanto, não tem se mostrado um bom gerenciador do que atualmente se conhece por "televisão pública", expressão que hoje tem no Brasil a mesma força de palavras como "sinistro": pode querer dizer qualquer coisa, menos o que realmente ela significa.
A chave para a construção de modelos que possam limitar a autorização de se insultar a sociedade brasileira e ainda fazê-la pagar por isso, como o governo chinês cobra das famílias dos dissidentes as balas que usa para executá-los, está no estabelecimento criterioso de políticas públicas para o setor. No final da semana passada, o Brasil mudou pela terceira vez em pouco mais de um ano o seu ministro das Comunicações ? e de quebra substituiu o presidente da Anatel. Fez isso partindo o coração do chefe do Executivo, como o próprio presidente definiu sua necessidade de promover as mudanças que encaixassem o PMDB no governo. Muito além do fato político, no entanto, há a constatação de que mais uma vez a política de comunicações do país está no limiar do ponto zero: anunciar uma virada que não apenas corre o risco de anular tudo o que veio antes como, sabe-se, vai durar até o próximo fato político que gere novas mudanças.
Políticas de comunicação, no entanto, são necessariamente de longo prazo, porque dependem de fortes investimentos e de calços suficientemente fortes para justificá-los. A televisão digital é um bom exemplo. Durante anos, a Anatel, sob orientação de Luiz Schymura, promoveu estudos de viabilidade técnica dos três padrões em competição ? e recorreu a muitos parceiros privados, inclusive do setor acadêmico, como a Universidade Mackenzie. Quase ao mesmo tempo, o então ministro Juarez Quadros procurava implantar uma lei da comunicação social eletrônica que levava em conta fatores como propriedade dos meios de comunicação, a qualidade de seu conteúdo e o respeito aos compromissos sociais assumidos pelos concessionários.
Com a entrada do ministro Miro Teixeira e o esvaziamento de Schymura, a discussão sobre a TV digital voltou-se, por um lado, para a possibilidade de desenvolvimento de um padrão brasileiro que substituísse os padrões americanos, japoneses e europeus (para não falar no extemporâneo padrão chinês) que estavam sendo testados havia quatro anos. E, por outro, para a divisão do bolo digital, com a possibilidade de um reordenamento mais eqüitativo da propriedade dos meios de comunicação.
Estaca zero
Dias antes de sair do governo, no final de 2002, o ministro Juarez Quadros entregou a seu sucessor, Miro Teixeira, o projeto da Lei Geral de Comunicação Social Eletrônica. Menos de 13 meses depois, no dia 21 de janeiro deste ano, o ministro Miro preparou um outro dossiê para seu próprio sucessor, Eunicio Oliveira.
Os dois documentos simplesmente não falavam das mesmas coisas. Quadros estava preocupado em integrar numa só política diversos setores que são complementares ? como a TV aberta, a TV por assinatura, a produção e a propriedade dos meios de comunicação. Miro fez um levantamento das ações do ministério previstas para 2004, onde se destacam os gastos com os programas do Fust (Fundo de Universalização de Telecomunicações), estimados em 40 milhões de reais ? que poderiam ser ampliados de acordo com a demanda ?, e os gastos com o Funttel (de fomento ao desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e projetos de convergência tecnológica, inclusive TV digital), além de outorgas de TVs educativas e gastos com os programas de modernização dos Correios.
As novas prioridades do ministério das Comunicações e da Anatel ainda estão por ser conhecidas. Pelo menos no primeiro caso (já que, no segundo, o titular Pedro Ziller é um técnico do setor) é possível que ainda estejam por ser desenhadas. Antes de se debruçar sobre a evidência de que o calcanhar de Aquiles da TV digital está no conteúdo e não no padrão de transmissão, o ministro Eunício não perderia seu tempo se procurasse se deter por algumas horas vendo o que a maioria das redes de televisão está oferecendo à sociedade brasileira ? e em troca de quê está fazendo isso.
As conclusões podem contar com o auxílio da simples aritmética. Quando os melhores colocados estão fazendo 3% (e pelo menos num dos casos, o quinto melhor colocado tem 1%) é porque a média dessas emissoras não supera o 1%, ou menos do que isso. Se estivessem com um slide de advertência no ar, o resultado não seria muito diferente. E se a liderança vem com o tipo de produto com que está vindo, então fica difícil sustentar que o dinheiro público esteja sendo aplicado na elevação do nível cultural ou das exigências de qualidade da população.
Até as pedras da Esplanada dos Ministérios saberão que há no leque de produção audiovisual brasileira produtos infinitamente melhores do que isso ? tanto do ponto de vista artístico quanto do desempenho comercial. E que se eles não estão no ar é porque as atuais políticas de comunicação sugerem ao empresário de televisão que ele não tem obrigação alguma de ser competitivo e muito menos cumprir com suas obrigações constitucionais no que diz respeito à qualidade e pluralidade de conteúdo ? porque ninguém vai incomodá-lo com isso e, na hora do buraco, o a chave do cofre da viúva está aí mesmo para resgatá-lo.
Se haverá tempo para a construção e implantação de um política de comunicação consistente no país antes que tudo volte, mais uma vez, à estaca zero, ninguém é capaz de dizer. Sabe-se apenas quem são os vitoriosos cada vez que essas políticas são proteladas. São aqueles a quem tanto o público local quanto os empresários estrangeiros estão virando as costas ? mas que continuam acreditando que têm uma dívida a cobrar de toda a sociedade brasileira.