11 DE SETEMBRO, CHILE
Leneide Duarte-Plon, de Paris
** "1973-2003, a outra América ? Da queda de Allende à posse de Lula, revista latina de A a Z" ? Le Monde
** "1973-2003, sombras chilenas ? Trinta anos depois do golpe de Estado de Augusto Pinochet contra Salvador Allende, retorno a Santiago num país doente da memória" ? Libération
** "O 11 de setembro de Pinochet" ? Le Figaro
** "30 anos depois da morte de Allende ? Chile, a esperança assassinada" ? Le Nouvel Observateur
** "Há 30 anos ? A noite cai sobre Santiago, no dia 11 de setembro de 1973, militares derrubavam o presidente Allende" ? L?Humanité
No dia 11 de setembro deste ano, entre suplementos especiais e longas matérias de análise, a imprensa francesa ? jornais diários de esquerda e de direita e revistas semanais ? dedicou muito mais espaço ao outro 11 de setembro, o do golpe que derrubou Salvador Allende, do que a imprensa brasileira. Pelo menos pelo que pôde ser lido nos sites internet dos grandes jornais do Rio e de São Paulo.
O Le Monde fez um suplemento especial de 24 páginas sobre essa "outra América", que incluía uma grande matéria sobre o Chile de Allende a Pinochet, um panorama sobre o novo governo petista no Brasil, as telenovelas, os sem-terra, a religião fast-food das seitas evangélicas em constante crescimento, a música engajada de Pablo Milanes e Chico Buarque de Hollanda e a redenção social por meio do futebol.
Havia, ainda, análises sobre o impasse cubano, Hugo Chavez (apresentado como o anti-Lula), a Argentina de Perón e de seus descendentes, o problema mexicano de fornecedor de mão-de-obra barata e imigrantes ilegais para os Estados Unidos, o problema do narcotráfico e uma entrevista com Jorge Castañeda, que declara que "a era das revoluções já acabou".
Um momento de grande jornalismo do Le Monde, comparável à edição que o Jornal do Brasil lançou logo depois do golpe contra Allende, quando a redação era dirigida por Alberto Dines. A primeira página do JB do dia 12 de setembro de 1973 é até hoje uma brilhante aula de jornalismo de Dines, Carlos Lemos e de todos os jornalistas responsáveis pelo jornal da época. Os relatos do fechamento dessa edição, num momento de censura implacável, constituem um capítulo à parte na história do jornalismo brasileiro.
Este ano, aquele outro 11 de setembro de 1973, muito mais trágico para a história da América do Sul pois marcou o fim da utopia de um governo socialista democraticamente eleito, interessou menos aos editores da nossa grande imprensa que o de 2001, o da destruição das torres gêmeas de Manhattan.
Alegação médica
No primeiro 11 de setembro (1973), os Estados Unidos foram os vilões por intermédio do trabalho de bastidores de sua agência de informação, a CIA, na desestabilização do governo do presidente Salvador Allende. Os militares chilenos, os historiadores já provaram, estavam assessorados de perto pelos EUA e o golpe de Estado só foi possível graças ao apoio de Nixon e ao intenso trabalho de Henry Kissinger.
O Chile era peça importante no jogo de xadrez da Guerra Fria. Apenas onze dias depois da eleição de Allende, em 4 de setembro de 1970, Nixon deu ordem de "boicotar o governo do presidente socialista por todos os meios", segundo matéria publicada no Libération, assinada pelo correspondente Pascal Riché. Foram três anos de um complô que culminou com o bombardeio do Palácio de La Moneda e o suicídio de Allende.
No segundo 11 de setembro (2001), os EUA aparecem como vítimas do terrorismo internacional, pela primeira vez atingidos no seu próprio território. Nos dois episódios de setembro, o número de mortos mais ou menos se equivale ? cerca de 3 mil pessoas. A tragédia chilena, porém, gerou entre 250 mil e um milhão de exilados. Bin Laden nunca pediu perdão aos EUA pelos estragos que fez no World Trade Center. Já Pinochet, num banquete em que comemorava seus 80 anos, em 1995, declarou a fiéis seguidores que "lamentava, na qualidade de militar, a morte dos inimigos".
