Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Hollywood marchou pela paz

A MÍDIA NÃO VIU

Tanira Lebedeff (*), de Los Angeles

Na fotografia, George W. Bush aparece fazendo uma careta. Para John Remy, um estudante de História de fala mansa e cara de muitos amigos, era a imagem perfeita para criticar a política do presidente de seu país. John colou a foto numa cartolina e sob ela escreveu: "Person of mass destruction", ou "pessoa de destruição em massa". "Os motivos para a guerra não são os que ele (o presidente) declara em público, são interesses particulares que podem resultar na morte de iraquianos e americanos. Ele é mais perigoso que qualquer arma que Saddam Hussein possa estar escondendo", o estudante justifica o cartaz que carregava na caminhada do dia 15 de fevereiro.

Junto a outras 100 mil pessoas (número da organização do evento), John caminhou pelas ruas de Hollywood, na Grande Los Angeles, para pedir paz e repudiar a guerra contra o Iraque. Símbolos da indústria que tantas vezes repete em seus filmes os mesmos valores, e elege como vilões os inimigos ditados por Washington foram, ironicamente, o cenário das manifestações: a caminhada começou na Hollywood Boulevard, em plena Calçada da Fama, passando pelo Teatro Chinês, pelo Roosevelt Hotel (onde aconteceu a primeira entrega do Oscar) e em frente a um centro de recrutamento do Exército americano, até chegar à Sunset Boulevard.

Eles não tão espontâneos ou barulhentos como seus vizinhos latinos ? quem já participou de qualquer movimento popular no Brasil teria achado essa manifestação silenciosa demais. Mas esse comportamento é reflexo de uma cultura em que tudo é tão organizado e eficiente que chega a ser entediante. Aqui pequenos prazeres da vida, como tomar uma cerveja na beira da praia, são proibidos em nome da ordem. Portanto, ver a multidão protestando nas ruas é alentador.

O ator Daryll Roach estava assistindo TV em casa quando sentiu a urgência de protestar: "Tive que sair para dizer não, isto não pode ser verdade, isto é errado. Tenho esperança de que possamos debater, evitar a guerra."

Nat Lam e um grupo de amigos foram cobertos de tinta vermelha e bandagens, fantasiados de "casualties of war", ou vítimas civis de uma guerra. "Queremos mostrar que muitas bombas atingem civis, não são apenas os soldados que morrem. E as câmeras de TV não mostram isso, o público não vê as mulheres e crianças mortas durante a guerra", ele explica.

Sean Penn para presidente

No palco montado no fim do trajeto, numa esquina da Sunset Boulevard, Ron Kovic ? o veterano da Guerra do Vietnã cuja autobiografia virou filme ("Nascido em 4 de julho") ? convidou os manifestantes para cantar, de mãos dadas, Give peace a chance, de John Lennon.

Discursos entusiasmados resumiam o sentimento dos manifestantes: não apoiamos o presidente (a eleição de Bush continua mal-esclarecida), o mundo precisa saber que não apoiamos a guerra.

O ator e ativista político Martin Sheen subiu ao palco com seus colegas de elenco do seriado The West Wing, em que vive o presidente dos Estados Unidos. Inspirado, misturou versos de protesto com a Oração de São Francisco: "Por uma lógica demente, homens mulheres e crianças do Iraque são relegados à condição de efeito colateral. Enquanto os cães de guerra latem sobre Bagdá, Senhor, fazei de nós instrumentos de vossa paz."

Enquanto o presidente fictício era ovacionado, o da "vida real" era alvo de bem-humoradas críticas e muita indignação. Um manifestante queria "Sean Penn for president", elogiando a atitude pacifista do ator. Penn visitou o Iraque no fim do ano passado, e no início da crise já publicava nos principais jornais americanos um apelo para que Bush evite o conflito armado.

Jim Williamson, funcionário de uma universidade, pedia: "Inspect Bush?s head", ou "inspecione a cabeça de Bush". Ele explica: "Acho que deveríamos continuar as inspeções (no Iraque), é o que a maioria do mundo quer. O governo americano é o único que quer a guerra, e isso é amedrontador, nós não somos essas pessoas."

Todos na multidão tinham suas bandeiras: "How many Iraqis per gallon?" (quantos iraquianos por galão?), "No blood for oil" (não troque sangue por petróleo), "Stop the madness of King George" (acabe com a loucura do Rei George) e o clássico "Make love not war" (faça amor, não faça a guerra).

Korene Russell tem bons motivos para ser "Pro-Soldier Anti-War": "Meu marido serviu na Marinha por cinco anos. Foi ferido, e tivemos que lutar durante dois anos para receber uma indenização. Não há dinheiro para os veteranos. Vamos mandar mais homens para a guerra e o governo não se importa em ajudá-los ou apoiá-los quando eles voltam para casa".

"É importante que o povo americano veja que muitos somos contra essa guerra. Alguns discordam em silêncio, mas está na hora de gritar. E é importante que o resto do mundo saiba que não somos esse governo", diz a professora Blanca Adajian, carregando um cartaz em que se lê "War with no end? Not in our name!" (Guerra sem fim? Não em nosso nome); "1, 2, 3, 4, We don?t want no racist war! 5, 6, 7, 8, Stop the killings! Stop the hate!" (Nós não queremos essa guerra racista! Acabe com os assassinatos! Acabe com o ódio!)

Se a dinastia Bush pretende invadir o Golfo Pérsico como fez há uma década, a sociedade civil americana também parece estar repetindo alguns capítulos de sua história. Afinal, foi no sul da Califórnia que surgiu, no fim dos anos 60, o movimento hippie, de resistência à Guerra do Vietnã. Jovens indignados com a pobreza, o racismo e o envolvimento na guerra deram as costas para a tradição, o governo e a América corporativa.

Não em meu nome

A impressão que se tem é que os americanos passaram a conhecer melhor a política externa de seu país a partir dos atentados de 11 de setembro ? e não querem mais a responsabilidade pelos males do planeta. "Eu leio jornais estrangeiros pela internet para ter uma visão mais equilibrada, além do que a mídia americana apresenta. Fico estarrecido, não acredito que este país esteja fazendo isso ao mundo", diz o funcionário público Jim Williamson.

A caminhada pela paz em Los Angeles foi organizada por uma coalizão de movimentos sociais que formam uma frente de resistência contra o ímpeto belicista da administração Bush. Outras ações estão sendo planejadas. No dia 1? de março milhares de pessoas devem se reunir em frente à Casa Branca, em Washington. No dia 5 de março (Quarta-feira de Cinzas), os ativistas prometem alterar a rotina das cidades americanas com um dia nacional de paralisação, incentivando a população a não abrir lojas ou escritórios, cancelar aulas e complicar o trânsito, dirigindo lentamente pelas ruas.

Manifestações como essas são uma oportunidade para que cidadãos do mundo inteiro aprendam a diferenciar "governo" de "povo". "Assim como não devemos estereotipar a população inteira de um país por causa de sua religião ou crença, espero que o resto do mundo não veja Bush como o reflexo dos valores de todos os cidadãos americanos. Há muitos que somos contra a guerra", afirma o estudante John Remy.

"O que fizeram com o Afeganistão, o que querem fazer com o Iraque e o que estão fazendo com nosso país é errado", protesta a professora Blanca. "Nossa economia está saindo pelo ralo, nossas escolas precisam de dinheiro, precisamos de assistência médica. Gastar um trilhão de dólares para atacar o Iraque é insano. Não quero que façam isso. Não em meu nome!"

(*) Jornalista