Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Hélio Schwartsman

HOUAISS vs. AURÉLIO

"Além da imaginação", copyright Pensata (www.pensata.com.br), 30/08/01

"Foi em 1992 ou 1993 que fiz uma longa entrevista com o acadêmico Antônio Houaiss. O tema era o já mítico dicionário que o filólogo elaborava. A conversa, obviamente, não se limitou à lexicografia. Ele discorreu também, com a competência que lhe era habitual, sobre culinária, socialismo e a gripe espanhola. Impressionou-me o orgulho com que ele se proclamava socialista, mesmo naqueles tempos pós-queda do Muro de Berlim, em que os delírios neoliberais atingiam seu apogeu.

Em relação ao dicionário propriamente dito, devo dizer que sua preparação atravessava então um momento bastante ruim. Saí com a nítida impressão de que eu não veria, em vida, a obra publicada. É com grata surpresa que constato agora que estava errado. Soube pela revista ?Veja? desta semana que o ?Houaiss? chega nos próximos dias às livrarias.

Vocês vão rir da minha cara, mas me emociono toda vez que abro um bom dicionário. O lexicógrafo, mais do que padres e loucos, é o sujeito menos compreendido do mundo. Num certo sentido, a culpa é dele mesmo, pois se propõe racionalmente a fazer o irrealizável.

Quem resume bem o paradoxo é Andrieux, autor do ?Dictionnaire Français-Anglais?: ?Todos os outros autores podem aspirar ao elogio; os lexicógrafos só podem aspirar a escapar às críticas?. Nunca escapam. Em parte por culpa deles mesmos.

Boas histórias de dicionários e dicionaristas podem ser encontradas no impagável verbete ?Encyclopaedias and Dictionaries?, assinado por Allen Walker Read, da indispensável ?Encyclopaedia Britannica?.

No ano da graça de Deus de 1599, um holandês cujo nome o tempo se encarregou de apagar, conhecido hoje apenas por A.M., resolveu traduzir do latim para o inglês um importante trabalho médico de Oswald Gabelknouer, intitulado ?O Livro da Física?. Só que A.M. já deixara de viver na Inglaterra havia muito tempo e, por isso, esquecera quase inteiramente o idioma. Mas ele não se intimidou e optou por improvisar mesmo. O bravo A.M. simplesmente colocou terminações inglesas nas palavras latinas. Alguns de seus amigos o advertiram de que nenhum súdito da coroa teria a menor idéia do que estaria lendo.

Novamente, o bravo A.M. não se intimidou, fez uma lista de seus barbarismos, traduziu-os por um sinônimo inglês simples e a apôs ao livro. Alguns exemplos: ?Frigifye, reade (leia-se) coole; Calefye, reade heat; Circumligate, reade binde?. Robert Cawdrey, autor de um importante dicionário inglês, usou a errata de A.M. como fonte de sua obra. Foi assim que o inglês ?ganhou? algumas dezenas de palavras latinas.

Um outro inglês, Henry Coockerram, foi ainda mais longe. Ele inventou palavras cujo som apreciava e as meteu em seu dicionário. Criou, entre outras preciosidades: ?adpugne, adstupiate, bulbitate, catillate, fraxate, nixious?. Obviamente, vários dicionaristas posteriores chancelaram a criatividade de Coockerram, repetindo essas barbaridades em suas compilações. Eu, infelizmente, não posso contar o que esses termos significam, porque o sr. Noah Webster (autor do dicionário que tenho em mãos) teve a excelente idéia de retirar essas coisas de sua obra.

Surgidos numa era anterior ao politicamente correto, dicionários também ajudaram a perpetuar preconceitos. É o caso do célebre ensaísta, crítico e lexicógrafo Samuel Johnson, autor de um dos mais importantes dicionários da língua inglesa, datado de 1775. Ao definir a palavra ?oat? (aveia), Johnson não se conteve e destilou todo o seu preconceito contra os escoceses. Ele escreve: ?Um grão, que, na Inglaterra, é geralmente dado aos cavalos, mas, na Escócia, alimenta o povo?.

Há casos em que o dicionarista é a vítima, não o autor do crime. O mais infeliz dos lexicógrafos foi Thomas Cooper, autor de ?Thesaurus Linguae Romanae et Britannicae?, um dicionário latim-inglês. É John Aaubrey quem relata o infortúnio de Cooper: ?Sua mulher… irreconciliavelmente irritada com o fato de ele ficar até tarde da noite compilando seu dicionário… Quando ele já o tinha pronto pela metade, ela teve a chance de entrar em seu escritório, pegou todas as suas anotações e as atirou no fogo, queimando-as?. O paciente Cooper recomeçou tudo de novo e finalmente publicou sua obra em 1565. Não se sabe exatamente o que ele fez à sua mulher.

Se coisas desse tipo ocorrem na lexicografia inglesa, infinitamente mais desenvolvida do que a portuguesa, por aqui o panorama é ainda mais sombrio. Espero que o Houaiss nos traga algumas luzes, embora não se possa esperar que resolva todas as dificuldades.

De De Morais a Aurélio, as definições das principais palavras da língua são muito semelhantes. As abonações são com grande frequência as mesmas. Os erros etimológicos abundam e, como um usa o material do outro, se perpetuam. Pior, nem são originais. Um exemplo: quase todos os dicionários da língua portuguesa _há honrosas exceções_ dão uma fantasiosa porém poética etimologia para a palavra eclipse. Fazem-na remontar ao grego ?ekleípsis? que significaria desmaio.