Como se sabe, a ditadura de Pinochet, como a de Saddam Hussein, torturou e eliminou seus opositores. Quem não se lembra do assassinato do ex-ministro Carlos Prats, na Argentina, e do general Orlando Letelier, nos Estados Unidos, ambos ligados a Allende ? Mas o governo de Pinochet estava do lado do "bem", posto já que lutava contra comunistas e socialistas.
Em 2000, depois de uma novela judiciária que durou mais de 500 dias, o velho ditador conseguiu que o ministro britânico do Interior recusasse "por razões humanitárias" sua extradição para a Espanha, onde o juiz Baltasar Garzón queria vê-lo julgado. No mesmo ano Pinochet pôde voltar ao Chile, onde, em 2001, a Corte Suprema deu por encerrado o processo contra ele graças a uma alegação médica de que o velho ditador sofre de demência senil.
Significado esvaziado
Por que a imprensa brasileira deu mais espaço ao aniversário do ataque terrorista em vez de se debruçar sobre os 30 anos do fim de um sonho latino-americano e da histórica impunidade dos ditadores que estão do lado "certo"? O Chile é nosso vizinho continental e aliado natural numa futura frente sul-americana contra a tentativa de os EUA controlarem o comércio do continente através da Alca. Por uma questão geopolítica, deveríamos estar mais interessados em tirar lições da história latino-americana do que em relembrar os acontecimentos de Manhattan.
Como lembra o suplemento especial de 11 de setembro do Le Monde, o presidente "Luiz Inácio da Silva é hoje depositário de uma enorme expectativa". E o que o jornal não diz é que sua história de presidente democraticamente eleito por um partido de esquerda lembra perigosamente a do presidente Allende. Felizmente, com o fim da Guerra Fria, na qual o golpe do Chile estava inserido, o papel que o Brasil e Lula podem representar para os interesses dos EUA são bastante diferentes.
No mesmo 11 de setembro ? com data do dia seguinte, como de hábito ?, o suplemento literário do Le Monde resenhava três novos livros sobre o 11 de setembro de 1973: Pinochet, um ditador modelo, de Marc Fernandez e Jean-Christophe Rampal (Hachette Littératures), 11 de Setembro ? de 1973, de Hector Pavon (Edições Danger Public) e Exorcizar o terror , o incrível e interminável processo do general Pinochet, de Ariel Dorfman (Editora Grasset).
O primeiro livro baseia-se em documentos liberados pela CIA e pelo FBI durante o governo Clinton, além de testemunhos diretos de colaboradores do governo Pinochet, inclusive de torturadores. O livro de Hector Pavon enfoca principalmente as relações do Chile com os Estados Unidos durante a ditadura Pinochet, mostrando-a como uma laboratório da luta contra a subversão marxista mas também como um pioneiro laboratório do neoliberalismo "dedicado a delimitar os principais conceitos do Consenso de Washington pelo fuzil e pela tortura". Uma das frases do livro soa incomodamente pertinente para um leitor brasileiro: "O regime militar esvaziou de seu significado a palavra ?democracia?(?) A orientação exclusivamente econômica da vida política impediu qualquer projeto coletivo e toda preocupação social". Citando documentos da CIA, o autor prova o envolvimento explícito do governo Nixon no golpe chileno.
No seu livro, Ariel Dorfman lembra que mesmo tendo sido vã, a tentativa de extradição de Pinochet abriu novas perspectivas para a humanidade de cobrar a responsabilidade dos atos dos chefes de Estado "que cometem crimes contra a humanidade e depois se afastam do cenário de seus crimes acendendo tranqüilamente um cigarro".
(*) Jornalista