AS ILUSÕES ARMADAS
Marco Aurélio Dutra Aydos (*)
I
A condenação moral passada por Mário Maestri e Mário Augusto Jakobskind ao autor de As ilusões armadas é maior do que uma crítica ao "estilo literário" de Elio Gaspari.
O veredicto dos críticos pretende selar a execução moral da obra, que teria cometido pecado capital na historiografia: a parcialidade, em favor dos vencedores, a falsificação de causas dos acontecimentos, substituindo a Providência divina pela decisão pessoal dos "heróis", e ampliando, indebitamente, a concepção e auto-imagem de Geisel e Golbery a "motivos" históricos, com o fim, não explicitado, de absolvê-los gloriosamente e, por extensão, louvar a própria ditadura.
No artigo "Historiografia envergonhada", assinado por Mário Maestri, historiador, e Mário Augusto Jakobskind, jornalista [ver remissão abaixo], é sintetizado o veredicto:
"A conclusão da leitura dos dois presentes livros permite ao leitor responder à pergunta inicial do autor sobre as razões de Geisel e Golbery guardarem e entregarem a ele seus arquivos, concedendo-lhe o privilégio de um longo convívio e demoradas entrevistas. Possivelmente sonhavam com a coroação de suas obras pessoais por biografia parida por escritor de recursos solidários com suas ações. E sequer essa homenagem faltou aos ditadores".
Toda sentença capital merece reflexão. Não é possível compreendê-la debitando suas razões apenas a um certo ressentimento que transparece na crítica. Ressentimento compreensível: Gaspari é "jornalista de destaque e influência", aparece bem-editado. Está condenado ao "sucesso editorial". Fora isso, escreve bom português, sabe valer-se de boas "cenas", dá à narrativa histórica um roteiro quase cinematográfico. Mantém um ritmo emocional equilibrado, ora trágico, ora patético, adequado à narrativa e que de quebra permite que fatos históricos sejam lidos pelo grande público. Ao contrário do que parece, esse é o caminho mais ousado. Fácil teria sido cair no exagero, na caricatura, no melodrama, na divinização dos "personagens" por que em primeiro lugar o autor se interessa. Fácil teria sido deixar-se levar pela falsificada auto-imagem que têm de si os atores históricos.
A lógica do ressentimento é preconceituosa. Se o público é trivial, logo, o sucesso da obra revela que ela é trivial, apanhado de pequenos eventos da elite moralmente corrompida, um grande almanaque, parecido com as edições retrospectivas de revistas semanais de massas. Gaspari pode ter passado 20 anos acumulando dados históricos, mas não faz história. É um diletante que faz literatura ou jornalismo com "frases de efeito" e abordagem superficial que "navega em geral no mar da trivialidade", deixando de compreender os fenômenos por ele mostrados. Falta a Gaspari a elucidação dos "nexos profundos" das aparências. Pior do que superficial, a trivialidade de Gaspari funcionaria como absolvição da ditadura, que só teria pecado pelo "excesso da tortura".
Nada disso ocorre.
Do ressentimento não se tira compreensão. Uma tal hermenêutica de suspeição não chega a perceber a estrutura complexa da narrativa. Se resolve alguma coisa, podemos bem lembrar que escritores da política tão renomados hoje quanto Hannah Arendt, no seu tempo, enfrentaram o ressentiment de acadêmicos que, afinal de contas, não têm suas pequenas obras citadas nos rodapés de trabalhos que, gerados fora desse pequeno mundo, conseguem por isso mesmo oxigenar o próprio critério de conhecimento histórico e científico.
Mas o ressentimento é lateral à crítica. O seu substrato é a própria concepção de verdade histórica de seus autores. Para Maestri e Jakobskind, Gaspari faz literatura romântica ao gosto do século 19, dos perfis psicológicos exacerbados que traçavam o devir da História a partir da biografia dos grandes Heróis.
"É com surpresa que os leitores penetram nessa espécie de máquina do tempo que os projeta em um universo analítico quase oitocentista, onde os fatos históricos resolvem-se sobretudo a partir da decisão, das qualidades e das idiossincrasias dos grandes atores políticos. Um cenário em que as massas populares não aparecem nem mesmo como figurantes".
Quem se deparar com os dois volumes de As ilusões armadas (A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada) a partir da crítica imagina que encontrará a biografia de Geisel e Golbery ao estilo de conto de fadas de um Emil Ludwig. A falsificação histórica, que produz relatos encantadores, é sempre indecente, na história, na literatura ou no cinema.
Apenas nos parece que ela não ocorre no caso.
