ARTIGO 222
Muniz Sodré (*)
Há indicações de boa qualidade para o filme sobre a vida de Muhammad Ali, que acaba de sair nos Estados Unidos. E num texto de jornal, recorda-se a resposta dada pelo boxeador (que recusara participar da guerra no sudeste da Ásia) quando o repórter que lhe perguntou se sabia onde ficava o Vietnã: "Sei, sim. Fica na televisão".
A resposta é magnífica, obra-prima da ironia, por remeter a pergunta à própria natureza da realidade pública norte-americana, feita de telerrealidade em sua maior parte. Nesse tipo de relacionamento com o real, em que a imagem tem plena soberania, a palavra pura e simples e o velho discurso argumentativo tornam-se inconvenientes ou perigosos.
"Palavras perigosas" foi justamente o título da matéria do correspondente de O Globo em Nova York sobre a "verbofobia" norte-americana ? isto é, um dos aspectos da caça às bruxas do pensamento. A "bruxa" é simplesmente toda e qualquer frase que resulte da livre expressão, da coerência discursiva e da argumentação; portanto, tudo que não se conforme ao clichê da imagem.
O texto traz o ponto de vista da escritora Susan Sontag, uma das maiores intelectuais norte-americanas na contemporaneidade: "Vivemos uma situação em que o debate é entendido como discórdia, a discordância é entendida como perversão, a perversão é entendida como traição. Este país todo é fundado no dinheiro. Tudo acontece porque as pessoas podem pagar para acontecer (…) O dinheiro passa a ser uma censura".
Ou seja, a motivação do patrulhamento verbofóbico não seria nenhuma ideologia cívica, seja de direita ou de esquerda, e sim a censura do dinheiro, cuja expressão pública é a mídia. Se é verdade que "tempo é dinheiro" e "dinheiro fala", como atestam os dois provérbios norte-americanos, uma das materializações públicas dessa fala é, sem sombra de dúvida, a mídia. Dispositivo tecnocultural correspondente ao regime de temporalidade próprio do capitalismo globalista (o "turbocapitalismo"), ela é hoje, antes de tudo, uma fala da moeda, se concordamos em reduzir a este termo toda a dimensão da economia que domina a vida moderna.
O tempo, nessa dimensão, é primeiramente o tempo de trabalho reduzido para atender aos imperativos da intensificação da concorrência capitalista; depois, o tempo acelerado do processo de concentração da riqueza; finalmente, o tempo "livre" que os privilegiados acumulam sob forma de capital fictício (títulos financeiros, direitos de renda) e que os subalternos experimentam como exclusão social e consumo de lixo cultural reciclado.
Claro, a mídia não é apenas esse monobloco aplastante, nela também se abrem fissuras por onde trafegam os juízos críticos do jornalismo menos comprometido ou onde se tenta estender pequenas redes de proteção da sociedade civil. Mas não há dúvida de que o sistema como um todo se movimenta na direção do dinheiro, que agora acena de fora para o setor. Foi o dinheiro que moveu os grandes empresários da comunicação brasileira, pressionados pela crise econômica e pelo alto nível de endividamento do setor, a abandonarem suas antigas posições de defesa da independência da imprensa, aplaudindo a aprovação, em dezembro passado, da proposta de emenda constitucional que franqueia ao capital estrangeiro a participação, com um teto de 30%, na composição acionária das empresas de mídia.
Imagens vazias
É impossível tapar o sol com a peneira, assim como é socialmente improdutivo agarrar-se à nostalgia "tipográfica" proclamada pelo iluminista Condorcet como "arte criadora da liberdade". É impossível retornar aos ideais oitocentistas da imprensa, quando a livre expressão fundamentava a experiência da modernidade, na medida em que possibilitava a universalidade do espaço político e público. A livre expressão resultava de um momento histórico em que, na consciência pública, tudo podia ser problematizado, isto é, afirmado e negado. Decorre daí a identificação de espaço público com espaço de palavra e argumentação, instrumentos do espírito crítico.
Os universais iluministas cedem lugar, hoje, aos imperativos econômicos da globalização financeira. É neste contexto que a livre expressão pública perde importância em favor das exigências mercadológicas de intervenção no tempo livre dos indivíduos, para confirmá-los definitivamente como sujeitos-consumidores, não mais puros cidadãos políticos. Desse discurso, faz-se portadora a grande mídia. Seu valor é o da moeda, seu instrumento é mais imagem do que palavra.
Por isto é que, apesar de tanta informação e tanta fala, a grande mídia é tendencialmente verbofóbica, quer dizer, tende a reprimir o espaço argumentativo. Passa-se a vigiar e a censurar palavras que não sejam imagens vazias, isto é, palavras que possam levar à ação. Se isto já se observa aqui em germe, tanto maior agora será o temor quanto ao que possa ocorrer com a implantação do modelo empresarial dos grandes conglomerados estrangeiros. Ninguém deseja ouvir um dia de uma criança, perguntada sobre onde fica o Brasil, a resposta: "Fica na televisão".
(*) Jornalista e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)