CADERNOS CULTURAIS
Antônio José do Espírito Santo (*)
Engrossando o caldo da questão que abordamos aqui no OI, sobre a pertinência de uma suposta "Nova Dramaturgia Carioca", José Carlos Aragão e Marco de Aquino levantam alguns aspectos muito interessantes sobre o assunto [veja remissões abaixo].
Para o jornalista e dramaturgo Aragão, a tal crise dramatúrgica não passaria mesmo de pretexto para ocultar razões ou interesses econômicos além de anseios de aculturação por parte de atores e produtores. Marco de Aquino parte logo para um convite, uma ação efetiva que, segundo ele, já mobiliza 300 pessoas, no Teatro (Espaço Cultural) Sérgio Porto, no Rio de Janeiro.
Bravos rapazes, ambos tocam em aspectos que podem ser, de certo modo, generalizados, servindo como carapuças sob medida para muitos outros representantes da cultura brasileira em geral.
A propósito, o tal Espaço Sérgio Porto nos remete a um fato ocorrido há poucos dias, que terá tudo a ver com a nossa conversa, se desviarmos o seu eixo para a música pop, por exemplo.Dia destes acontecia no Sérgio Porto debate envolvendo produtores de discos, músicos independentes, radialistas, especialistas em música pela internet etc. O seminário, interessantíssima iniciativa apoiada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, gestora e proprietária do espaço, fazia parte de uma série de eventos, de ampla repercussão na imprensa carioca, intitulada "Humaitá pra peixe".
Estava ali acompanhando um grupo de alunos músicos, interessados em saber onde foi que erraram ao não serem selecionados para a versão atual do evento e, de que modo poderiam se habilitar para futuras versões.
Na platéia, inteiramente repleta de músicos muito jovens, muito elegantes, bastante atentos a todos os aspectos ligados à produção, comercialização e outras minúcias técnicas do ofício, nenhuma palavra sobre novas tendências culturais, nenhuma crítica à qualidade artística dos trabalhos apresentados, nada sobre arte e música, em suma.
Se não fosse o figurino fashion, poderíamos confundir a maior parte da platéia com um grande bando de frios e aplicados candidatos a executivos de alguma multinacional.
(Cá entre nós, de que Brasil teria saído esta estranha juventude?)
Sem ohhh no recinto
Outro fato curioso chamava mais ainda a atenção: pelo andar da conversa, fomos descobrindo pouco a pouco que a programação musical do evento era dedicada exclusivamente a um certo tipo de banda de rock and roll. Como assim?, alguns alunos indagaram. Não havia sido divulgada nenhuma restrição de gênero musical durante as inscrições.
Isso mesmo. Naquele festival não haveria grupos de pagode, bandas de forró e outros formatos que, digamos assim, contivessem algo de muito claramente brasileiro ou "popular". Tudo indicava mesmo que até outros tipos de banda de rock and roll, hip hop ou de um outro viés pop qualquer teriam dificuldades para se encaixar no contexto.
Mesmo para um liberal e globalizado professor de música, as restrições a todos os outros modelos de bandas soou como um negócio meio estranho. Ali, representando uma faixa muito restrita do mercado fonográfico brasileiro, seriam expostas apenas bandas segundo curiosos critérios e regras de seleção que só mais adiante tivemos a chance de conhecer.
Não era para menos. Em nenhum momento se havia percebido o menor sinal de que aconteceria ali um debate propriamente.
Um aluno, mais sarcástico, já impaciente, aludindo à velha prática do "QI", comentou para a platéia: "Pois é, o nome do festival já diz tudo: Humaitá. Pra… peixe." Ao que o produtor do evento, sentindo-se naturalmente desafiado, declarou, seguro de si: "Eu seleciono as bandas. Sou criterioso. Tenho este direito porque produzo este evento há três anos!"
Nenhum ohhh no recinto. Nenhuma chama se acendeu no debate. Pelo contrário, mesa e platéia, cúmplices, rapidamente se articularam para abafar o assunto.
Para a plebe ignara
A esperada contradição entre jovens músicos, gravadoras e produtores de discos, num período de crise tão particularmente aguda no setor, decididamente não eclodiria ali naquele morno ambiente de inocentes garotos bem-nascidos. Afinal de contas, não era um evento de natureza pública, num espaço público, em grande parte ou de algum modo bancado pela Prefeitura da cidade? Afinal de contas, estes espaços culturais públicos, ou seja, financiados com o nosso imposto, não deveriam servir, primordialmente, para estimular aqueles elementos de nossa cultura emocional, artística ou mesmo financeiramente mais importantes para a maioria de nós, brasileiros?