II
A verdade histórica de Elio Gaspari não se deixa falsificar pelo paradigma de verdade com que a contrastam seus críticos. Não será difícil identificar, como fez Geraldo Luiz Matos, em réplica publicada na edição seguinte do mesmo Observatório, que a crítica de Maestri e Jakobskind tem por paradigma uma ciência histórica de acento marxista. Geraldo Matos identifica ali, com acerto, um viés mecanicista, "linear e banal" [ver remissão abaixo].
Tem razão a crítica da crítica.
Mais do que radicalismo científico, o que transparece na crítica é o próprio radicalismo político. Apenas o radicalismo político permanece fiel a paradigmas historicamente falsificados em nome da "fidelidade histórica ao verdadeiro marxismo" e outros motivos do gênero. É o próprio radicalismo político que torna certas doutrinas nacionais infensas à crítica de suas premissas. Não é à toa que encontraremos no radicalismo a intolerância com procedimentos científicos "dos outros", desde que se tutela a verdade científica a partir do postulado da verdade única. Serão então inimigos de direita e alienados todos os demais que não lhe rezem pela cartilha.
Um dos signos do radicalismo político, quando presente na ciência, é o constante estado de alerta e suspeita contra quaisquer sinais de verdade contrários ao seu dogma, sempre identificados como atos do "inimigo". Segue-se a desqualificação moral do inimigo, que é para eles facilmente "desmascarado" em sua alienação e "verdadeira" posição política. Assim, qualquer integrante da esquerda acadêmica radical, acostumada ao raciocínio de amigo-inimigo do radicalismo político, dirá com tranqüilidade que os argumentos de Geraldo Matos são ilegítimos, porque partem do "inimigo". Popper será para eles um ideólogo de direita, e da direita todo o conhecimento é "interessado". A verdade, proclamam, está na produção acadêmica que eles têm por verdadeira, e esta deve identificar-se com suas premissas e hipóteses. Tudo o mais é "alienação", dos que não sabem o que fazem, e contudo o fazem.
Se Popper é arqui-reacionário aos olhos do radicalismo político, talvez possamos contrapor a seus paradigmas a crítica originária do próprio "marxismo". É claro que aqui também entrará em ação a ideologia defensiva: são revisionistas, que abandonaram a causa. Se dissermos que marxistas do Leste Europeu, ao tempo do stalinismo, abandonaram o arsenal conceitual do Dia-Mat em razão da "falsificação" histórica em que seus adeptos incorreram, também dirão que se curvaram ao capitalismo ocidental e outras bobagens.
Sejamos liberais: laissez-parler. O que é não tem jeito de não ser. Não é apenas de um ponto de vista "externo" (matemático, como apresentado por Geraldo Matos) que o materialismo histórico ortodoxo é falsificado como aparelho conceitual para a compreensão histórica. A própria esquerda marxista que não admitiu fazer parte de "igrejas" laicas em que a fé substitui o pensamento revisou o marxismo e o afastou, como instrumento conceitual, sempre que viu que não servia para nada.
III
O arsenal conceitual do materialismo histórico não serve para quase nada na compreensão histórica da ditadura militar. Onde a crítica peca na desqualificação do teor científico da obra de Gaspari é no seu próprio conceito de verdade historiográfica. Se é certo que a literatura romântica novecentista abusou do "herói" da grande história, ignorando outros fatores sociais como explicações do fenômeno histórico, é igualmente certo que a literatura histórica e sociológica do século 20 abusou dos "complexos desdobramentos" dos motivos "subterrâneos" do agir de homens e mulheres, esquecendo por igual que eram, afinal, homens e mulheres que agiam, pensavam (enganados ou não) e decidiam, dentro de certos limites. Não foram funções do desenvolvimento econômico ou do processo de acumulação regional ou mundial que agiram para que tivéssemos chegado ao totalitarismo no século 20.
Os que reclamam contar a história mediante a descoberta dos "móveis" ocultos do agir humano deveriam em primeiro lugar estar preocupados com a desalienação na compreensão histórica, e já deveriam ter-se apercebido de que muitas histórias contadas do ponto de vista teleológico do materialismo histórico acabam, no fim, tornando-se procedimentos míticos e ilegítimos de "absolvição" histórica, quiçá mais perversos do que a moda do século 19 de esquecer as "populações" em favor dos heróis. Porque esta última pelo menos não tomava os sofrimentos concretos das pessoas como "martelos e pregos" indispensáveis à construção da mesa, como na crítica certeira que desferiu Hannah Arendt à historiografia de feitio hegelo-marxiano, que dominou e abusou da nossa paciência no século 20. Para Arendt, a idéia de progresso que está contida na base evolucionista do marxismo é tão perigosa para a dignidade humana porque nesse caminho para o progresso tudo é "necessário", nada podia ter sido diverso: há algo de ultrajante e perigoso na concepção moderna da divina "História do Mundo", palco em que "eventos singulares e atos e sofrimentos não têm maior significação aqui do que martelos e pregos com respeito à mesa acabada" (Hannah Arendt, Between Past and Future ? Eight Exercises in Political Thought, New York, Penguin, 1977, pág. 80).