De fato, o termo eclipse vem do grego ?ekleípsis?, mas o sentido, nem de longe, lembra o de desmaio. O erro etimológico primordial foi cometido por Maximilien-Paul-Emile Littré, o grande dicionarista francês que publicou sua obra em 1873. De lá para cá, boa parte dos lexicógrafos da língua portuguesa vem repetindo o equívoco, já há muito sanado pelos modernos dicionários franceses.

Fazer um dicionário está entre as tarefas mais difíceis a que um ser humano pode se propor. Desconfio que a idéia que move o lexicógrafo é produzir o livro de todos os livros. Da mesma forma que os átomos são as unidades mínimas de matéria, as palavras são as menores unidades de sentido de um idioma. A partir delas, tudo o que pode ser pensado pode também ser dito.

Pelo menos simbolicamente, a proposta de reunir numa obra o significado de ?todas? as palavras remete à onipotência. Só que a empreitada, nessa dimensão totalizante, está fadada ao fracasso.

Qualquer que seja o dicionário deixará necessariamente mais palavras de fora do que será capaz de incluir. Afinal, como meter num respeitável livrinho de 228.500 verbetes, como o ?Houaiss?, os cerca de 600 mil termos médicos, mais de 2 milhões de espécies de insetos e número quase infinito de compostos químicos?

Na verdade, um dicionário completo teria de abarcar, não só tudo o que existe, mas também tudo o que pode ser imaginado. Talvez ainda mais."

 

"Criador do ‘Aurélio’ lança ataque", copyright Jornal do Brasil, 30/08/01

"Quando perguntam ao jornalista Joaquim Campelo, 70 anos, qual é o envolvimento dele com o dicionário Aurélio, da editora Nova Fronteira, ele cita uma declaração do editor Sérgio Lacerda. ?Ele costumava dizer que enquanto o Aurélio Buarque de Holanda Ferreira era o pai, eu era a mãe do dicionário?, afirma, de Brasília, o atual assessor da presidência do Senado. É com obstinação maternal que ele defende o Aurélio na disputa aberta com o lançamento do Dicionário Houaiss de língua portuguesa, da editora Objetiva. ?Não vejo consistência no Houaiss. Um léxico deve ser claro, objetivo, e este parece um dicionário com pretensões enciclopédicas?, afirma.

Colaborador do professor Aurélio desde meados dos anos 50, Campelo critica o tom vago de alguns verbetes. ?Não dá para ter ruído nas definições. Não podemos falar de saudade como um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude. Isso revela precariedade e impropriedade vocabular.? Ainda em relação à mesma palavra, o jornalista chama atenção para o elogio do escritor português José Saramago. ?Soube que ele elogiou os autores, reconhecendo que eles estavam fazendo poesia. Isso é uma grande bobagem. Um insulto. Só pode ser ironia. Não há lugar para poesia em um bom dicionário.?

Verbetes – Campelo também questiona a quantidade de verbetes do Houaiss. Até o fim da próxima semana, o novo dicionário deve chegar às livrarias com 228.500 verbetes. Sessenta e oito mil e quinhentos a mais que o Aurélio, cuja primeira edição saiu em 1975 e a última data de 1999. ?Quantidade não pode ser confundida com qualidade. Sou capaz de fazer um dicionário com 500 mil verbetes. Só em microbiologia temos mais de 60 mil palavras?, lembra.

Para o jornalista, os equívocos do novo dicionário podem ser explicados, em parte, pela quantidade de pessoas envolvidas no projeto. Segundo o lexicógrafo Mauro Villar, coordenador do projeto, em quase dez anos 140 profissionais se dedicaram à elaboração do banco de dados que deu origem à publicação. ?Com essa montanha de gente se perde a qualidade. Fizemos a primeira edição do Aurélio com cinco pesquisadores e cinco assistentes?, lembra.

Ao comparar os dois dicionários, Campelo destaca as diferenças de personalidade entre os dois autores. ?Conheci bem os dois, duas personalidades admiráveis. O Aurélio era um professor e transmitia seus conhecimentos como ninguém. Ele conhecia os assuntos de forma abrangente. Já o Houaiss, dono de uma inteligência brilhante, era bem mais profundo.?

Cifras – Campelo, que soube do lançamento através da imprensa, se mostra espantado com as cifras. Além dos recursos captados com os incentivos da lei Rouanet para a criação do banco de dados, a editora Objetiva desembolsou R$ 5 milhões para finalizar o dicionário. ?Claro que ninguém vai questionar se é lícito eles receberem dinheiro do Estado, alegando que se trata de obra meritória. Mas fizemos o Aurélio sem receber um tostão?, afirma.

As dificuldades para lançar o dicionário que durante 26 anos deu a última palavra precisam ser levadas em conta, diz Campelo. ?Enfrentamos as dificuldades dos desbravadores. Como Quixotes, acreditávamos num ideal?, justifica Campelo, que pediu dinheiro a amigos para levar a idéia adiante. ?O José Roberto Torero deveria escrever um livro sobre as histórias daquele período. Comecei a trabalhar com o Aurélio em 1956 e o dicionário ficou pronto quase 20 anos depois.?

Na avaliação de Campelo, o sucesso junto ao público – até hoje foram vendidos 45 milhões de exemplares – confirma a vocação do Aurélio. ?Trata-se de uma obra com fôlego eterno. Agora, o Houaiss não é um fusca, mas também não chega a ser um Rolls Royce?, brinca Campelo, que evita a metáfora automobilística para elogiar o seu filho. ?O Aurélio é incomparável.?"

    
    
                     

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