Nunca é demais ressaltar que, em termos semânticos ou absolutos, a expressão pop, aplicada a qualquer gênero de arte, quer dizer pura e simplesmente popular, em oposição a erudito, e não a norte-americano ? como sutilmente alguns querem nos fazer crer.
Ou não?
Alguém precisa dizer a estes garotos e a seus diletos produtores que é necessário rapidamente se situar. É preciso se ligar.
O recado poderia ser repassado à secretária de Cultura da Prefeitura que, convenhamos, não é tão garota assim.
Qualquer profissional do ramo, produtor musical, executivo de gravadora, divulgador etc. deve saber que, na luta desleal entre a produção fonográfica brasileira e a hegemonia sufocante das grandes fábricas americanas, a grande jogada dessas últimas foi bancar, a preço de banana, o surgimento no Brasil de bandas de rock and roll, sucedâneas das bandas gringas de lá.
Criadas a partir dos anos 80 no seio da classe média das principais cidades brasileiras, e vivamente estimuladas por um certo tipo de crítico musical, estas bandas fake foram amaciando o gosto deste público, formando um exército de consumidores de produtos musicais estrangeiros, entre os quais, é claro, os discos e CDs das tais bandas gringas originais.
Para as sucedâneas, sobrou, portanto, um naco qualquer do mercado interno, competindo com os sertanejos, o axé, a MPB e outras vagas preferências da plebe ignara que só sabe pensar em língua portuguesa. A crise do setor era inevitável.
Onipotência à la Orwell
Mesmo sob o risco de sermos tachados de nacionalistas empedernidos, sejamos francos: não se pode deixar de afirmar que, a rigor, nunca existiu uma qualidade artística e cultural intrínseca na música produzida por aquelas bandas de rock and roll fake dos anos 80. O mesmo se poderia dizer talvez da maioria das bandas surgidas nos anos 90 em diante. É que não há qualidade artística que possa ser reconhecida na simples imitação. Do ponto de vista internacional, culturalmente o produto fake está fadado a ser sempre uma expressão menor.
A verdade é que se não pudermos ser nacionalistas não precisaremos também ser economistas para deduzir que se, numa economia globalizada, é fundamental exportar, o nível de qualidade dos produtos precisa ser bastante alto, porque exportar significa competir, disputar de verdade os espaços do mercado. Nesta disputa não dá para montar panelinhas, dar jeitinhos, usar de expedientes ou ser amigo do rei.
Na aferição destes níveis de qualidade, no caso específico da cultura, mesmo em parâmetros de massa, como ocorre com a música pop internacional, a originalidade se torna cada vez mais um componente essencial ao sucesso do produto. Nestes tempos de hegemonia capitalista, definitivamente, portanto, não se penetra no mercado externo produzindo música americana fake. Alguém conhece uma banda do chamado Rock Brasil que tenha conseguido avançar para algo parecido com uma carreira internacional?
É preciso dizer a estes garotos que a crise vivida pelo segmento de mercado fonográfico no qual eles almejam fazer carreira é crônica. É uma crise provocada por um engodo mantido por uns poucos que ainda ganham dinheiro com isso.
Atenção, garotos! Não há ideologia rockeira nesta história, não há atitude. Só há grana e aparência. Como tatuagem de patricinha.
Se alguém sobreviver a esta crise serão eles, aqueles certos produtores para os quais tanto faz produzir Tiazinha hoje quanto Skank amanhã, Tiririca ontem ou Pato Fu no ano que vem, aqueles que apostam na cultura descartável, tão a gosto das gravadoras multinacionais, porque impedem os consumidores de raciocinar, de optar por algum produto musical artisticamente mais consistente que, seguramente, seria produzido no Brasil. Aqueles certos senhores que justificam toda a sua falta de compromisso com a cultura e a arte do Brasil com enfáticos argumentos do tipo: "Eu seleciono as bandas. Sou criterioso. Tenho este direito porque produzo este evento há três anos!"
Mais onipotente do que eles só mesmo o Big Brother do Orwell.
(*) Músico e pesquisador da UERJ
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