Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa infeliz na intimidade

Cláudia Rodrigues

Um caso de crime passional em nosso meio e logo lembramos daquela demissão que veio de cima, inexplicável, para retirar um colega competente que trabalhava na mesa ao lado. E também vêm-nos à memória aqueles colegas que, surpreendentemente, tendo a mesma idade e o mesmo tempo de trabalho, e não maior habilidade para escrever um texto do que outros de nós, subiram rapidamente em carreiras meteóricas rumo à posição de chefes ou repórteres especiais, com salários altíssimos.

Pura sorte, qualquer azar será mera coincidência. Acontece de se fazer um bom trabalho e não ser visto pela pessoa certa na hora certa, no veículo certo. Também acontece de se fazer um trabalho apenas razoável e contar com a simpatia de um chefe que lembra da irmãzinha morta, da mãe querida, e acha que tudo o que apuramos e escrevemos está por cima da carne-seca. Com um pouco só de competência e bastante firmeza de caráter, esse chefe nunca terá oportunidade de um relacionamento mais íntimo conosco, e mesmo assim nossa vida profissional continuará em ascensão. E a primeira decepção num cargo, invariavelmente, será concessão a pedido vindo de cima. Com sorte, as concessões podem ser mínimas, mas se todas as já feitas viessem a público seria de arrepiar, e não se salvariam gregos ou troianos.

Bem, pode-se ter o azar de provocar extrema antipatia quando, sem maiores explicações, resgatamos partes obscuras e mal-resolvidas dos porões do inconsciente de um superior.

Estranhas relações

Lembro de um chefe de redação que perguntou a respeito de uma repórter da minha editoria: "Quem é aquela branquela com jeito de mandona?"

Eu respondi: "É a foca, a mais nova de todos, se formou no final do ano, escreve direitinho, apura bem, comete pequenos erros de grafia de palavras, nada mais grave". Eu tinha certeza de que ele não a conhecia, pois havia chegado de um outro estado para o emprego, e a moça nunca havia trabalhado fora dali. Era um caso de antipatia à primeira vista.

Na semana seguinte, o sujeito, que é um jornalista normal e continua bem-empregado, perguntava a mesma coisa, ficava parado olhando a menina e se sentia agredido pela imagem exuberante dela. Ela era alta, ele baixinho, ela parecia destemida, corajosa; ele suava muito debaixo dos 18ºC do ar-condicionado central. Enfim, não vem ao caso saber que motivos inconscientes tinha aquele chefe de redação para implicar com a repórter. O fato é que acabou demitindo-a quando eu já não estava na editoria. A moça foi para outro jornal e está bem, foi aceita pela equipe, faz um mestrado, já nem é mais uma foquinha. É uma jovem de talento, além de bela, e deve ter uma carreira promissora. Pelo menos se nunca mais encontrar seu antigo chefe.

Esse caso que, em princípio, nada tem a ver com o trágico desenlace dos colegas do Estadão, é um exemplo clássico das estranhas relações profissionais que rondam as grandes redações. Assim como o chefe de redação "implicou" com a moça sem conhecê-la, antipatizando com seu jeito, bem podia ser tomado por extrema simpatia e, quem sabe, até ter namorado com ela. Caso isso tivesse acontecido, provavelmente ela não teria sido demitida, e talvez chegasse a algum posto em futuro próximo. Quem sabe?

Frangos depenados

O fato é que está em xeque, além da vida dos dois infelizes que não conseguiram amar e perdoar, as relações de simpatias e antipatias gratuitas, casos de amor e de ódio isolados, além das "turmas", para não falar em gangues, que migram de uma empresa jornalística para outra.

Os chefões dessas gangues já estão por aí declarando que, do ponto de vista profissional, "o Pimenta era um excelente jornalista". Claro, se levarmos em conta o padrão vigente do que é ser um bom profissional no mercado: não medir formas para retorno comercial. É sabido que cada vez mais a filosofia marqueteira sobrepuja fatos, distorce e omite notícias.

Gangues, desses senhores que se beneficiam do sistema instalado desde que a ditadura militar foi substituída pela empresarial, não são melhores nem piores, é só uma questão de diferenças políticas e sociais, muito mais do que éticas ou jornalísticas. Afinal, a própria existência dessas "turmas" já nos fala de faltas éticas ou, no mínimo, de injustiças, sem mencionar o conteúdo jornalístico, que varia muito pouco nas grandes corporações, independentemente de qual gangue está no comando desta ou daquela empresa de notícias.

O fato é que quando as turmas de medalhões se movem, muito frango miúdo é depenado. Isto é, muita gente competente, mas alheia aos jogos de poder, é pisoteada.

