CENSURA TOGADA
Luiz Egypto
Em sentença proferida em 27 de outubro último, para a qual ainda cabem recursos, a juíza Érika Soares de Azevedo Mascarenhas, da 6? Vara Criminal de São Paulo, condenou o jornalista Luís Nassif, da Folha de S.Paulo, a pena de detenção de três meses e multa de dez salários mínimos com base na Lei de Imprensa e nos artigos 59 e 60 do Código Penal. A juíza também determinou a substituição da pena de detenção por prestação de serviços à comunidade.
O motivo da condenação foi uma nota de 67 palavras e exatos 417 toques publicada em 20/9/2000, no pé da coluna que Nassif mantém no caderno Dinheiro na Folha, sob o título "Fim da aventura". O texto dizia o seguinte:
Fracassou, e foi pouco notado, uma das mais atrevidas aventuras já tentadas contra os cofres públicos: a ação de indenização proposta pela Mendes Júnior contra a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) por atrasos nos pagamentos. A indenização pedida era de R$ 10 bilhões, muitas vezes maior do que o preço total da obra. No mês passado, o Superior Tribunal de Justiça liquidou definitivamente com a aventura.
Em declaração publicada no sítio Comunique-se <www.comunique-se.com.br>, o jornalista afirmou que, durante o processo, estava proibido de escrever sobre o caso. "Mas o tiro saiu pela culatra: a Mendes Júnior não queria que a informação fosse divulgada, mas com a decisão da juíza isso acabou acontecendo", disse Nassif.
O advogado Luís Francisco Carvalho Filho, que defende o jornalista, disse à Folha (20/11) que irá recorrer da sentença no Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. "Acho a sentença absolutamente imprópria. O jornalista se limitou a divulgar uma nota de interesse público, ainda que crítica", afirmou.
Como em outros casos apontados por este Observatório [veja remissões abaixo], tem-se tornado cada vez mais freqüente a interferência do Judiciário no trabalho jornalístico, mormente a partir de decisões tomadas por juízes de primeira instância. Em levantamento realizado pelo sítio Consultor Jurídico <www.conjur.uol.com.br>, cujos dados ? ainda preliminares ? foram informados pelo seu editor-chefe Marcio Chaer ao repórter Claudio Julio Tognolli, as ações contra jornalistas e empresas de comunicação tiveram notável crescimento nos últimos anos. Atualmente, e tomando-se como exemplo apenas as grandes redações, entre ações civis e criminais a TV Globo e a Editora Globo respondem cerca de 350 processos; a Editora Abril cerca de 300; o jornal O Globo, 230; Folha de S.Paulo, 200 e Estado de S.Paulo, 164. O valor médio das indenizações pretendidas é de 20 mil reais, ainda segundo a pesquisa do Consultor Jurídico.
A seguir, uma entrevista com Luís Nassif. Nas páginas seguintes, artigo da procuradora da República Janice Ascari sobre o caso e a íntegra da sentença que condenou o jornalista.
Por que você foi condenado?
Luís Nassif ? Porque chamei de "atrevida aventura" a tentativa da empreiteira Mendes Júnior de receber uma indenização várias vezes maior do que o valor total de uma hidrelétrica que construiu, por conta do atraso no pagamento de uma parcela ? que foi devidamente paga pela Chesf [a contratante da obra], com juros e mora contratuais.
Como avalia as recentes intervenções do Judiciário na atividade jornalística? Em 2002, por exemplo, houve o veto ao noticiário sobre processo administrativo envolvendo um juiz do TRT de São Paulo; a proibição da publicação, pela revista CartaCapital, de denúncias contra o ex-governador Anthony Garotinho; a mordaça, imposta pelo TSE, a comentaristas de rádio e TV durante a campanha eleitoral; e a decisão do TRE do Distrito Federal de conceder ao advogado do governador Joaquim Roriz a prerrogativa de examinar previamente uma edição do Correio Braziliense. O que pode significar tudo isso para o trabalho da imprensa?