Ocorre que a historiografia dita "complexa", que pretendem os críticos substituir o método narrativo de Gaspari, não permite fazer mais justiça às populações por trás do jugo de uma ditadura de força bruta (mais do que de legitimação ideológica) como foi a incursão militar. Até porque uma das coisas que se demonstraram absolutamente equívocas na "compreensão" histórica do século 20 foi a pretensão de tudo explicar pelo primado da infra-estrutura (ou da base econômica em última instância) sobre a superestrutura política, seguindo a frase de Marx (que não por acaso tem uma lembrança cristã) de que "eles não o sabem e contudo o fazem". Logo, perdoai-os.
Quem instalou um regime ditatorial ou totalitário logo percebeu que a superestrutura política é que comanda a economia. Quem estudou a origem do chamado "liberalismo" econômico, como Karl Polanyi, em The Great Transformation, provou que o laissez-faire nasceu à custa de uma artificial criação da superestrutura política. Os regimes autoritários com certeza bajularam as elites econômicas estabelecidas, mas por sua própria iniciativa tiveram a capacidade de criar novas elites, e processos originários de acumulação de capitais, não necessariamente ligados às elites tradicionais. São eles mesmos forças econômicas, que produzem riqueza a partir da corrupção e do clientelismo.
Não é à toa que críticos da historiografia oficial do Leste Europeu, como Agnes Heller, Ferenc Fehér e György Márkus (no caso específico, em Dictatorship over Needs, obra coletiva que disseca a natureza do regime político e econômico soviético), ao mesmo tempo em que se valem de categorias do marxismo clássico, quando cabíveis, abandonam o "paradigma da produção" e sua teleologia redentora e messiânica. Quiçá por isso foram banidos pelos donos do poder nos "bons velhos tempos stalinistas". Ao descrever a economia soviética, que denominou sistema de "economia de mando", György Markus concluiu com bastante propriedade que o
"domínio da política sobre a economia (…) significaria (…) que, nas condições sociais de um sistema soviético, a economia não contém nem engendra princípio algum de seu próprio dinamismo, pois este último está determinado essencialmente pela vontade de uma politocracia. A ser assim, a teoria crítica dessas sociedades deverá fundamentar-se não na economia política, mas numa ciência política de elites que jamais aparece em Marx" (Márkus, György, Heller, Agnes & Fehér, Ferenc, Dictadura y Cuestiones Sociales, trad. Agustín Bárcena. México, Fondo de Cultura Económica, 1986, pág. 75).
A politocracia, o domínio que se reporta à vontade das elites governantes, torna algo inaplicáveis conceitos tradicionais, tais como as referências a classes econômicas ou até mesmo ao conceito de "burocracia" de Max Weber, que dá grande importância ao conhecimento e à expertise de uma classe que teria por fim a eleição de meios para a obtenção de metas prefixadas, valendo-se da racionalidade formal. Isso porque os "segredos" da politocracia são totalmente irracionais. Aqui, "a aptidão para funcionar como membro do aparato nãatilde;o está baseada, em geral, no monopólio de alguma classe de saber, mística e nova, senão na simples e lhana destreza administrativa e política que só se adquire na prática". E esta prática é salvaguardada pelo próprio aparato de modo que dela somente aprendam aqueles "de cuja lealdade não se suspeita em absoluto" (Márkus, ob. cit., págs. 141/2). As "elites" de governos autoritários não têm necessária relação com uma posição na esteira de produção.
A boa historiografia sempre soube combinar às razões profundas da história os perfis individuais de pessoas que tomaram decisões importantes, que manipularam a seu tempo o grande "jogo político" como fatores indispensáveis à narrativa. O perfil político de Bismarck, traçado por Gollo Mann em sua História da Alemanha desde 1789 (Gollo Mann, The History of Germany since 1789, trad. Marian Jackson, New York, Washington, Praeger, 1968, 547 págs.) é essencial à compreensão do poder no império alemão, e da pré-história da República de Weimar, e faz parte da narrativa de Gollo Mann de modo bem diverso dos contos de fadas românticos, como as biografias de heróis por Emil Ludwig.