Abismos salariais

Para nós, jornalistas, termos como "passaralho" – onda de demissões e novas contratações que pode durar um ano inteiro ou mais – fazem o maior sentido quando o cacique foi trocado ou está à sombra de algum novo contratado que, tão logo possa, vai puxar o tapete do antigo para depois iniciar sua gestão, com velhos amigos e indicados por amigos.

É uma medida de segurança para não correr riscos no poder, para mantê-lo o quanto puder. Membros e simpatizantes de uma ou de outra turma ficam estrategicamente colocados em outras redações – para uma emergência. Membros e simpatizantes são aspirantes a cargos, vulgarmente conhecidos como puxa-sacos. Curiosamente, são responsáveis tanto pela permanência quando pela instabilidade dos chefes. São pouco criativos, mas bem-mandados, e seu pior defeito é que viram a casaca de uma hora para outra, já que eles próprios almejam o poder, não medindo esforços ou posições éticas quando surge qualquer "boa" oportunidade.

Os diretores das redações se movem, de uma empresa para outra, acompanhados pelo primeiro escalão de suas trupes, mas são sempre os mesmos no mercado. São os políticos do jornalismo, os homens do poder, das mediações entre notícia, empresa e área comercial. Chegam a ganhar 20, 30 vezes o salário de um repórter, e os caciques de confiança podem chegar a ganhar 10, 15 vezes mais do que o resto dos índios. Isso tudo não é novidade, e nem causa espanto, em país capitalista, que as diferenças salariais sejam tão acentuadas; muito menos que a manutenção do poder seja o maior objetivo.

Espectadores calados

Mas o crime, o caso da jornalista assassinada por um ex-chefe e ex-namorado, causa espanto. E o espanto é maior quando associamos a morte da colega ao microcosmos doentio de uma grande redação. O espanto se torna gigantesco quando percebemos que o sistema de funcionamento do órgão, o jornal, tem tudo a ver com o que aconteceu, mesmo que o caso de dezenas de outras Sandras e Pimentas não chegue a um final tão trágico.

O que aconteceu na redação do Estadão, antes do crime, não é um caso isolado, e traduz muito bem, nesse microcosmos do universo jornalístico, o macrocosmos de desigualdades, corrupções, bajulações, concessões e disputas pelo poder.

Duas pessoas acabam de ser vítimas de uma história criada e ornamentada por elas durante três anos. Uma história muito bem digerida pelo sistema; afinal, os dois transitaram juntos por duas grandes e respeitáveis redações. Uma história que teve como espectadores calados, consequentemente coniventes, os colegas de ambas as redações.

Saudações respeitosas

Sandra e Pimenta tiveram um relacionamento doentio e precisaram chegar a um desfecho trágico para pontuar a falta da única coisa que poderia poupá-los da tragédia, juntos ou separados: o amor. Faltou uma dose mínima desse velho e bom sentimento humano que nos faz incapazes de ignorar, dar as costas, a uma pessoa que amamos ou que tenhamos amado um dia; uma dose mínima que nos impede, também, de tirar a vida de alguém.

A falta de amor, de consideração à vida do outro, não se encerra no caso Sandra/Pimenta, estopins da realidade. É apenas mais uma das demonstrações vivas de um dos maiores problemas a ser enfrentados em nossa sociedade, especialmente nas grandes corporações, como Estadão, Folha e outras empresas de outros setores: o mecanicismo.

Um mecanicismo que substitui horas de lazer por ganância, competição exarcebada e ambição, que empilha quantidades exageradas de pessoas por metro quadrado levando-as a substituir sentimentos e necessidades internas pela lógica da vantagem e das necessidades externas. Esse quadro, representado neste momento pelo assassinato da jornalista, está destruindo o que de melhor o ser humano conquistou até hoje: a capacidade de amar.

Feliz da moça que, ao se apaixonar pelo chefe, decida trabalhar em outro lugar para assegurar-se internamente de que vencerá por seus próprios méritos, sem deixar atrás de si qualquer sombra de dúvida. Feliz do homem mais velho que, ao se apaixonar por uma moça, não use de artifícios como presentes caros, ajuda financeira, empurrões profissionais, na esperança de pagar um preço pela manutenção desse amor.

Felizes todos nós quando aprendermos a perseguir o ideal do proveito mútuo, quando conseguirmos deixar de lado a lei do proveito próprio.

Saudações respeitosas a todos os colegas envolvidos direta e indiretamente no caso. Temos muito o que pensar e muito mais o que fazer para melhorar a imprensa desse país. E isso, por incrível que possa parecer, tem tudo a ver com a felicidade que produzimos em nossas vidas pessoais, ao lado dos nossos companheiros e filhos.

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