Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Hélio Schwartsman

RACISMO

"Até onde vai a liberdade de expressão?", copyright Folha Online (www.folha.com.br), 27/12/01

"O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou habeas corpus ao editor Siegfried Ellwanger, que foi condenado, com sentença transitada em julgado, por crime de racismo. Ellwanger, que assina como S.E. Castan, escreve e vende livros com mensagens anti-semitas. Já li alguns de seus opúsculos. É puro lixo.

Através de mentiras, falácias, distorções, fraudes e todo tipo de falsificação da verdade, ele tenta provar que, durante o nazismo, nunca houve campos de extermínio e que os alemães é que foram vítimas de um holocausto perpetrado por judeus. Trata-se de material que ninguém com mais de meia dúzia de neurônios pode levar a sério.

Mesmo desprezando profundamente as atividades a que o sr. Ellwanger se dedica e apesar de minha ascendência judaica, que me dá motivos para querer ver aniquiladas na origem todas as formas de neonazismo, não acho que a condenação do editor faça muito sentido.

Não li os autos do processo, mas é evidente que estamos diante de um daqueles casos clássicos de oposição entre dois princípios constitucionais. De um lado, a Carta define o racismo como crime inafiançável e imprescritível; de outro ela estabelece uma liberdade de expressão forte, vedando apenas o anonimato.

Pessoalmente, fico com a liberdade de expressão. Para dizer a verdade, acho que foi demagogia do constituinte de 1988 a criação do crime de racismo. Leis não mudam a forma como as pessoas vêem o mundo e seus semelhantes.

O racismo é um fenômeno complexo, que se manifesta das mais diversas maneiras. Tipificar uma conduta racista para efeitos de enquadramento penal é quase uma impossibilidade. Prova-o o reduzidíssimo número de condenações por racismo transitadas em julgado.

Acho ótimo que a lei diga que é proibido discriminar alguém por motivos raciais. Só que não funciona. É simplesmente impossível provar em juízo que uma pessoa de uma determinada minoria deixou de receber uma promoção em virtude de sua ?raça?. Isso não quer dizer, evidentemente, que a discriminação não exista. Ela está aí e é muito forte. Pode até ser demonstrada por estatísticas, pelo baixo número de negros, por exemplo, em cargos de chefia. Diante do juiz, contudo, o chefe que preteriu o negro sempre poderá argumentar que preferia o outro candidato por razões legítimas. A lei não pode impedir que motivações subjetivas influam em decisões como as de promover, contratar, demitir.

O caminho para eliminar a chaga do racismo é bem mais árduo e penoso. Passa principalmente pela educação e, circunstancialmente, pela adoção de políticas de ação afirmativa, apesar das enormes dificuldades teóricas e práticas para implementá-las.

A questão da liberdade de expressão deveria ser mais cristalina. Eu sou um dos que a defendem em sua forma mais robusta. Pessoalmente, acho que, enquanto a polêmica está no campo das palavras, deve valer tudo.

Admito, porém, que essa é uma idiossincrasia minha. Muitos países democráticos condicionam a liberdade de expressão e não se tornam muito menos democráticos por isso. Na Alemanha, por exemplo, é proibido defender posições nazistas. No Reino Unido, ainda perdura uma lei de censura que não é exatamente tímida.

Nesse ponto, vejo-me obrigado a elogiar os norte-americanos que, pelo menos até o 11 de setembro, aplicavam a mais irrestrita liberdade de expressão. Você podia defender teses racistas, comunistas, nazistas. Podia até advogar a eliminação do governo federal. Bastava que não atirasse bombas contra prédios federais, que o pior que lhe aconteceria era ter agentes do FBI monitorando suas atividades.

Evidentemente, defender teses nazistas, anarquistas ou comunistas não é um fim em si mesmo. Mas, quando você pode fazê-lo, tem a certeza de que pode mesmo dizer tudo o que pensa a quem queira ouvir. E essa liberdade é, sim, uma das metas da democracia.

Talvez por vício de formação não consigo admitir a idéia de que a liberdade de expressão só vai até certo ponto. Ou há liberdade para pensar _e expressar esse pensamento_ ou não há. Aqui opera o princípio do terceiro excluído. Não importa se esse pensamento é algo verdadeiramente genial ou um amontoado de sandices ignominiosas, como no caso do sr. Ellwanger. A lei não pode constituir embaraço à plenitude do pensamento, o que implica renunciar ao controle sobre seus conteúdos.

Se o que os neonazistas dizem é uma montanha de mentiras, paciência. Temos de conviver com isso. Ou amanhã alguém poderá tentar nos censurar sob o pretexto de que o que dizemos também são mentiras. Viver em democracia não é fácil.

PS – Folgo na semana que vem, de modo que só retomo a coluna no dia 10 de janeiro. Feliz 2002 para todos!"

"STJ mantém condenação de editor de livros", copyright Folha de S. Paulo, 28/12/01

"O Superior Tribunal de Justiça manteve, nesta semana, sentença da Justiça do Rio Grande do Sul que condenou Siegfried Ellwanger a dois anos de prisão por racismo em razão da edição e da venda de livros com mensagens anti-semitas. Ellwanger moveu habeas corpus contra a condenação, mas a decisão foi mantida com base na Constituição e na legislação penal. Pela Constituição, o racismo é crime imprescritível e inafiançável."