Marx em seu tempo
A historiografia do século 20 também parte de análises superestruturais (o mundo da política) para compreender novas formas de acumulação econômica. É o caso da história contemporânea do México, descrita por Lorenzo Meyer e Héctor Camín, que perceberam como a dita superfície ideológica conforma toda uma forma de economia clientelista. Resulta desse sistema que os detentores de cargos públicos ou paraestatais "passam do ‘nada’ ao poder, e do poder novamente para o ‘nada’". Essa é uma das razões de estabilidade, além do poder enorme sobre a burocracia numa cultura patrimonialista como a mexicana. "Em 1970, um presidente da República podia distribuir entre seus seguidores seis mil posições, entre as mais bem remuneradas e mais consideradas no país. Em 1982, a distribuição alcançava dez mil cargos. Estamos falando de um enorme poder de premiar, punir e distribuir renda, concentrado numa única instituição, a mais importante do sistema político mexicano" (Camín, Héctor Aguilar & Meyer, Lorenzo, In the Shadow of the Mexican Revolution: Contemporary Mexican History, 1919-1989, trad. Luis Alberto Fierro, Austin, University of Texas Press, 1994, pág. 254).
A burocracia, e o modo pelo qual ela é formada e dirigida, passam a ter importância como "fator de produção" dos fatos históricos, a partir do momento em que a política comanda a economia. A burocracia funciona assim como um sistema de "elites no poder". A cada renovação no Executivo surge uma possibilidade de renovação nos cargos, sendo que cada um desses cargos também traz consigo a possibilidade de serem nomeados outros tantos. Ausente a democracia, a burocracia torna-se cenário privilegiado de "ingressos discricionários de renda, ocasião para enriquecimento pessoal e a pura transferência de recursos públicos para mãos privadas, uma transferência que normalmente transforma políticos em homens de negócios, ou simplesmente em pessoas ricas, que abandonam suas atividades públicas para depois concentrarem-se nessas atividades privadas" (Camín & Meyer, ob. cit).
A radiografia de motivos, comportamentos, códigos de ética, sistemas de ascenso, descenso, prestígio e desprestígio, de "elites" políticas, torna-se um fator de compreensão quiçá mais poderoso do que narrativas de forças econômicas ocultas. Por vezes alienantes serão monografias que repetem os modismos conceituais que de tempos em tempos crescem no meio acadêmico. O último motivo mistificador da história a ter lugar nas ciências sociais, relativamente à compreensão da ditadura militar, a partir de O’Donnel e Stepan, foi uma literatura da "transição" que continha um forte viés de "grande narrativa", com todos os problemas éticos que daí advêm, inclusive o pior deles, que é a absolvição de quem causou sofrimentos passados pelo suposto "Bem" de hoje.
A frase principal da crítica está na tese de que a historiografia científica, a partir de quando se descobriu que a Revolução Francesa podia ser interpretada como "produto de forças sociais profundas das quais os protagonistas têm apenas consciência parcial", tem por função "explicar esses nexos subterrâneos".
Falta à crítica a contextualização de Marx como um grande autor, mas que permaneceu ele mesmo dentro do espírito de seu tempo: o século 19. Falta perceber, um pouco além de Marx e do século 19, que a "ideologia", conceito a que se reportam (as razões aparentes em divergência das motivações essenciais), pode ser causada por motivações não-econômicas.
Dois direitos
Quiçá faça falta hoje quem não tem a pretensão de "tudo compreender" e muito menos tudo compreender a partir de pré-estabelecidos padrões "científicos" ou modismos acadêmicos. Porque pelo menos estes terão a sensibilidade de trazer de volta à narrativa historiográfica os "personagens" das histórias, e não mais a "razão" da história com "h" maiúsculo, ao modelo das grandes narrativas que não passam de mitos bem contados.
Reclama a crítica que o segundo volume "quase ignora a população", o que não é correto.
