Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa aceitou a versão da polícia

MATRICÍDIO & PARRICÍDIO

Deonísio da Silva (*)

Suzane Louise von Richthofen, de 19 anos, acusada de matar os pais já foi julgada? Já. Pelo Judiciário? Não. Pela imprensa, o quarto poder, mas em muitos casos o primeiro, como sabemos, e contra o qual dificilmente cabe algum tipo de recurso. Vários dos jornalistas que trataram do caso parecem desconhecer regras mínimas de seu ofício, seja na indispensável pesquisa do repórter, seja na reflexão mais demorada do comentarista.

A revista Veja e a Folha de S.Paulo ofereceram nesta semana abundantes indícios desses pecados. A chamada principal da capa da revista: "Auto-ajuda que funciona: o que dizem os mais respeitados autores que ensinam você a ter sucesso e viver melhor". O título vem antecedido dos nomes de sete dos "mais respeitados autores". Respeitados por quem? E por que sete? E por que o nome deles na capa? O leitor certamente associará, ainda que por vias inconscientes, a complexa e rápida leitura que fará da borboleta que ilustra a capa, à direita, ao que diz a tarja à esquerda: "Crime: a filha que matou os pais".

Nas páginas internas (108 e 109), o festival acusatório continua. "Ela matou os próprios pais", diz o título da matéria assinada por Gabriela Carelli e Rosana Zakabi. Depois de abraçarem sem nenhum questionamento o ponto de vista dos acusadores, especialmente da polícia e da promotoria ? como, aliás, de resto, fez a maioria dos colegas que tratou do assunto ?, acrescentam duas relevâncias textuais estarrecedoras: "Os detalhes do crime, revelado nas confissões dos assassinos, causam horror e incredulidade".

Suspeitos? Acusados? Não, essas palavras não aparecem. Apareceram dias atrás, quando a hipótese era outra e a responsabilidade pelo crime caminhava perigosamente para o lado mais fraco: a empregada da família. Com a certeza dos que lêem pouco ? as jornadas de trabalho impedem aprofundamento e nas faculdades de jornalismo, como em muitos outros cursos, não é raro que os alunos supliquem que os professores rebaixem o conteúdo para que o diploma venha indolor ?, a interpretação conclusiva, precedendo e dispensando perigosamente a análise, vai sendo encaminhada ainda no primeiro parágrafo: "Que desvio de comportamento pode explicar a atitude da jovem que participou do massacre dos próprios pais?"

A seguir, são acrescidos outros pontos de vista, entre os quais o dos vizinhos. Será que os profissionais da imprensa foram ouvi-los? Ou se contentaram com a segunda ou a terceira versão, do tipo "fulano disse que beltrano disse a sicrano"? Provavelmente ficaram satisfeitos com o que a polícia disse que os vizinhos disseram. E a quem? À polícia! Não é necessária muita hermenêutica ou exegese para se concluir o óbvio: a autora intelectual da reportagem é a polícia. A versão que deu pode até ser correta. Mas ainda não foi provada e nem foi submetida ao contraditório.

Ouvir mais, apurar melhor

Quanto à Folha de S. Paulo, seu ombusdman, o escritor Bernardo Ajzenberg, vai ter muito trabalho esta semana. Semana passada, o jornal anunciou que a Prefeitura de São Paulo decidira-se por um calote numa dívida. A matéria repercutiu na bolsa e o real, que vinha caindo, caiu um pouco mais. Sabemos, porém, como nos informam ? como direi? ? os jornalistas especializados, que o real não cai, é o dólar que sobe. E contra todas as evidências o real vai subindo na tabela estampada ali ao lado do dólar, enquanto este permanece o mesmo.

Depois de esposar o ponto de vista da acusação, sem nenhum questionamento, vem o comentário de Gilberto Dimenstein, com chamada na primeira página. "Decifra-me ou te mato". Belo título, hein! Altera com maestria a ordem que a Esfinge deu a Édipo, que matou o pai, desconhecendo, porém, a identidade da vítima. O texto, infelizmente, não revela uma única das sutis complexidades que levaram Sófocles a recolher a versão mítica e escrever duas peças; e milênios depois serviram a Sigmund Freud, o pai da psicanálise, de metáforas pertinentes para as freqüentemente confusas relações entre pais e filhos, para cujo esclarecimento Freud deu contribuição decisiva.

