CASO DANIEL PEARL
"O jornalismo de luto", copyright O Globo, 23/02/02
"Se existisse uma bandeira oficial do jornalismo, ela estaria hasteada hoje a meio pau.
O estúpido assassinato de Daniel Pearl foi como um soco no estômago de milhares de repórteres e editores – não apenas daqueles que conheciam o jornalista do ?Wall Street Journal?, mas também dos que passaram a conhecê-lo, e a sua mulher grávida, por meio das matérias veiculadas ao longo dos últimos trinta dias.
Pearl era, segundo todos os testemunhos, um homem inteligente, engraçado e ocasionalmente distraído. Era também, novamente de acordo com todos que o conheceram, um repórter cauteloso, que se mantinha longe dos riscos, até que decidiu correr um que se mostrou fatal.
A morte de Pearl nos lembra do que muitos nas empresas jornalísticas não se dão conta: da extraordinária coragem daqueles que se colocam em situações perigosas em nome de uma reportagem. Tornou-se tão comum ler matérias enviadas de Cabul e Karachi, manchetes de Kandahar e Tora Bora, que muitas vezes nos esquecemos dos riscos envolvidos.
Sim, o assassinato de oito jornalistas no Afeganistão no fim do ano passado deveria ter sido o suficiente para nos fazer lembrar. Mas talvez tenha sido preciso o seqüestro de um americano para gerar o tipo de publicidade global necessária para nos convencer.
Por que esses repórteres fazem o que fazem? Eles acreditam, por mais fora de moda que isso possa parecer, na missão do jornalismo de revelar informações vitais. Eles se acreditam imunes aos riscos porque não são, assim como os integrantes da Cruz Vermelha, combatentes. Mas numa época de terrorismo, até mesmo essa distinção desapareceu. De fato, como no caso dos ataques com antraz, os assassinos de Pearl podem tê-lo escolhido justamente porque sabiam que um jornalista capturado iria gerar muita atenção. (HOWARD KURTZ é colunista do ?Washington Post?)"
"Jornalista foi morto como em ritual religioso", copyright Folha de S. Paulo / The Independent, 23/02/02
"O lúgubre vídeo que mostra o assassinato de Daniel Pearl chegou ao governo da Província de Sindh, no Paquistão, no final da noite de anteontem. Faltavam apenas algumas horas para o início do feriado islâmico do Eid al Adha, o ponto culminante do Hajj, peregrinação anual a Meca.
Daniel Pearl, correspondente do ?Wall Street Journal? no sul da Ásia, foi sequestrado quando estava em Karachi tentando encontrar elos entre Richard Reid, o britânico conhecido como o ?homem do sapato-bomba?, preso nos EUA, e extremistas islâmicos baseados no Paquistão. Ele desapareceu em 23 de janeiro.
A principal exigência dos sequestradores era que fossem enviados ao Paquistão, para serem julgados no país, os paquistaneses acusados de pertencerem à Al Qaeda presos na base americana de Guantánamo (Cuba).
Ninguém sabe quando Pearl foi assassinado. Mas o momento escolhido para a entrega do vídeo tem uma ressonância pavorosa.
O momento mais importante do Eid al Adha é o sacrifício de bodes e carneiros, num ritual que celebra a salvação de Ismael (Isaac para os judeus), que estava prestes a ser sacrificado por Abraão quando este matou uma ovelha em seu lugar. Em quintais e jardins de Casablanca a Mindanao, bodes gordos escolhidos a dedo têm suas patas amarradas, um pequeno buraco é cavado no chão para receber o sangue, e o chefe de cada família aperta o pescoço do animal sobre o buraco e o degola.
O vídeo também mostrou uma morte rápida, cerimonial. Segundo uma pessoa que a assistiu, a fita mostra o jornalista falando diretamente para a câmera, dizendo: ?Eu sou judeu e minha mãe é judia?. Depois, as mãos de seu assassino entram em cena e cortam sua garganta. Em seguida, como é feito com o carneiro ou o bode no Eid, Pearl é decapitado.
É possível que a divulgação da fita na véspera do Eid tenha sido obra do acaso. Os terroristas usaram um jornalista paquistanês como intermediário para entregar o vídeo que mostra o assassinato. Ele recebera a fita dois dias antes, mas precisou de 24 horas para convencer o consulado dos EUA em Karachi a levá-lo a sério.
Sem dúvida, não foi um sequestro tradicional, mas serviu para divulgar o que seus autores viam como uma grosseira injustiça americana. A idéia era impor um castigo simbólico a um indivíduo, não por ele ser jornalista, mas por ser americano, e, melhor ainda, judeu americano -logo, representante simbólico dos dois grupos que os fanáticos envolvidos vêem como seus arquiinimigos.
Em suas investigações em Karachi, Pearl entrara em contado com um oficial da ISI, a agência paquistanesa de inteligência, que o pôs em contato com Omar Sheikh, sequestrador de quatro ocidentais em Nova Déli em 1994.
Sheikh, que tem ligações com os grupos extremistas Harkat-ul-Mujahideen e Jaish-e-Mohammed, agiu com astúcia. Como fizera em Nova Déli, assumiu ares de ocidental. Raspou a barba e combinou se encontrar com Pearl, em torno de café e sanduíches, em Rawalpindi, em janeiro.
Ex-morador de Londres, Sheikh deve ter facilidade para identificar nuanças religiosas e étnicas pelo sotaque das pessoas e não deve ter demorado a concluir que Pearl era judeu. Judeu e americano, ou seja, exatamente o que era preciso: um bode sacrificial.
Mão-de-ferro
O presidente paquistanês, Pervez Musharraf, prometeu ontem achar os sequestradores de Pearl. ?Esse incidente intensificou nossa determinação e, nos próximos dias, lidarei com todos os tipos de terrorismo com mão-de-ferro.? (Tradução de Clara Allain)"