A população que viveu sob o jugo da ditadura militar ou estava no porão ou na "superfície" colaborando, ou na clandestinidade, ou (quase todos) estávamos quietos aguardando o tempo melhorar, que é normalmente onde sempre estão as populações debaixo de repressão. Os mais jovens estávamos maravilhados com a aparição da televisão, marchando na parada do 7 de Setembro diante das "autoridades", colecionando adesivos ufanistas do "país que vai pra frente". Todos comparecem à história de Gaspari. Se ninguém foi esquecido, ninguém foi mitificado. Reclama a crítica de "estereótipos assacados contra um dos lados da contenda ideológica (a esquerda)", quando o que aparece é uma visão da esquerda armada desprovida de heroísmo. Se a "ordem" supostamente pretendida pela ditadura virou "bagunça", a "revolução" faltou ao encontro com a esquerda armada. E a opção pela clandestinidade foi idiossincrática, e muitos foram à guerrilha como se fossem acampar em Woodstock. A história não é só isso, mas é também um pouco disso. Dizer que a escolha pela luta armada não foi heróica, mas idiossincrática, não é nenhuma injúria às vítimas do porão e nem "elogio áulico". É uma descrição aproximada do espírito do tempo e das limitações da resistência. Descrever essa história sem heroísmo é parte da "verdade histórica", e assim aparece na obra de Gaspari, que consegue traçar sutis distinções no mundo da "superfície" social.
Compreensões estereotipadas do "motor da história" e das forças subterrâneas (os modos de produção econômicos) não permitem compreender a topografia acidentada da superfície (a superestrutura política e social). Esse caminho talvez seria o grande falsificador da história, porque todos estaríamos no mesmo barco, tanto os que elegeram a tortura quanto os que nada fizeram, porque não sabiam o que fazer. Apesar de reclamarem da ausência de "população" na história, os críticos parece que mitificam a história para circunscrevê-la a uma "contenda ideológica" entre uma instituição militar homogênea e uma esquerda heróica. Deve ser por isso que elegem o critério nada científico de "vitória/derrota" como diferencial na história. Segundo os críticos, a diferença, em última análise, entre a resistência brasileira à ditadura militar e outros movimentos de resistência, é a derrota da primeira e vitória dos últimos. O que equivale em última análise a eleger a "vitória" como diferencial histórico.
É mérito de Gaspari descrever as "profundidades" da superestrutura, sob as metáforas de "porão" e superfície (ou dos andares de cima, numa metáfora arquitetônica, apropriada quando se trata de rígidas hierarquias) e identificar onde havia alternativa ética para agir de outro modo. É compreendendo a gênese do porão, a força que obtém a meganha, a "tigrada", e a legitimação que recebem da superfície, que se compreende a gênese da impunidade, da ausência de direitos, em suma, da essência do arbítrio, que é formulado corretamente como o domínio total sobre o "corpo" de outrem. Ausente a sociedade civil, tampouco existe uma sociedade política, que lhe deva explicações, e diante da qual se tenha algum "direito".
Ocorria o mesmo no regime soviético, descrito por Heller, sistema em que "os membros do aparato soviético não são servidores civis, nem sequer num sentido teórico. Não respondem perante a cidadania, senão exclusivamente perante seus superiores". (Márkus, Heller, Fehér, ob. cit., pág. 196). A população, por seu turno, não tem direitos frente ao aparato, e se "algum apparatchik soluciona algo está fazendo um favor, não cumprindo um dever. Há as crianças boas que fazem mais favores que as crianças más: isso é tudo que os distingue. Dito em termos mais precisos: os súditos de Estados de tipo soviético somente têm dois direitos; ius supplicationis (o antigo direito feudal de pedir favores) e o de denunciar".
Sem espaço para mitos
Algo semelhante aparece em Gaspari, quando examina as relações complexas entre a "tigrada" e a superfície judicial que dá "cobertura" e verniz jurídico ao arbítrio. Há um jogo de dependência recíproca bem representado na superfície pela "doutrina do ‘não acredito’, ‘não pode ser’, ou do ‘não pago para ver’" (vol. II, pág. 263).
"Para funcionar, o porão expande-se além das fronteiras da sua clandestinidade. Ele precisa de diretores de hospitais, médicos e legistas dispostos a receber presos fisicamente destruídos, fraudar autos de corpo de delito e autópsias. Outro vínculo natural surge nas fímbrias da plutocracia, junto à qual a máquina de repressão vai buscar dotações extra-orçamentárias. Por mais que esse serviço seja conduzido com discrição, sua mecânica acaba fazendo que apareçam tanto o empresário prestigiado na sua comunidade em função das conexões que montou no porão, como o torturador que pretende se transformar em homem de negócios.
Quanto mais duro o regime, mais prestígio tem o promotor, médico ou empresário que colabora com o porão. Ao menor sinal de liberalização toda a teia é duplamente ameaçada. Primeiro, pela perda do poder. Depois ? e aí reside o risco temível ? pela exposição dos crimes. A rede, assim como o torturador, vale-se da ditadura para amealhar suas recompensas, mas precisa que ela persista, quer para encobrir delitos, quer para disfarçar o rastro de ligações perigosas." (vol. II, 29).