De complexo no artigo de Gilberto Dimenstein, apenas o título. O autor desta crítica não quer desmerecer o trabalho de ninguém, muito menos o de um respeitado jornalista, como é o caso. Mas ele começa mal seu artigo e conclui com uma confusão a respeito da sentença-título: "o filho apaixonado que mata o pai aparece desde a Grécia antiga (daí surgiu o ?decifra-me ou devoro-te?)". Sua conclusão, depois de ouvir o psiquiatra Içami Tiba ? um dos sete ostentados na capa da Veja: "justamente isso provoca o extremo de uma jovem arquitetar, ?por amor?, a morte dos pais". E como havia sido definido "isso" no mesmo parágrafo? Ao lado do "filho apaixonado que mata o pai", "o culto do desempenho, da aparência e do consumo (…) numa sociedade que parece ter extirpado as utopias, trocando-as pelo narcisismo coletivo".

Tais conclusões do comentarista estão amparadas por um consenso que grassa nos campi universitários e nas escolas, abraçado sem vacilação: "Há tempos, educadores e psicólogos têm alertado sobre [sic] a crescente dificuldade de impor limites sem ala de aula, sobre [sic] a arrogância dos alunos que descamba para o desrespeito, sobre [sic]o consumo excessivo de drogas, principalmente álcool, e sobre [sic] uma atitude de descaso, do tipo ?tanto faz? ". (Ainda que mal pergunte, qual seria o consumo tolerável de drogas para um aluno?).

Pois é! Se nas escolas que formam os profissionais, inclusive jornalistas, houvesse mais cuidado com a botânica e a jardinagem da língua portuguesa, certamente se ensinaria que a regência não foi abolida com a proclamação da República. Portanto, é recomendável conhecer melhor a ferramenta de trabalho e meio de expressão. E ouvir outros profissionais, escolhendo, por exemplo, entre aqueles que a Folha de S.Paulo ainda não conhece, não por eventuais deficiências dos não-citados, nem consultados, mas porque o jornalismo que pratica tem tais distorções há muitos anos!

Um "erramos" bastará?

Escolas abandonadas, professores há décadas sofrendo as tristes penúrias salariais, alunos captando, consciente e inconscientemente, que a sociedade não valoriza os mestres, nem a escola, e sobra exclusivamente para eles, os alunos, a culpa do que está errado. Basta lembrar que a com a famigerada progressão continuada, em São Paulo, o mais adiantado estado da Federação, os professores não podem sequer reprovar os alunos em nenhuma disciplina, ainda que possam identificar perfeitamente que a principal razão de muitos fracassos escolares seja a falta da relação bunda-cadeira-hora.

Em resumo, o que tivemos de mais grave no caso do parricídio e do matricídio ? estamos vendo que a imprensa força apenas uma autoria na própria designação: aceita preliminarmente que a filha matou pai (parricídio) e mãe (matricídio) ? não é a incorreção, em sentido estrito, no trato da língua portuguesa, ferramenta de trabalho do jornalista. É uma atitude inicial que descredencia o trabalho. Caso alguns livros, como a Bíblia, cujo primeiro livro trata do primeiro homicídio da Humanidade, e Dostoievski, especialmente de Os Irmãos Karamazóvi, não estejam na biblioteca das redações, talvez seja de bom tom consultar o próprio jornal.

Em passado mais remoto, os irmãos Naves também confessaram o crime que lhes fora imputado. E eram inocentes. E em passado recente, os proprietários da Escola Base foram julgados e condenados pela imprensa. E também eram inocentes das culpas que lhes foram atribuídas.

Se as investigações, que estão apenas começando, tomarem outros rumos e forem obrigadas a percorrer outros insólitos e desconcertantes caminhos, o que farão esses autores e periódicos? Um "erramos" em poucas linhas bastará?

Reitere-se: a versão pode até ser verdadeira. Mas por enquanto é exclusiva da polícia e da promotoria. A imprensa tem o dever de aprofundar suas pesquisas para que os leitores exerçam o direito de saber mais, de outros mirantes, à luz de mais relatos, por certo diferentes e discrepantes do monobloco que foi apresentado até agora.

(*) Escritor e professor universitário, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida Íntima das Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo