Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa alternativa, procura-se

LEITURA E FORMAÇÃO

Luciano Martins Costa (*)

Todo debate sobre imprensa nasce viciado se não se estabelecer, de princípio, uma fronteira entre a imprensa formadora de opinião e a imprensa consolidadora de opinião. Há outros divisores, como os que definem públicos específicos, segmentos de mercado por faixa etária ou poder de compra, ou o alcance geográfico da mídia em questão. No entanto, o que determina a longevidade de uma marca de imprensa é a capacidade do veículo de formar opinião, ou seja, de enriquecer o debate com o qual se desenvolvem as idéias que fazem evoluir a sociedade.

É nesse sentido que se cumpre a função de educação da imprensa, primordial entre as outras funções classicamente reconhecidas, de entretenimento e de serviços. Também é nesse sentido que ela se consolida como negócio, uma vez que, ampliando o leque de valor que oferece ao mercado, está sempre aberta à renovação de sua carteira de clientes.

Diversidade de opiniões

A imprensa formadora de opinião é dirigida ao público mais amplo, procura restringir as opiniões de seus editores a páginas de afirmações explícitas, e em tese abre a maior parte do seu espaço para a diversidade que melhor representa um modelo de sociedade, em cuja construção se engaja. A imprensa consolidadora de opinião se dirige a um núcleo mais restrito de interpretações, como um clube ideológico, e todo seu conteúdo é formatado para abrigar teses pré-existentes, restando pouco espaço para questionamentos. A imprensa consolidadora é um recurso legítimo à disposição de grupos políticos que compõem o espectro de interesses da sociedade, mas ela tem a vocação da imprensa chamada nanica, aquela que chama a si própria de alternativa.

Não há imprensa sem democracia, assim como não há democracia sem imprensa, mas, ao contrário do que parece, não é a autoproclamada imprensa alternativa que nos presta o melhor serviço na busca por uma sociedade mais justa. Embora tenhamos contado com exemplos pontuais de resistência focalizados em núcleos políticos específicos, nossos momentos históricos mais relevantes, aqueles que marcaram a construção da nacionalidade e a retomada da democracia, tiveram o suporte de uma imprensa afirmativa de valores, mas capaz de abrigar a diversidade de opiniões que a sociedade produz.

Uma imprensa mais genérica e menos partidária ? no sentido da conjunção de correligionários ? cumpre melhor esse papel, na medida em que respeita a diversidade de opiniões da qual se constitui a democracia, enquanto a imprensa dirigida a grupos ideologicamente fechados apenas fortalece setores de opinião já bastante organizados e influentes, embora eventualmente progressistas. O problema é: temos ainda uma imprensa genérica suficientemente aberta à diversidade?

Princípio equivocado

A resposta parece clara: nossa grande imprensa atua, de fato, como uma imprensa nanica, no sentido em que mantém ? ainda que ocultos da maioria dos seus colaboradores e, obviamente, de seu público ? cânones sobre os quais praticamente não há como tergiversar. São blocos de raciocínio sobre tudo, que impedem, por exemplo, uma revista Veja de abordar o tema religião sem carimbar com o mais tacanho preconceito os seguidores de seitas pentecostais. Ou que fazem editores de economia torcer o nariz a qualquer pauta que coloque em xeque os pressupostos da chamada economia liberal.

O raciocínio em bloco, como se dizia no falecido O Pasquim, permeia tudo que se publica, e nisso as duas vertentes da nossa mídia acabaram se equivalendo. Apenas alguns personagens mudaram de posição, na interpretação de um e outro lado dessa disputa pela atenção dos leitores: em sua época de ouro, por exemplo, O Pasquim costumava implicar com um conhecido jornalista e escritor, chamando-o de Carlos Heitor Conyvente, por considerá-lo o verdadeiro autor de artigos ufanistas no Brasil da ditadura, assinados pelo então editor da revista Manchete, Adolpho Bloch. Hoje, o mesmo personagem é tido como ícone da esquerda, e assim se sucedem as definições de teses e pessoas a priori corretas ou irremediavelmente incorretas.

Tal característica, carregada de um evidente infantilismo político, acaba dominando todo o cenário da mídia nacional, e ficamos praticamente sem alternativa, se queremos significar a imprensa como uma instituição capaz de explicitar para a sociedade os melhores caminhos, pela exposição das mais variadas e até mesmo contraditórias opções. Essa evidência torna ainda mais crítica a necessidade de se reinventar a mídia, sobre as bases de um propósito que a torne instituição central num sistema aberto de educação, muito mais adequado à sociedade hipermediada em que vivemos.

Temos tido alguns bons momentos, como, por exemplo, quando praticamente todos os veículos mantiveram-se irredutíveis na condenação aos responsáveis pelo massacre de 111 presos no antigo complexo do Carandiru ? confrontando a grande maioria dos leitores, que justificavam a ação criminosa da polícia. Foi penoso, para muitos jornalistas, ouvir telefonemas desaforados de leitores que ameaçavam cancelar suas assinaturas por considerar que o jornal defendia "apenas os direitos humanos dos criminosos". São momentos gloriosos, de uma imprensa capaz de defender valores básicos da democracia, mas infelizmente são momentos pontuais. Na rotina, a mídia se rende ao princípio equivocado segundo o qual é preciso sempre satisfazer o cliente.

Negócio manquitola

Por que não temos uma imprensa mais afirmativa de princípios, capaz de manter uma posição consistente, mesmo que isso desagrade num primeiro momento aos seus leitores? A resposta pode estar na própria incapacidade da nossa imprensa de entender e assumir minimamente suas funções de educação. Por não perceber a oportunidade de se construir uma nação progressivamente melhor a partir de cada edição, ou simplesmente por não ter um interesse sincero no desenvolvimento de uma sociedade mais satisfatória, nossa imprensa parece incapaz de nos surpreender.

Nossa opinião pública é facilmente manipulável, e os sociólogos e cientistas pol&iaciacute;ticos oferecem fartura de teses a respeito: temos lido, aqui mesmo neste Observatório, que a juventude de nossa democracia é causa suficiente para essa fragilidade social, e não faltam referências ao modelo de sociedade herdado de nossos colonizadores, com uma elite incapaz de elaborar um conceito mais moderno de democracia. Dessa elite derivam os grupos que fizeram até aqui a história da nossa imprensa, e que a conduziram à situação de crise em que se encontra. A chamada imprensa alternativa ainda é uma ação entre amigos, preconceituosa à sua maneira e muito comumente maniqueísta em sua visão de mundo.

A sociedade brasileira é um mercado aberto a uma nova mídia, que saiba aplicar os recursos da tecnologia de informação em prol de um novo modelo, mais adequado ao perfil do leitor que vive sob o bombardeio dos múltiplos meios de informação. Entre a empresa familiar que viu seu patrimônio se esvair nos últimos anos e a ação voluntariosa ? mas nem sempre profissional ? entre amigos, há espaço para empreendimentos cujos responsáveis entendam que a imprensa é um negócio cujos resultados devem ser medidos por seu valor econômico, seu valor de mercado e seu valor social. O que temos ainda é um negócio manquitola, ao qual falta pelo menos uma perna.

(*) Jornalista