A obra de Gaspari, nos dois volumes já trazidos a público, demonstra com bastante vigor a tese sintetizada no primoroso parágrafo reproduzido acima, que integra o segundo volume, justamente onde seus críticos percebem uma "queda de interesse", porque ausentes as "massas".
A opção de Gaspari pelo uso da tortura como "diferença específica" da ditadura militar tem tanto ou mais direito de apresentar-se como uma hipótese historiográfica séria quanto a de outros que apresentam a história como devir de essências encobertas que desenvolvem a acumulação capitalista. Não será por isso uma hipótese falsa. Se parece liberal, é possivelmente porque seja mesmo liberal, mas nada disso tem a ver com o laissez-faire, e sim com o liberalismo político clássico que no século 19 soube identificar a tirania absolutista e erguer-se contra ela. A ditadura é um regime de supressão da sociedade civil, e sua história pode ser contada como história de um tipo de despotismo. Identificar sua diferença específica no fato de que ela franqueou-se impunemente o domínio sobre o corpo de outros, derrogando a grande conquista da modernidade que foi a universalização do direito de hábeas corpus, é uma boa hipótese de análise política.
Se foi possível aos autores recortar do texto frases de efeito que ? isoladamente e fora de contexto ? podem conferir à narrativa de Gaspari certo tom heróico, na descrição de vidas de personagens históricos que tudo podiam, e em sua auto-imagem tudo decidiam, pelo bem ou pelo mal da História, como palco de sua aparição colossal ? faltou-lhes a dimensão profunda da compreensão integral do texto. Na íntegra, a obra de Gaspari está longe de ser apologética e absolutória. Criticam-lhe aquilo que ela tem de mérito: é uma história de pessoas humanas, que também tiveram em suas decisões particulares um papel particularmente essencial no desenrolar dos fenômenos que são objeto da história.
O que é criticado é o que torna a obra de Gaspari primorosa: a análise psicológica profunda, sem ranços de condescendência, apologia, melodrama; a apresentação de tipos humanos em suas contradições intrínsecas, divergências entre o que pensavam fazer e de fato faziam, a apresentação de instituições (como a polícia, o exército, a própria esquerda armada) que não são homogêneas ou meras funções (aparelhos repressivos, ideológicos ou o que o valha), mas grupos humanos heterogêneos que têm (tiveram) diante de si a oportunidade de escolher, quando as cartas estavam na mesa, e o fizeram. A narrativa de Gaspari não escusa ninguém. Não há ali espaço para mitos, nem para as concepções homogêneas dos grupos sociais em conflito que, sob o prisma do radicalismo político, possam ser identificados como os portadores do Bem em si ou do absoluto Mal. Talvez Gaspari exagere na total "ausência de racionalidade" do movimento militar, mas também deixa de lado, corretamente, o que chama de "beatificação das massas", que fariam cada momento de recuo do regime ser conseqüência direta de uma "pressão das forças libertárias" (vol. I, Introdução, pág. 40/41).
IV
O fato de que a "vergonha" seja a categoria principal no título do primeiro volume é indicativo de que se faz também um diagnóstico ético (não moral) dos agentes envolvidos na história. Na história da ética, a vergonha é decisiva em instituições pré-modernas, em que a comunidade (o coro) se encarrega de julgar o desvio dos padrões por todos compartilhados. Modernamente, ela tem importância secundária, desde que a modernidade torna a escolha de valor moral subjetiva, até porque os valores comuns se fracionam e não há mais pautas de valores compartilhadas por todos (a modernidade, em seus valores, é "politeísta", como disse Max Weber). A "vergonha" só reaparece como elemento significativo lá onde a alienação torna as pessoas de novo sujeitas apenas ao olhar externo, pois que a voz da consciência moral desaparece ou perde o sentido. É quando essa voz interior já não faz sentido que se consegue saltar da repressão "envergonhada" para a escâncara. Debaixo da repressão ideológica ou de força novos valores formam as tabelas de prêmios e castigos, e é por esses novos valores que se orientam os que pretendem triunfar no poder.
A descrição desses mundos alienados e de seus valores tem algo de oitocentista, mas não se parece com os contos de fadas das biografias dos grandes heróis da história universal. Antes, lembra o poder do Aufklärung, movimento que dissecou os comportamentos humanos alienados sob regimes absolutistas. Lessing imortalizou a natureza do poder, na figura trágica de Emilia Gallotti, ao sentenciar: "O poder não é nada. A sedução é o verdadeiro poder" (Gotthold Ephraim Lessing, Emilia Gallotti V, 7).
Não há nas relações de sedução do poder qualquer reflexo, ainda que desigual, de fatores de produção econômica. A regra do jogo absolutista é de mera chance, arbítrio, e por isso todas as relações humanas que envolvem a sedução do poder são de mesma natureza: não há aqui lealdades, não há ideais, não há "razão" nessa história.
Joguete dos deuses
A historiografia de Gaspari vai sim ao subterrâneo do agir humano que determina os rumos da história (hoje fechada, mas que deixa herança) da ditadura militar. Seus tipos não são estereotipados, como se encontra nas histórias ditas "profundas" e analíticas dos fatores de produção da história que mitificam populações e instituições (e apresentam as forças ideológicas como massas uniformes de pensamento e ação, representando sem o saberem a vontade da providência divina que guia a história). As instituições são por Gaspari vistas em toda a sua contradição: são instituições formadas por pessoas que pensam e agem, algumas mais, outras menos, que têm suas éticas e até mesmo a ausência de qualquer valor em nome da mera sobrevivência pessoal nos escalões da burocracia, microcosmo onde reside o poder.
É a história da "tigrada" (o subterrâneo da instituição policial/militar) e sua complexa relação com a superfície (juízes, promotores, peritos). Os tipos vão além das individualidades (por isso não é uma história de grandes heróis, como imaginam os autores da crítica) porque têm seu modo próprio de produção identificado no regime político, na ausência de espaço público e de democracia. E é essa superfície política que engendra, em retorno, um novo modo de acumulação capitalista formado pelo clientelismo e a corrupção, que integram "essencialmente" os regimes políticos ausentes de democracia.
A obra de Gaspari é poderosa, em sua capacidade de seleção e armazenamento de dados históricos, e feliz na utilização de um arsenal compreensivo adequado aos dados com que trabalha. Gostem ou não os críticos marxistas, é uma obra de historiografia liberal, mas não no sentido que dão ao termo, e sim no sentido político. Quem examina a falta de liberdade e ausência de espaço público não se permite encobrir a narrativa com números da acumulação de capitais. Sabe que eles são números engendrados pela própria "política" e pelo seu modo particular de produzir riqueza, ainda que obviamente acabe entrando em "compromisso" com as elites econômicas.
O espírito do nosso tempo já não se conforma com "grandes narrativas" históricas em que o elemento humano é simples joguete das tramas dos deuses, sejam esses deuses antigos ou modernos, como o mercado e suas leis, como em muitas das concepções historicistas fundadas na herança hegelo-marxiana.
A aparição de fenômenos eminentemente políticos da segunda metade para o fim do século 20, como o fundamentalismo, dirá que Arendt tinha razão ao resgatar a "dignidade da política" das mãos da divindade chamada "História do Mundo". Nesse resgate, as opções individuais e institucionais das pessoas que ? formando elites ou grupos de pressão na sociedade civil ? têm responsabilidade pelo devir histórico, são mais valiosas do que foram consideradas até agora. Uma história que resgate a dimensão complexa das instituições políticas, em toda a sua crueza e realidade, funciona como um elemento esclarecedor, e não alienante, na tomada de decisões dos indivíduos que são, uns mais outros menos, responsáveis pelos acontecimentos. É hora de assumir a dimensão de "decisão" na história e na política, não no sentido providencial, do grande herói, mas no sentido de escolha ética entre diferentes possibilidades éticas, e de dizer que "quando as cartas estão na mesa, temos que fazer alguma escolha". Que cada um responda pela sua. Até mesmo pela escolha de deixar-se seduzir pelo poder.
V
Mais importante de tudo é que, diversamente de compreensões históricas que sobreenfatizam a descontinuidade (por exemplo, a literatura de transição, que nada sabe do presente a não ser que é o que vem depois da ditadura militar), uma obra como a de Gaspari permite que reencontremos o fio de continuidade na história do coronelismo nacional. Este teve, antes de 1964, um acento ideológico, passou por um intervalo repressivo, para retornar, sob a forma de resistência à Constituição democrática de 1988, nos anos de 1990 a 2002, ao formato anterior. Pode-se situar As ilusões armadas em linha de continuidade com a descrição do coronelismo de Victor Nunes Leal (que também é uma análise de superestrutura).
Relata Nunes Leal que a concentração do poder de decidir o que ocultar da Justiça em mãos policiais foi "diferencial" que permite, ao lado do filhotismo, do clientelismo e outras relações de subordinação e coordenação entre as elites políticas e o poder econômico, identificar o sistema coronelista.
"A reação contra o judiciarismo policial dos liberais de 1832, com as funções policiais entregues a juízes de paz eletivos, foi certamente excessiva com a inversão operada ? o policialismo judiciário, confiadas às autoridades policiais funções nitidamente judiciárias" (Leal, Victor Nunes, Coronelismo, enxada e voto ? O município e o regime representativo no Brasil, 3? ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, pág. 222).
Apesar de haver lei limitadora à autonomia policial, em 1871, "pequenos delitos continuaram a ser por elas processados, e os chefes de polícia conservaram a atribuição de formar culpa e pronunciar em certos casos. Nada fez a lei no sentido de conferir independência aos funcionários policiais: embora com menores poderes, continuaram a servir de instrumento da situação política, notadamente em épocas de eleição" (idem, pág. 223).
Expectativa da impunidade
Victor Nunes Leal conseguia, como já não o fazem mais os juristas de hoje e muito menos os escalões superiores do Poder Judiciário, ver nas "leis" também fenômenos de domínio político.
"Durante a primeira República, a organização policial foi um dos mais sólidos sustentáculos do ‘coronelismo’ e, ainda hoje, em menores proporções, continua a desempenhar essa missão" (idem, pág. 226).
"Mesmo entre os juízes vitalícios aparecem por vezes expressões chocantes de partidarismo. As garantias legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas: transferência para lugares mais confortáveis, acesso aos graus superiores, colocação de parentes, gosto do prestígio, eis os principais fatores da predisposição política de muitos juízes" (idem, pág. 243).
A pós-história das "ilusões armadas" ainda tem o que contar. A tigrada do porão e a superfície que lhe dá cobertura não são elementos que desaparecem da vida institucional brasileira. Fernando Henrique Cardoso sabia o que fazia ao comandar um império de feitio bismarckiano cujo elemento essencial era de restauração política da ordem policial/militarista combatida pela Constituição democrática de 1988. Deixou a presidência, ao cabo de oito longos anos, jactando-se de ter banido o coronelismo da vida política brasileira, mas produzindo todo o contrário e deixando "cruzados" no fortalecimento da "autonomia policial" e combate à instituição constitucional do Ministério Público. Sabia o presidente que, alterando-se o poder no Executivo, o foco da restauração se trasladaria para o Judiciário, e sabia bem por que indicou para o Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim e Gilmar Mendes.
A recente decisão da 2? Turma do Supremo Tribunal Federal, limitando o dever legal de policiais de se apresentarem diante do Ministério Público em apuração criminal quando regularmente notificados (RHC n? 81.326, unânime, ausentes os ministros Celso de Mello e Maurício Corrêa, julgamento em 6/5/2003), serve como uma luva à tigrada, não serve aos muitos servidores policiais de índole democrática.
O Supremo Tribunal Federal, sob os auspícios de Nelson Jobim, Gilmar Mendes e Carlos Velloso, restaura a expectativa da impunidade.
Por dinheiro ou sedução
O que permite ao porão ser uma força de produção histórica é essa impunidade, essa doutrina de que tortura "não existe", eu não acredito e nem quero ver. A doutrina hoje amplia-se para abafar a mais ínfima das prevaricações e improbidades. Nada que for praticado por policiais pode ser visto, salvo se as próprias corporações o quiserem, e elas não o querem.
Jobim reclama para seu voto o "contínuo" histórico, e tem razão, exceto por ignorar o descontínuo histórico, recusando reconhecer que a história constitucional brasileira recomeça em 5 de outubro de 1988. Antes disso, a história que lhe faz parte essencial já está bem contada.
A da resistência à restauração, que é permanente, ainda depende de todos nós.
Pode ser que ao Supremo Tribunal se lhe aplique a regra da absoluta alienação de instituições burocráticas que não percebem o sentido político de seu agir. Pode ser que não saibam o que fazem. Mas, sabendo ou não, constitui fator preponderante na liberação dos instintos do subterrâneo.
A vergonha ainda tem, no Brasil, muita história para contar, embora se tenha tornado bem mais sofisticada do que a tortura física. A ditadura cassou o direito de hábeas corpus: os tribunais superiores, renovados em grande proporção por Collor e Fernando Henrique, o comercializaram, por dinheiro ou pela sedução do poder.
(*) Procurador da República, mestre em Direito (UFSC) e Filosofia pela New School for Social Research, NY, EUA
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