L. N. ? Não se pode falar em campanha do Judiciário contra a mídia. O que se observa são ações individuais de juizes, em geral substitutos, tomando decisões desproporcionais aos fatos ocorridos. Tome-se o meu caso: o promotor opinou pelo arquivamento. Ou seja, uma das duas partes incumbidas de analisar a ação não encontrou um só elemento que pudesse configurar crime. No entanto a juíza opinou pela prisão, que é uma atitude drástica, tomada em última instância, para crimes claros e insofismáveis.
Dos juízes diz-se "cada cabeça, uma sentença". Os magistrados de primeira instância têm uma alçada que parece às vezes fugir a sua (deles) compreensão. O que dizer sobre suas atititude? Condenam por que querem, por que sabem ou por que não sabem?
L. N. ? Tenho a impressão que o Judiciário padece de um problema comum à imprensa. Jovens juízes, sem experiência, sem conhecimento histórico sobre as grandes batalhas para a conquista das prerrogativas democráticas, que de repente se deslumbram com o poder que tem à mão e passam a atirar a torto e a direito, sem atentar para suas responsabilidades institucionais.
Que reações houve na mídia à sua condenação, afora a do jornal em que trabalha e do qual é membro do Conselho Editorial?
L. N. ? As rádios deram bom destaque, assim como o site Consultor Jurídico, do Márcio Chaer, que no mesmo dia publicou uma conjunto de declarações fortes de condenação à decisão, uma das quais do próprio presidente do STF, Ministro Marco Aurélio de Mello
A nota que originou a ação e a posterior sentença da juíza-substituta da 6? Vara Criminal de São Paulo tem 67 palavras. De acordo com a juíza, o texto da nota "não justifica a maneira como a matéria foi redigida, e as expressões contidas não podem ser rotuladas de meras críticas, uma vez que pela simples leitura se verifica que são mesmo difamatórias". Que tradução faz você do despacho da meritíssima?
L. N. ? Um juiz de direito me escreveu, solidário, e sugeriu que da próxima vez eu use "lides excêntricas" em lugar de "aventura jurídica". Pelo teor da ação da Mendes Junior contra a Chesf, tenho certeza de que se usasse adjetivos mais fortes não estaria incorreto. Não tenho elementos para saber o que levou a juíza a essa posição.
Em tempos recentes, a imprensa acumulou pecadilhos ao enveredar pelo denuncismo e ao acatar, sem investigação complementar, dossiês e transcrições de grampos telefônicos em geral oriundos de fontes suspeitas. Agora parece submeter-se a um tipo de censura togada sem que a corporação jornalística esperneie e proteste em bloco. É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar?
L. N. ? Acho que não se pode culpar a imprensa pela açãatilde;o de profissionais inexperientes ou mal intencionados. Nem a Justiça pelos exageros que possam ser cometidos por alguns juízes. Agora, ambos, as corporações de ambos os lados, têm que se dar conta de que dispomos de um canhão nas mãos, que precisa ser utilizado com muita parcimônia. Cada reportagem sensacionalista que é divulgada depõe contra todos os jornalistas ? esta é a razão da minha luta e a de vocês contra os exageros da imprensa. É importante que os juízes se dêem conta de que uma atitude ilegítima de um deles afeta a imagem do poder como um todo.
O colunismo virou referencial dos leitores exatamente pela capacidade de os colunistas expressarem o sentimento de seus leitores. Pode haver colunistas mais ou menos parciais, mais ou menos dogmáticos, mas que expressam um modo de pensar. Se os juízes passarem a misturar o direito de opinião, ainda que possam surgir opiniões ácidas, matam o direito de imprensa no país e privam os leitores de seus referenciais de opinião.
Em seminário sobre ações de indenização por danos morais, ocorrido em maio, em Brasília, o presidente do STF, ministro Marco Aurélio de Mello, afirmou que "no campo da liberdade de expressão, é proibido proibir". É mesmo?
L. N. ? Acho que tem haver limites aos exageros. Mas quando se condena alguém à prisão por taxar de "aventura" uma ação que está orçada atualmente em R$ 180 bilhões, alguma coisa não está certa. Começou com US$ 8 bilhões. Depois, voltou para a primeira instância da Justiça Federal e um perito de Recife acaba de reestimar a indenização em R$ 180 bilhões ? metade do orçamento nacional.
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