ARQUITETURA DA POBREZA
Deonísio da Silva
Comparada a São Paulo, a maior megalópole do Brasil, a pequena Passo Fundo (RS) perde em quase tudo, a não ser, é claro, naqueles males que, ao contrário do que reza o provérbio, não vêm para o bem, vêm para o mal. Ainda assim, as pragas urbanas não lhe custam tanto como custam aos grandes centros. Com efeito, a cidade gaúcha tem menos violência urbana, menos trânsito e menos pobres.
É pertinente a comparação entre Passo Fundo (a 287 km de Porto Alegre) e São Paulo, por eflúvios da revista Época que está nas bancas (n? 276, 2/9/03) e da matéria sob o chapéu "Decoração" e título "Living inteligente", assinada por Paloma Cortes, em que são postas em destaque outras utilidades para os livros, sendo a principal a seguinte: "Os livros viraram o objeto de decoração da moda nas casas dos endinheirados".
Há 22 anos, Passo Fundo realiza bienalmente a maior festa com autores e livros. Semana passada estiveram lá alguns dos principais escritores brasileiros, além de intelectuais estrangeiros de renome, um dos quais, Edgar Morin, recebeu o título de doutor honoris causa, que lhe foi conferido pela Universidade de Passo Fundo, a promotora das já célebres Jornadas de Literatura. "Agora, diferentemente de Dorian Gray, de Oscar Wilde, posso envelhecer em paz, pois minha obra vai se rejuvenescer para sempre na internet", declarou o famoso sociólogo francês e crítico dos meios de comunicação de massa, em agosto passado, quando o Sesc-São Paulo inaugurou um website a ele dedicado.
Semana passada, as principais estrelas não foram entretanto os escritores. Foram, como sempre, os livros, pois ao aproximar autores e leitores, o evento busca aproximar o público dos livros. E foram vendidos diariamente cerca de dez mil exemplares, como celebrava no café da manhã, às 6h de domingo, no Hotel São Silvestre, a professora Tânia Rösing, criadora e coordenadora das Jornadas. Não está envelhecendo, é uma mulher jovem ainda, mas já pode unir-se à reflexão do principal convidado. Os registros fotográficos são implacáveis e ela não se importa com isso. A quase-menina que fez a primeira Jornada, em 1981, com a ajuda do escritor Josué Guimarães, mudou a paisagem do rosto, mas foi ficando cada vez mais bela aos olhos de todos. E recentemente até a Academia Brasileira de Letras lhe atribuiu um prêmio importante por obra das Jornadas de Literatura.
Fina estampa
Mas enquanto surgem iniciativas espetaculares como a de Passo Fundo, já imitada também em Parati, no Rio, e em Ribeirão Preto, em São Paulo (os organizadores da Feira do Livro de Ribeirão Preto, a maior do interior do Brasil, não escondem, antes proclamam que se inspiraram em Passo Fundo), na capital do Estado vemos a que nível pode descer a ignorância, a ponto de abastados senhores adquirirem livros para exibirem o que não têm: familiaridade com eles. Compram caríssimos volumes com o fim exclusivo de ornamentarem os recintos. E mais abominável ainda: encontram arquitetos que aceitam isso ou até mesmo lhe propuseram a besteira. Mais difícil de digerir são, porém, as razões que os arquitetos invocam para propor ou atender ao que lhes encomendam.
O leitor que me acompanha até aqui, não tendo lido a edição desta semana de Época, pensa que estou brincando. Então, eis a cobra e o pau.
"Arquitetos e decoradores adoram o que se convencionou chamar de coffee-table books, ?livros para mesa de café? em inglês. Grandes e coloridos, eles custam de R$ 100 até milhares de reais, e são de preferência importados. Em geral, versam sobre arte, fotografia, gastronomia, jardinagem. São os preferidos para o living. ?Os livros dão um peso ao ambiente. Transmitem uma idéia de bagagem, sofisticação?, explica a designer de interiores Jóia Bergamo. ?Mais de 80% dos meus clientes pedem que eu compre livros. Não importa o autor ou quanto custará. O importante é rechear as estantes?, conta outra famosa arquiteta de São Paulo. ?São os mais vendidos por serem os mais bonitos. Pena que nem todos os compradores saibam o real valor dessas obras?, afirma um livreiro que está driblando a crise investindo nesse filão. Hoje, ele faz mais negócios com decoradores e arquitetos que com amantes sinceros da arte e da literatura. ?Os livros aquecem o ambiente?, resume a arquiteta Brunete Fraccaroli."
O resto está lá na revista. É só conferir. Talvez seja necessária alguma precaução. Um sal de frutas, por exemplo. C?est la fin de la piqué, como disse certa vez um livreiro do Brasil meridional, quando um novo rico, que ele atendia pessoalmente, mudou de idéia e, em vez de comprar a Enciclopédia Britânica, optou pela Barsa: "A outra não vai caber nas estantes".
Mais tarde o livreiro soube que o comprador tinha mandado serrar a coleção, pois calculara mal o tamanho dos volumes. E as repartições das estantes eram de concreto, embutidas na parede da sala. Sua história, contada sempre com verve, passou para o reino da anedota, ainda que ele a ilustrasse com um exemplo adicional: em famoso hotel de Foz do Iguaçu havia uma biblioteca de fina estampa, desenhada livro a livro numa das paredes.
Decoração e fingimento
Pois os arquitetos e decoradores citados em Época, se é que a esta altura ainda podem ser assim chamados, superaram todas as besteiras que envolvem a ignorância, a falsidade e a empáfia combinadas, e deram mais uma contribuição ao Festival de Besteiras que Assola o País, o famoso Febeapá, do inesquecível Stanislaw Ponte Preta.
Arquiteto e decorador trazem arte, técnica, decência e honra na própria origem das respectivas denominações. O latim architéctu designa aquele que orienta, guia, ordena, chefia, constrói. Os antigos romanos tomaram o termo do grego arkhitéktón, aquele que detém uma ciência ou uma arte.
Arquiteto entrou para a língua portuguesa ainda no século 16. E decorador, que chegou à língua portuguesa na segunda metade do século 19, do latim decoratore, indica um ofício em que o profissional harmoniza o ambiente com quem as características, os sentimentos, as convicções e demais marcas humanizantes de quem ali reside. No caso, residem ali uns impostores, que buscam parecer o que não são: amantes de livros. Ora, o livro é o centro de nossa civilização. Que sejam bonitos, que bom! Mas sempre valerá mais o que neles estiver escrito. E tais valores não são transmitidos na compra. Só há um modo de adquiri-los: a leitura.
Na pequena Passo Fundo o signatário presenciou milhares de crianças e adultos tentando comprar mais livros. Mas havia uma dificuldade intransponível: eram muito caros. E os leitores, como a maioria de quem lê, não têm dinheiro para comprá-los por tais preços, inalcançáveis porque as baixas tiragens elevam os custos de sua produção e circulação. Agora foi explicitado um outro motivo: os livros são caros porque certos endinheirados preferem usá-los apenas como ornamentação e fingimento.